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O cronotopo nas dinâmicas de intersubjetividade mediada por fórum online

CAPÍTULO 2 – DINÂMICAS DE INTERSUBJETIVIDADE EM PROCESSOS DE NEGOCIAÇÃO E PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS

2.2 O cronotopo nas dinâmicas de intersubjetividade mediada por fórum online

Bakthin (1965/2014) elaborou, por uma questão metodológica, o conceito de cronotopo para analisar como os eventos e as ações se desenvolvem nos gêneros literários e verificar como o conteúdo temático determina um campo composicional que é relativamente estável. Observou que o gênero e as multiplicidades de gêneros são determinados pelo cronotopo. Nos romances gregos, por exemplo, verificou que não havia localização histórica do tempo, a contiguidade temporal era realizada por tipos de vínculos. No romance biográfico, constatou que o tempo opera em longos períodos, os acontecimentos ocorrem em um tempo histórico, no entanto, o espaço é imóvel, o mundo permanece sem alteração. No romance realista, Bakthin (1965/2014; 1924/2010a) verificou que a formação do humano está indissoluvelmente ligada à formação histórica e social e que o preenchimento do espaço não é mais visto como um fundo estático, mas um todo em formação, sendo possível compreender as relações entre as pessoas e o seu mundo. Seguindo essa lógica, Bakthin (1929/2010b) concluiu que “as formas dos signos estão condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que as interações acontecem” (p. 45), isto é, os signos fazem parte de um sistema de comunicação que é indissociável de seu acontecimento, como enunciação. Além disso, é por meio da configuração do tempo e do espaço da enunciação entre diferentes consciências em interação que “as diferentes atividades sociais se definem também por vários tipos de tempos e espaço fundidos” (Morson & Emerson, 2008, p.

386). Observando que o ritmo e a organização dos cronotopos se diferem em cada cultura ou microcultura.

O conceito de cronotopo tem sido utilizado nos estudos em psicologia e na educação, na compreensão da dimensão temporal e espacial de situações de aprendizagem formal e informal. Matusov (2001, 2015), por exemplo, chama atenção para a configuração de dois tipos de cronotopos na sala de aula: a) nas relações interpessoais entre professor e estudantes, quando há dominância da fala do professor, sem que haja possibilidade de alternância de vozes; e b) na disposição dos materiais no espaço físico, os uniformes, layout da sala, mobília, bem como horários, cronogramas etc., que podem limitar ou facilitar as interações, incidindo no modo como é estabelecido o espaço intersubjetivo. Neste estudo, por exemplo, observamos que a disposição dos computadores no laboratório de informática é idêntica à da sala de aula, os estudantes ficam enfileirados, as mesas são voltadas para o professor, e o coordenador do laboratório fica na parte posterior, monitorando as atividades dos estudantes. Possivelmente, isso restringe o campo de ação tanto do professor quanto dos alunos.

Em consonância, pode-se pensar em uma pedagogia dialógica que valorize os aspectos ontológicos do cronotopo em detrimento das indicações prescritas nos currículos e nas aulas convencionais. Matusov (2015) propõe a noção de “A-chronotope” (p. 69) para focar os elementos pedagógicos e educacionais que dificultam o desenvolvimento de novas metodologias pelo professor, as quais refletem em aulas monológicas onde não existem relações de mutualidade. Para ele, a pedagogia dialógica deveria se concentrar em ações para a agencialidade, na legitimação do saber dos estudantes e de sua criatividade e originalidade, de modo que a busca por materiais autênticos e vinculados ao cotidiano dos estudantes pode gerar o engajamento e a motivação, podendo ser uma alternativa para transcender objetivos curriculares predefinidos.

Por isso mesmo, Matusov (2015) considera que os estudantes devem estar ontologicamente engajados na atividade para que os questionamentos sejam legítimos, para que alcancem um alto grau crítico e para que as produções discursivas abarquem as contribuições e ações uns dos outros. Para o autor, um melhor aproveitamento dos discursos gerados em conjunto produz novas questões que, por sua vez, direcionam os interlocutores para princípios de reciprocidade e transformações da qualidade das reflexões. Isso ocorre, por exemplo, quando as ações anteriores de todos contribuem para que convirjam da análise do percurso da própria tarefa para uma meta-análise (Barbato, Beraldo & Lanutti, aceito), transitando de discussões com enfoque no material didático e

perguntas organizadas pelo professor da disciplina para uma crítica que relaciona o que ocorre na tarefa e nas práticas culturais, analisando os detalhes procedimentais da atividade, de sua organização e de como esse conhecimento está sendo produzido por eles e de potenciais transposições para outras instâncias do cotidiano.

Também podemos considerar o cronotopo de uma forma expandida. Renshaw (2013) explica que o momento histórico, econômico e social influencia as políticas educacionais que são reproduzidas no currículo. Como evidenciado por Bakthin (1965/2014; 1924/2010a), o contexto de fundo do cronotopo não é passivo, isto é, as ideologias vão atuar na produção do discurso, seja ele das secretarias de educação, professores, estudantes, pais, sociedade ou conselhos.

Renshaw (2013) destaca que o início do século XX foi caracterizado por uma inflexibilidade dos espaços e hierarquia nas relações entre professores e alunos, na segmentação do tempo e delimitação das atividades cronologicamente. Após os anos 1960, isso veio a ser reconsiderado a partir de ideias construtivistas em que “as atividades guiadas predominaram e onde os professores tornaram-se observadores e facilitadores das atividades da sala de aula” (Renshaw, 2013, p. 60). Nesse caso, o cronotopo tornou-se mais negociável, flexível, conversacional e menos formal. Nas décadas seguintes, observou-se aumento da competitividade, abertura de mercado, privatizações, neoliberalismo, burocracias no mundo, e isso delineou um novo enquadre de mudanças na educação. Conforme Renshaw (2013), a flexibilidade e a eficiência no uso do tempo tomaram lugar na vida econômica da sociedade. Como resultado, foi estabelecido um sistema de medidas e monitoração que reflete a aplicação de testes, a memorização de conteúdos, o ranqueamento etc., fortemente presentes no mundo contemporâneo. O autor ressalta que é preciso levar em conta que os espaços de aprendizagem dizem “respeito à forma como os indivíduos criam relações de proximidade e distanciamento, formalidade e informalidade, intimidade e indiferença, autoridade e consideração” (idem, p. 58), e isso requer novos repertórios, transferência de responsabilidade e práticas, além de recursos de aprendizagem que podem ser aplicados em outras instâncias sociais. O cronotopo poderia emergir como espaço-tempo híbrido, isso envolveria o discurso das políticas públicas, discussões sobre o currículo, compreender a perspectiva dos professores e conhecer as necessidades dos estudantes na escola e em suas comunidades.

Os argumentos trazidos mostram que o cronotopo não se relaciona a um lugar físico, refere-se ao espaço-tempo do existir-evento, dos atos como atividade (Bakthin, 2010a), que é determinado pelas relações que são estabelecidas entre as pessoas e os

produtos que são gerados por elas: discursos, conteúdos, objetos, produtos etc. Na Teoria dos Atos, Bakthin (1929/2010a) define os atos concretos como sendo únicos e irreptíveis, o que supõe um agir situado e intencional e dos atos como atividade, o que há em comum entre os diversos atos de uma atividade, portanto, repetível, como pontua Sobral (2005). Leontiev (1997/2009) utiliza o conceito de ação e atividade, sendo essas distintas. A primeira é finita, refere-se a ações cotidianas, repetíveis. Já a segunda não é um processo meramente aditivo, mas uma sequência de ações a qual inclui um objeto (motivo) em um sistema dinâmico que se inicia na atividade prática, mas se torna processual quando o sujeito se engaja conscientemente, do mesmo modo, um agir situado e intencional.

Cabe agora definir o que entendemos por cronotopo nas dinâmicas de intersubjetividade em contextos mediados por tecnologias digitais. Nosso argumento é o de que práticas educativas em ambientes online impactam na performance e na forma como a intersubjetividade é construída. Uma plataforma, por exemplo, pode ser acessada a qualquer tempo, em qualquer lugar e por meio de qualquer tecnologia digital conectada à rede, de modo que a noção de cronotopo ganha nova significação, onde as expertises podem ser colocadas e compartilhadas em um tempo-espaço mais estendido e democrático. Fóruns, por exemplo, são recursos que permitem a produção coletiva de conteúdos, em que os participantes podem ter acesso a eles em tempo real ou de modo assíncrono, o que permite reflexão do que foi produzido individualmente e coletivamente. Nessas interações, em atividades com objetivos comuns, a intersubjetividade gera e é gerada pela cognição distribuída. Os participantes, na medida em que avançam na tomada de decisão, passam de uma dinâmica por acúmulo de informações para uma dinâmica ampliada para diferentes análises da situação, a partir de outras perspectivas, criando possibilidades de aplicação em outras circunstâncias. Em outras palavras, como um exercício de formulação de ideias e de produção de significados que são recontextualizados quando a atividade avança. A atividade colaborativa em fórum implica, então, discussão de um problema ou evento que suscita perguntas sobre o que ocorreu e o que as pessoas dizem sobre ele. Isso desencadeia a busca de uma solução com a utilização de conhecimentos prévios e procedimentos conhecidos e com a contribuição conjunta dos participantes para a criação de novas possibilidades (Barbato, Beraldo & Lanutti, aceito).

Atividades desenvolvidas com metodologias participantes buscam proporcionar condições de socialização para que as pessoas utilizem esse tipo de aprendizagem e

possam praticar juntas a solução de situações que apresentam combinações de ações que promovem o debate em dado cronotopo. Esse “fazer juntos” entre colegas, e muitas vezes sem a participação direta do professor da disciplina, também é uma forma de avançar nas trocas faladas e/ou escritas. As quebras de comunicação entre os interactantes, por exemplo, podem desencadear a negociação de significados, oportunizando um fazer orientado para o trabalho em grupo, com maior possibilidade de autonomia intelectual e autoria de cada participante. Ainda, pela possibilidade de experimentar diferentes gêneros discursivos, como conversação informal, escrita formal, argumentação, exposição de ideias etc.