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Cuidado e infância: o lugar da criança na família e sua interface com

1. Introdução e contextualização do tema

1.2. Cuidado e infância: o lugar da criança na família e sua interface com

Fruto dos ideários da modernidade (igualdade, liberdade e racionalidade) e do processo de urbanização, o desenvolvimento da família conjugal moderna no Brasil se intensificou na segunda metade do século XIX, em detrimento das extensas famílias tradicionais patriarcais, fundamentadas na autoridade e autoritarismo do pai, emblemáticas das práticas canavieiras do Nordeste na era colonial (Freyre, 1978; Vaitsman, 1994; Scott P, 2005).

Concebida como o ideal de família burguesa, ela era caracterizada por um casamento oriundo da livre escolha e do amor entre os cônjuges e centrada nos filhos (Singly, 2010). Nessa transição, a criança sai de um lugar periférico, secundário, ou de estorvo (Ariès, 1981), para um de destaque, remodelando toda a família. O homem, “chefe de família”, assumiu a função de provedor e protetor da esposa e dos filhos, que ocupa o espaço público por meio do trabalho remunerado – principalmente por

profissões liberais –, e a mulher, “rainha do lar”, foi destinada ao ambiente privado, sendo a responsável pela manutenção da casa, necessidades afetivas da família, cuidado e educação dos filhos. As práticas e os valores eram assim justificados como complementares e funcionais, legitimados pela naturalização da condição biológica segundo o sexo (Vaitsman, 1994).

A partir do século XX, se intensificaram e se difundiram os atributos pessoais como naturais para cada sexo, constructos sociais dos referenciais de gênero tidos como tradicionais: as mulheres como seres frágeis, dóceis, delicadas e mais afetivas e os homens como fortes, robustos e detentores das capacidades intelectuais; os quais invisibilizava o trabalho da mulher e a mantinha dependente do parceiro, perpetuando a desigualdade social de gênero (Vaitsman, 1994).

Entre o século XIX e a segunda metade do século XX, a harmonia entre a valorização da infância e as expectativas das funções de gênero na família conjugal moderna, típicas da camada média urbana burguesa, ocorreu diante da sinergia de movimentos políticos, médicos-higienistas e sociais. A conscientização dos governos da alta mortalidade infantil em diversos países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil, atribuíram à infância o cerne e a projeção do futuro da sociedade e da nação (Nunes, 2011; Freire, 2009). Combater a mortalidade infantil então, passou a fazer parte do “projeto modernizador republicano, que depositava na conservação das crianças, entre outros elementos, esperança para a viabilidade da nação” (Freire, 2008: 154).

No campo da saúde, o movimento médico-higienista e a puericultura se apropriaram da infância e foi por meio da criança que o discurso médico conseguiu penetrar na família através de normas e regras rígidas, propondo uma reformulação familiar (Novaes, 2009; Nunes, 2011). Assim como os higienistas, a puericultura “(...) desenvolve-se em fins do século XIX, na França, e se propõe a normatizar todos os aspectos que dizem respeito à melhor forma de se cuidar de crianças, tendo em vista a obtenção de uma saúde perfeita” (Novaes, 2009: 123). Fica evidente que a principal interlocutora da puericultura é a mãe e não a criança. Respaldada pelo conhecimento validado cientificamente, a puericultura propôs um ideal de maternidade, atribuindo às mulheres a sobrevivência primordial por meio do aleitamento materno e a educação; e de paternidade, realocando o pai de proprietário a provedor, cuja função principal seria de proteção material ao filho (Orlandi, 1985; Costa, 1999; Freire, 2009; Novaes, 2009).

Dessa forma, a exaltação e culto ao amor materno, assim como as capacidades biológicas de procriação e a amamentação femininas foram valorizadas, agora com preceitos científicos, reforçando o papel da mulher como “devota do lar”, esposa e mãe. Nesse processo, cria-se um conjunto de normas que balizaram a configuração de um modelo do “bom pai”, e principalmente da “boa mãe”, a ser aprendido e seguido, e nele, a mulher passa a ser a responsável pelo bom crescimento e desenvolvimento do filho e culpada em caso de insucesso (Badinter, 1985; Almeida; Novak, 2004).

No âmbito social, destaca-se o movimento feminista maternalista, que associava a maternidade com os preceitos médico-científicos e com o ideário da mulher moderna. Por meio do enaltecimento da maternidade como função social e política, validada pela ciência numa aliança com os discursos médicos, algumas mulheres, sobretudo das camadas urbanas de maior nível socioeconômico, viam uma possibilidade de valorização social e redefinição das relações de poder com seu marido no ambiente doméstico (Freire, 2008, 2009).

O aprofundamento do processo de modernização da sociedade, que emergiu no pós-guerra por meio dos avanços da industrialização e urbanização, propiciou uma maior inserção da mulher no mercado de trabalho; disseminação de creches e babás para cuidarem dos filhos na ausência da mãe; tendência de famílias menores com queda da taxa de natalidade; possibilidade de controle e planejamento da prole com as práticas de contracepção e, mais recentemente, de concepção e maior acesso, principalmente das mulheres da classe média, ao ensino superior, em carreiras tradicionalmente masculinas (Vaitsman, 1994; Scavone, 2001; Scott P, 2005; Guzmán, 2008). Segundo Scavone (2001), é na segunda metade do século XX que a maternidade passa a ser fruto de uma

escolha (tanto no número, quanto no momento ou na decisão de ter ou não filhos),

sendo este um fenômeno moderno e contemporâneo. A inserção da mulher no mercado de trabalho culmina na conciliação – por vezes conflituosa – da vida profissional, com o exercício da maternagem e as atividades domésticas.

Tais mudanças na sociedade e nas possibilidades de diversas feminilidades advindas em parte pelas proposições e lutas do movimento feminista culminam na crise do padrão dominante da família conjugal moderna, característico das camadas médias urbanas. Segundo Vaitsman (1994: 17), “(...) assistiu-se a um movimento não de modernização da família, mas sim de crise e transformação da típica família moderna”,

sendo substituída por um universo em que coexistem práticas e valores antigos, com uma gama plural e flexível de possibilidades, conteúdos e formas.

No âmbito dos segmentos da camada média urbana, predominou-se na década de 1950 e nas duas décadas seguintes, um padrão tradicional e hierárquico, em que se valorizava a ordem; a diferença intrínseca do gênero e seu poder (em que o homem tinha privilégio pelo trabalho fora e por ser o provedor financeiro); a relação de pais e filhos fundada na disciplina e onde a identidade era fundada na posição (seja pela função, gênero, sexo ou idade), resquícios da família conjugal moderna. Já a partir da década de 1980, predominou outro padrão com uma prerrogativa de maior igualdade entre os gêneros nas relações conjugais e também nas relações parenterais, de pais e filhos; em que os sujeitos, apesar da diferença de gêneros – que implica em desigualdades de oportunidade e de poder nas relações – são iguais como indivíduos e, assim, a identidade está fundada na possibilidade de escolhas, no comportamento, linguagem, moda, estilo etc. (Figueira, 1987; Singly, 2010).

Na família com premissa igualitária, diluem-se as atribuições de gênero e geração, e sobressai o individualismo. Nesse processo, “O sujeito é, então, a parte mais importante da dimensão invisível da mudança social (...)” (Figueira, 1987: 14). Esta transformação da família de camada média urbana brasileira, porém, não é linear e apresenta conflitos, pelo seu ritmo acelerado, a convivência do antigo com o novo e a dissintonia com as mudanças da subjetividade; gerando angústia e mal estar aos sujeitos (Figueira, 1987; Vaitsman, 1994).

O sinergismo entre a acentuada entrada da mulher no mercado de trabalho, com o questionamento feminino das relações de gênero na família e o ideário de maior igualdade – entre gênero e geração – por parte dos homens e mulheres, contribuíram para a (re)discussão do lugar e dos atributos do pai, conduzindo a uma maior expectativa da presença masculina na vida doméstica que, quando realizada, passa a ser descrita como “paternidade participativa” ou “nova paternidade”. Ela se caracteriza por uma maior participação do homem nas atividades domésticas e paternais, estas envolvendo maior vínculo afetivo, mais contato, tempo, dedicação; maior presença no cuidado e na educação com os filhos (Quadros, 2006). Estudos recentes sobre a paternidade visaram alcançar a dimensão simbólica de ser pai, na perspectiva do homem. Foi evidenciado que a paternidade tornou-se fundamental na constituição da

identidade masculina ocidental atual (Quadros, 2006), porém, Costa (2002) salientou que a valorização e incorporação da paternidade na masculinidade ocorreram principalmente nos homens casados, heterossexuais e monogâmicos.

Alguns estudos sobre nova paternidade no Brasil circunscritos nas camadas populares revelaram a permanência de valores tradicionais masculinos, relacionando a paternagem ao pai provedor; a vivência da paternidade como um atributo de ordem mais moral, de responsabilidade, com preocupações de bem estar, subsistência e proteção maior do que a dimensão afetivo-emocional; e que o laço de paternidade é mais diretamente influenciado pela relação com sua parceira e pela experiência pessoal como filho, do que com o vínculo direto a sua criança (Costa, 2002; Bustamante; Trad, 2005; Freitas et al., 2009).

Isso denota que, para esses homens, os aspectos subjetivos relacionados com o amor, carinho e afeto não são a priori associados ao significado de pai. Sob esse ponto de vista, o modelo de pai provedor é o modelo do bom pai, imagem esperada socialmente pelo homem. (Freitas et al., 2009: 88).

Já no contexto das famílias de camadas médias urbanas, estudos evidenciam algumas rupturas com a paternagem alicerçada pelas identidades masculinas tradicionais de protetor e provedor; revelada a maior presença paterna na vida doméstica e maior envolvimento no âmbito afetivo. Apesar de uma maior participação nos afazeres domésticos, no cuidado e na educação ao filho e um maior vínculo afetivo pai- filho, Quadros (2006), ao estudar homens de camada média urbana, identificou uma preferência desses pais às atividades lúdicas e educativas, reforçando que a proximidade com o filho era decorrente de funções de cunho emocional e intelectual. Eles também preferiam atividades de higiene e alimentação do filho frente às atividades domésticas da casa, muito embora fosse a mulher que desempenhasse mais ambas as funções. A autora localiza um grande norteador de desigualdade social de gênero, em que o homem pode exercer o poder de escolha das atividades que lhe dão mais prazer ou que lhe agradam mais, justificando a habilidade e/ou competência da esposa. Os pais mais participativos foram encontrados nos casais cujas negociações e ponderações eram frequentes, indicando que a relação conjugal mais equânime balizava uma corresponsabilização maior na relação pai-filho (Quadros, 2006).

O envolvimento dos pais de forma mais afetiva com seus filhos mostrou-se influenciado pela experiência pessoal deles com seus respectivos pais. A importância do âmbito geracional fica evidente na fala de Badinter (1993: 172): “A maioria [dos homens] se diz em ruptura com o modelo de sua infância e não quer, por nada, reproduzir o comportamento do pai, considerado ‘frio e distante’. Eles almejam ‘reparar’ sua própria infância”. Isso originou algo sem precedente na história, a construção de um novo referencial de paternidade, aparentemente destituída de modelos, ou melhor, a busca de uma identidade num “terreno desconhecido” (Sutter; Bucher-Maluschke, 2008; Velásquez; Campos, 2008).

Alguns autores avançaram nos estudos e reflexões acerca da nova paternidade, e encontraram mais um caráter de uma ajuda à mulher-mãe, que uma real mudança no elo pai-filho num ideal de igualdade nos afazeres domésticos: “Los varones califican su trabajo en el hogar como ‘ayuda a la esposa’, es decir, como si no fuese parte de su responsabilidade (...)” (Guzmán, 2008: s/n). O caráter de ajuda e o distanciamento dessas atribuições tidas como “femininas”, mostram a permanência de valores e práticas da família conjugal moderna tradicional, e a preponderância da responsabilização e culpabilização da mulher nos cuidados infantis (Guzmán, 2008; Seabra, 2009).

A complexidade e os paradoxos envolvendo a nova paternidade são refletidos e reproduzidos pela imagem do novo pai pela mídia (Santos, 2005). A autora, ao analisar três revistas com foco na parentalidade (Pais e Filhos, Crescer em Família e Meu Nenê em Família), identificou que a maioria dos artigos são dirigidos à mãe; nas poucas imagens dos pais com as crianças, se privilegia fotos dos pais brincando, passeando, jogando ou acariciando seus filhos, em detrimento ao trabalho doméstico. Nos artigos que focam o que fazer com os filhos no término da licença maternidade, o pai não é citado (Santos, 2005).

Por fim, para polemizar, a nova paternidade é criticada por alguns pediatras franceses, que reforçam o papel primordial e insubstituível da mulher como mãe, e assim, a paternidade mais participativa aparece como potencial ameaça desse lugar tradicionalmente feminino. Para eles, o melhor para a criança não é ter uma “duplicata da mãe”.

O sonho de um bebê não é ter duas mães, mas o de se aconchegar nos braços de sua mãe e sentir o pai cercar a ambos com sua presença

protetora. É preciso parar de querer a qualquer preço converter os pais em pais maternais. Essa tendência atual é inteiramente ridícula e despropositada. O papel do pai é proteger a mãe, valorizá-la como mãe e como mulher. É preciso que cada um tenha o seu lugar. Para a criança o melhor dos papais é aquele que ama e protege... a mamãe! (Antier9 apud Badinter, 2011: 124).

Diante da literatura científica sobre paternidade, é pouco conhecido o lugar dos homens-pais em relação à vacinação de seus filhos, assim como suas concepções sobre as vacinas. Os estudos referentes ao tema vacinação infantil foram realizados em sua grande maioria por meio dos depoimentos das mães (Benin et al., 2006; Mills et al., 2005).

Isso não é exclusivo do campo das imunizações; na literatura científica, o cuidado mostrou-se tão atrelado no imaginário social como atribuição feminina que Gutierrez e Minayo (2010), ao levantar a produção acadêmica sobre cuidado em saúde no âmbito da família, encontraram na maioria dos estudos, independente da metodologia, o interlocutor constituído pela mulher, reforçando “tendências históricas e sociais de reproduzir a figura feminina como a principal responsável pelo cuidado da saúde no lar” (Gutierrez; Minayo, 2010: 1500). Vale ressaltar que esta tendência parte tanto dos pesquisadores – que inviabilizam a possibilidade do olhar da família e do cuidado em saúde pela ótica do homem – quanto das próprias mulheres que “se autodefinem como cuidadoras, vendo-se na posição de responsabilidade pelos cuidados da família” (Gutierrez; Minayo, 2010: 1505).

Diante desse cenário multifacetado, que inclui a valorização da infância, transformações socioculturais da família conjugal moderna, a apropriação médica da infância, o advento da nova paternidade e a tendência científica e sociocultural que tende a invisibilizar o homem como interlocutor do cuidado em saúde da criança, este estudo optou por privilegiar o casal, dando voz ao homem em igual peso que a mulher, na compreensão da interface (não) vacinação e cuidado em saúde infantil em famílias de camadas médias e alta escolaridade de São Paulo-SP.

Além disso, as camadas médias urbanas revelaram especificidades quanto ao padrão sociocultural, com a valorização da biografia, da individualidade e da autonomia dos sujeitos, e conforma expectativas sociais que tendem a ser reproduzidas por outros

grupos da sociedade (Velho, 1987, 1994). Diante disso, este estudo buscou compreender o processo de vacinar ou não os filhos por meio do aprofundamento de como o cuidado em saúde e vacinação na criança se estabeleceram na dinâmica dessas famílias e sua relação com as práticas de saúde e imunização vigentes no país na atualidade.

Com base nesse contexto, foram elaboradas as seguintes questões norteadoras dessa investigação:

 Como se conformou o processo de (não) vacinação nos filhos em casais de famílias de camadas médias e alta escolaridade de São Paulo?

 Como ocorre a interface entre a escolha pela (não) vacinação dos filhos e o cuidado infantil nessas famílias?

 Quais são as concepções sobre a vacinação infantil de pais e mães que vacinaram, selecionaram ou não vacinaram os filhos, nesse segmento social?  Como a interface (não) vacinação e cuidado infantil se estabelecem na dinâmica

familiar, nas relações de gênero e geração?

 De que forma essas dimensões sobre vacinação e cuidado infantil dizem respeito aos padrões socioculturais atualmente em curso na sociedade?