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4. Método e campo da pesquisa

4.2. Percurso analítico-interpretativo

O processo percorrido teve como base os pressupostos de contextualização dos depoimentos e dos participantes do estudo; valorização do material empírico coletado, com uma postura de respeito ao que foi dito, pois sempre terá racionalidade e sentido; empatia, levando à compreensão das razões que fizeram com que o sujeito da pesquisa elaborasse o relato da forma que o fez e tratar a interpretação de dados como algo em aberto e passível de compartilhamento com os participantes da pesquisa (Minayo, 2008).

A trajetória analítico-interpretativa iniciou-se com a leitura extensiva dos dados empíricos. Ela partiu da leitura compreensiva de todas as entrevistas transcritas, de forma minuciosa e atenta, até atingir a impregnação de seu conteúdo, que possibilitou a apreensão da lógica interna, das particularidades e, ao mesmo tempo, da visão de conjunto. Após a impregnação do material empírico, foi novamente realizada a leitura compreensiva, agora direcionada pela classificação conforme a escolha pela vacinação dos filhos (casais que vacinaram, que selecionaram e que não vacinaram os filhos), na intenção de alcançar uma visão mais ampla dos sentidos e significados de cada grupo, assim como as possíveis convergências e divergências. No momento seguinte, a leitura se conformou de acordo com o sexo dos entrevistados, com o intuito de explorar as relações de gênero nos casais, referentes à conjugalidade e parentalidade envolvidas no processo de (não) vacinação dos filhos, no interior da família.

Após a imersão na leitura das transcrições, foram feitos recortes temáticos que culminaram na identificação das categorias empíricas (tabela 2). Uma parte das categorias empíricas era prevista pelos objetivos do estudo e conformação do roteiro, como o universo da vacinação infantil (concepções, práticas, valores, influências etc.),e como a vacinação do filho está inserida no cuidado infantil dessa família na dinâmica familiar, nas relações de gênero e geração. Outras categorias empíricas, porém, emergiram dos dados empíricos, e se destacaram pela frequência e intensidade que apareceram nos relatos dos participantes de pesquisa, como as concepções sobre risco e proteção em saúde, sobre autonomia nas decisões de saúde do filho, sobre as práticas em saúde envolvendo o parto e os cuidados infantis e o papel das informações em saúde, sobretudo as disponíveis na internet.

Após a impregnação e elencadas as categorias empíricas, foi realizado o processo de organização das transcrições das entrevistas, através da ferramenta Nvivo9, versão em português. Trata-se de um programa que auxilia na ordenação de cada fragmento dos depoimentos nas categorias empíricas identificadas. Por meio desse

software, o material empírico foi organizado de duas maneiras: por entrevista, em que

foi realçado o fragmento de fala que anuncia uma ou mais categoria empírica e por categoria empírica, compostas pelos fragmentos dos depoimentos.

Tabela 2: As categorias de empíricas

CATEGORIAS PREESTABELECIDAS

Universo da vacinação

Concepções e práticas no tocante à vacinação; Valores atribuídos às vacinas;

Sentimentos perante a decisão de vacinar ou não;

Concepções sobre os serviços públicos e privados de vacinação;

Influências para a tomada de decisão sobre a vacinação infantil;

Percepções e atitudes sobre o meio externo (família e círculo social) no tocante à tomada de decisão sobre vacinação.

O cuidado e a escolha da (não) vacinação infantil na família

Relações parentais (dimensões de maternidade, paternidade), conjugal, e de geração.

CATEGORIAS QUE EMERGIRAM DOS DADOS EMPÍRICOS Concepções sobre riscos e proteção acerca da vacinação

Concepções sobre autonomia nos cuidados em saúde da criança

Práticas de saúde

Percepções sobre as posturas dos médicos e outros profissionais de saúde no tocante à vacinação;

Concepções sobre a obstetrícia e as práticas no parto; Percepções sobre as práticas atuais de saúde à criança.

Informação em saúde e sobre vacinação

Por meio do recurso de análise de conteúdo temático (Fontana; Frey, 2000), os passos seguintes foram: confrontar as categorias empíricas com os referencias teóricos elencados nesse estudo [cuidado por Ayres (2001, 2003, 2004), família na camada

média urbana e sua interface com a sociedade complexa contemporânea por Velho (1987, 1994) e gênero por Scott JW (1995, 2005)]; a construção das categorias analíticas; o cotejamento com a literatura científica; a busca pela compreensão de sentidos socioculturais mais amplos, subjacentes às falas dos participantes da pesquisa: “uma reinterpretação, ou seja, a interpretação das interpretações” (Gomes et al., 2005: 207); e, por fim, a elaboração da síntese interpretativa.

As categorias analíticas construídas nesse estudo foram: (1) a tomada de decisão sobre a (não) vacinação dos filhos; (2) o cuidado infantil e a (não) vacinação; (3) a (não) vacinação infantil na vida privada e (4) a vacinação infantil: reflexões sobre a relação indivíduo-coletivo; cada uma interpretada e sintetizada em capítulos, após a descrição dos casais pesquisados.

O aporte da antropologia interpretativa geertziana

No processo analítico-interpretativo, o olhar aos depoimentos, ao contexto e à conexão destes com o momento histórico e sociocultural, se guiou pela antropologia interpretativa ou antropologia hermenêutica de Clifford Geertz.

Geertz deixou seu legado ao escrever sua principal obra “A interpretação da Cultura” em 1973, sendo considerado o protagonista da virada interpretativa na Antropologia (Azzan Jr, 1993; Fonseca, 2008). Ele defende que a pesquisa e a ação antropológicas, que tradicionalmente foram fundamentadas numa atividade descritiva e observacional, devam ser norteadas por meio de um processo interpretativo, por uma busca de significados como forma de conhecimento: a ciência interpretativa (Azzan Jr, 1993; Fonseca, 2008).

O autor propõe a metodologia hermenêutica-interpretativa para se acessar à “realidade”, ou melhor, uma realidade circunscrita e contextualizada, a vida real das pessoas e as ações sociais, buscando a compreensão por meio da perspectiva intersubjetiva. Geertz sugere o (com)partilhamento da intersubjetividade como a ponte para o encontro dos olhares do intérprete/pesquisador com o interpretado (Azzan Jr, 1993; Fonseca, 2008).

Geertz apoia-se na abordagem semiótica para a compreensão da cultura, em contraponto às tendências estruturalistas e cognitivistas. Para além de falar de ou pelo

outro, mas sim por meio da conversa com o outro, a dimensão dialógica do humano, é que se torna possível ter acesso ao contexto cultural com seus “signos interpretáveis”, cujo sentido está sempre atrelado a um sentido-para alguém (Azzan Jr, 1993). A ação antropológica, nesta perspectiva, ampliaria o horizonte normativo de tratar os nossos informantes não como objetos de estudo, e sim abordá-los como pessoas, possibilitando “pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles” (Geertz, 2008: 17, grifos do autor).

O autor enfatiza e coloca como ponto central a ação social, a qual tem e produz um sentido próprio, proporcionando um entendimento sobre o mundo. Geertz resgata e valoriza o trabalho de campo, em especial a etnografia, no qual o pesquisador entraria em contato real com a ação social que busca interpretar (Azzan Jr, 1993). As ênfases na vida real e nas ações sociais sustentam a proposta de Geertz de realizar um percurso partindo do particular, da parte, sem se preocupar com generalizações. Ressalta que “qualquer generalidade que consegue alcançar surge da delicadeza de suas distinções, não da amplidão de suas abstrações.” (Geertz, 2008: 17).

Ademais, Geertz propõe que a ação social tenha que ser tratada como texto a se interpretar. Ação e texto se aproximam na medida em que possuem vida própria, e adquirem autonomia ao “se destacar” de seus agentes. Desta maneira, rejeitando a visão estruturalista de tratar as ações sociais como códigos a se decifrar, Geertz sugere que ao abordar a realidade como texto, como constructos imaginativos inscritos de situações concretas sociais, seria um caminho – não o único – de se ter acesso à compreensão das formas simbólicas (percepções, significados, emoções, atitudes etc.) da experiência vivida pelas pessoas (Azzan Jr, 1993).

A cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles quem eles pertencem. (...) Esta não é a única maneira de se ligar sociologicamente com as formas simbólicas. (...) Mas olhar essas formas como “dizer alguma coisa sobre algo”, e dizer isso a alguém, é pelo menos entrever a possibilidade de uma análise que atenda à sua substância, em vez de fórmulas redutivas que professam dar conta dela (Geertz, 2008: 212).

Assim, com a inspiração na semiótica e com o recurso da hermenêutica, Geertz propõe que a trajetória interpretativa recorra ao círculo hermenêutico denominado por Dilthey, fazendo a ponte entre a análise das formas simbólicas particulares de

determinada ação social; com a contextualização destas numa estrutura de significado maior, na qual esta ação tem e, ao mesmo tempo, produz significado (Azzan Jr, 1993).

A refiguração do pensamento social proposto por Geertz, por meio da abordagem semiótica e interpretativa da cultura, proporcionou uma mudança paradigmática de uma busca pela compreensão e não pela explicação; de uma busca por sentidos e não de leis; de falar com alguém e não apenas falar de ou por alguém; e de preocupar-se com a ação social e a vida real das pessoas ao invés de estudar um espaço ou locus.

Esta mudança, por sua vez, torna o trabalho antropológico eminentemente contestável e um processo em constante desenvolvimento: “A antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa, é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento do debate. O que leva a melhor é a precisão com que nos irritamos uns aos outros” (Geertz, 2008: 20).

Mas como estudar homens e mulheres de camada média escolarizada de São Paulo, da qual faço parte? Como me aproximar dialogicamente e empaticamente deles e, ao mesmo tempo, ter um distanciamento necessário para captar estas experiências e vivências e interpretá-las? Como diferenciar o que me é familiar, com constructos sociais preconcebidos e estereotipados deste meio em que vivo, com a realidade a qual busquei interpretar?

Percorrendo uma trajetória científica interpretativa, Gilberto Velho (1987), ao estudar a camada média urbana escolarizada de Copacabana, Rio de Janeiro – seu objeto de estudo e ao mesmo tempo local onde morava –, fez uma explanação de como

observar o familiar, que orientou este estudo.

Velho relativiza o termo familiar, sobretudo nas sociedades complexas urbanas contemporâneas. O que vivemos e sentimos como familiar não necessariamente é conhecido, e vice e versa. A aproximação social e psicológica compartilhada por vivências e experiências comuns entre o mundo do pesquisador/intérprete com o do interpretado, como no meu caso, é heterogêneo, tanto no grau de familiaridade, quanto no de conhecimento. Haverão cenários e situações sociais que vão gerar estranheza e não reconhecimento, possibilitando a relativização, e melhor, a transcendência da familiaridade, o estranhamento crítico perante o próximo, para se almejar compreender os sentidos e significados que o pesquisador busca interpretar.

Acredito que seja possível transcender, em determinados momentos, as limitações de origem do antropólogo e chegar a ver o familiar não necessariamente como exótico, mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados. O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações (Velho, 1987: 131, grifo do autor).

O autor elenca duas vantagens de se estudar e estranhar o “familiar”: a possibilidade de confrontar a apreensão da realidade preconcebida do pesquisador com a explorada a posteriori pelo estudo; e a maior facilidade de expor os achados com a população estudada, dada a proximidade, cujo confronto pode gerar valiosa contribuição para rever e enriquecer os resultados da pesquisa.

Tanto a aproximação quanto o distanciamento dos “mundos” do pesquisador/intérprete com o interpretado pode ser objeto de reflexão, deixando claro que a “realidade” estudada será absorvida e percebida sob o olhar do pesquisador. Isto reforça a impossibilidade e o despropósito de imparcialidade ou neutralidade em um percurso semiótico-interpretativo pelo conhecimento; sem reduzir, por sua vez, o rigor científico. Velho, assim como Geertz, reafirma o caráter não definitivo, potencialmente discutível, de uma objetividade relativa, devido à proposta (inter)subjetivista deste processo (Velho, 1987).

Vale ressaltar que os referenciais teóricos de cuidado, família na camada média urbana e sua interface com a sociedade complexa contemporânea e de gênero são inter- relacionados e se dialogam com a antropologia interpretativa, já que são permeados pela dimensão relacional e dialógica do encontro com o outro, pela valorização da experiência vivida pelo sujeito e das interações interpessoais e pela importância da contextualização histórico-cultural da intersubjetividade.