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OLHARES SOBRE A VELHICE

75 BEAUVOIR, 1990 76 CAMARANO,2004, p 5.

1.3 CRONOLOGIZAÇÃO DA VIDA HUMANA

A cronologização da vida humana é um artifício social que tem por objetivo organizar os cursos de vida, propiciando o surgimento de normas de comportamento relacionadas às diferentes faixas etárias. Trata-se de estabelecer limites onde cada

90 MINOIS, 1999, p. 350. 91 PHILIBERT, 1984.

92 Maneira como as instituições sociais moldam e institucionalizam as trajetórias de vida individuais

nos domínios inter-relacionados da educação, da profissão e da família. O curso de vida é formado, entre outras coisas, pelas crenças culturais sobre a biografia individual, seqüências institucionalizadas de papéis e posições sociais, restrições e permissões legais em relação às idades e pelas decisões das pessoas92.

93 DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1999b. 94 Mudança de uma economia baseada na unidade doméstica para outra, baseada no mercado de

um deve permanecer – espera-se que os jovens entrem no mercado de trabalho, casem e que os velhos se aposentem95.

Do ponto de vista sócio-antropológico, podemos afirmar que a idade é ressignificada como um princípio norteador de novos direitos e deveres. Geralmente, nos diversos contextos históricos, há uma atribuição de poderes para cada fase da vida. Para Debert96,

Essas categorias são constitutivas de realidades sociais específicas, uma vez que operam recortes no todo social, estabelecendo direitos e deveres diferenciais no interior de uma população, definindo relações entre as gerações [...]. Mecanismos fundamentais de distribuição de poder e prestigio no interior das classes sociais têm como referência a idade cronológica. Categorias e grupos de idade implicam, portanto, a imposição de uma visão de mundo social que contribui para manter ou transformar as posições de cada um em espaços sociais específicos.

É comum a articulação do critério de idade cronológica com os critérios de classe social, etnia, profissão e educação para que a sociedade estabeleça a posição dos indivíduos e dos grupos que serão internalizadas pelas pessoas e pelas instituições sociais97.

Cabral98 evidencia a complexidade que envolve o

[...] processo histórico-cultural da construção das idades, [assinalando que as] manipulações nas classificações etárias envolvem poderes associados aos diferentes momentos do ciclo da vida, relativamente às disputas entre gerações e aos interesses das classes sociais. A cronologização da vida se configura um campo aberto, e definições de velhice variam conforme se articulam essas forças em determinado contexto histórico e dependem das representações dominantes nas práticas associadas à definição de uma faixa etária.

As sociedades, em diferentes momentos históricos, atribuem significados diversos às etapas do curso da vida dos indivíduos, num movimento de identificação e invenção de estágios dentro de uma ordem cronológica – infância, juventude, velhice. A respeito disso, Ariès afirma que “[...] a cada época corresponderiam uma idade privilegiada e uma periodização particular da vida humana: a ‘juventude’ é a

95 NERI, 2001a. 96 DEBERT, 1994. 97 NERI, op. cit.

idade privilegiada do século XVII, a ‘infância’, do século XIX, e a ‘adolescência’, do século XX.”99

Nas sociedades ditas primitivas, onde não existe essa concepção cronológica presente no pensamento ocidental, o que orientava a ação dos seus membros era a concepção de maturidade100 dos indivíduos e não ‘datações detalhadas’. Nesses contextos, é possível encontrar contradições acerca da velhice semelhantes àquelas encontradas na nossa sociedade e expressas de maneira muito cruel.

De acordo com Bobbio101, em algumas sociedades, por serem considerados um obstáculo ao progresso, os velhos eram comidos pelos sujeitos mais jovens da comunidade ou colocados nas academias102, o que se constituía em uma forma de ‘embalsamá-los’.

A decrepitude e a fealdade física não lhes escapam e por isso os índios Nambikwara têm uma única palavra para dizer jovem e belo e também uma só palavra para dizer velho e feio. Os turcos mongóis apenas respeitam os velhos que gozem de boa saúde, desprezando os outros, chegando por vezes a abandoná-los e matá-los por sufocação. O velho que se torna inútil pelos seus males físicos ou mentais é frequentemente eliminado, porque representa um encargo que as sociedades em precário equilíbrio alimentar não podem suportar [...]103.

Nas sociedades tribais, a exemplo dos Suyá104 ou dos Guayaki105, os grandes rituais de passagem são de trajetória da vida e essa é marcada não por princípios biológicos, mas pelo lugar social que aquela sociedade considera fundamental para marcar a saída da infância ou a entrada na adolescência e na velhice.

Na tribo Suyá (Brasil), os velhos vivem na marginalidade (perigosa ou socializada) e são vistos como feiticeiros ou como palhaços. Em ambos os casos, precisam fazer palhaçadas, dançar, gritar, cantar em falsete, tirar a roupa ou fazer

99 ÁRIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p. 48. 100 O nível de maturidade implica uma avaliação biológica dos indivíduos, as atividades econômicas,

sociais, políticas e religiosas realizadas.

101 BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: de senectude e outros escritos autobiográficos. Rio de

Janeiro: Campus, 1997. p. 139.

102 Local com vocação para o ensino, onde os velhos se reuniam para discutir as próprias idéias.

Anatole France, um escritor francês, nascido em 1844, dizia que os velhos amam demais as próprias idéias e por isso eram obstáculos ao progresso. Anatole France morreu aos 80 anos.

103 MINOIS,1999, p. 23-24.

104 SEEGER (1980), a partir de trabalho de campo realizado com os Suyá, tribo indígena localizada

no Mato Grosso, discute o papel dos velhos e sugere algumas hipóteses relacionadas com a variação de status dos velhos em diferentes sociedades. De acordo com Seeger (1980, p. 63): “[...] a classe de idade dos velhos Suyá assemelha-se a alguns sistemas africanos de grupo de idade, em que os velhos transcendem o sistema de idade e tornam-se mediadores”.

105 Tribo indígena situada na América do Sul que abandona seus velhos durante os movimentos

gestos obscenos, para divertir os outros membros da tribo e, com isso, conseguir comida. De acordo com Seeger106, as palhaçadas, e comer alimentos proibidos para outros membros, não são considerados comportamentos desviantes pelo povo Suyá. Ao contrário, são esperados e apreciados pela tribo.

A sociedade Aranda107 é um exemplo de sociedade em que os velhos – “homens de cabelos grisalhos” - são respeitados pela responsabilidade de transmissão das experiências práticas para os outros membros do grupo108. O respeito da sociedade Aranda em relação aos seus velhos está associado à memória social que o velho possui, e pela transmissão oral do seu conhecimento109.

Para os Bambara do Mali, a velhice representa uma conquista e o envelhecimento um processo durante do qual o homem aprende, enriquece e fica, cada vez mais, nobre. Nesse grupo, a vida social é organizada de acordo com o princípio da “senioridade”, sendo a idade, portanto, um elemento determinante da posição social dos indivíduos na sociedade: envelhecer é conquistar um lugar socialmente valorizado.

Ser velho significa ter vivido, ter criado filhos e netos, ter acumulado conhecimento e ter conquistado, através destas experiências, um lugar socialmente valorizado. Os Bambara constituem um exemplo atual da situação privilegiada dos idosos em algumas sociedades africanas. Para os

Bambara, a idade é um elemento determinante da posição de cada

indivíduo na sociedade. Toda a vida social é organizada segundo o princípio da senioridade. Considera-se que os mais velhos estão mais próximos dos ancestrais e, por esta razão, detêm a autoridade. Respeito e submissão marcam o conjunto de atitudes e comportamentos dos mais jovens para com os mais velhos110.

No entanto, pesquisas de caráter etnológico fazem referência a sociedades primitivas como os Yakute, na Sibéria, os Ainos no Japão e os Thoinga, na África, que matam seus velhos de fome ou de frio. Os Koryak e os Chukchee, localizados na Sibéria matam seus velhos durante uma cerimônia especial, enquanto os Breek e Crow localizados na África do Sul abandonam os velhos em

106 SEEGER, 1980.

107 Grupo de caçadores e coletores que vivem nas florestas australianas.

108 Nas sociedades primitivas a transmissão das suas memórias só é possível através do relato oral

dos mais velhos, uma vez que essas culturas não possuem a escrita e, portanto, não registram, em documentos, os fatos e acontecimentos sociais.

109 MERCADANTE, Elizabeth. A velhice: culturas diversas, temporalidades distintas. A Terceira idade.

São Paulo, ano X, n. 17, p. 5-13, ago. 1999.

110 UCHOA, Elizabeth. Contribuições da antropologia para uma abordagem das questões relativas à

uma cabana, fora da aldeia. Os esquimós “esquecem-nos na neve ou em um iglu para que morram de frio111.

O comportamento e as atitudes dos esquimós em relação aos mais velhos revelam um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que são carinhosos e afetuosos com os parentes mais velhos, os mais jovens são capazes de abandoná-los em uma estrada ou ajudá-los a cometer suicídio por afogamento ou estrangulamento. “Esta aparente crueldade enraíza-se em uma concepção particular da vida, de morte e da própria essência do ser humano, podendo co-existir, sem contradição, com atitudes de interesse e suporte aos mais velhos na comunidade.”112

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