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Cultura corporal na escola e seus reflexos na Educação InfantilContexto da

2 CORPO, CULTURA E ESCOLA

2.2. Contexto da Educação Infantil

2.2.1 Cultura corporal na escola e seus reflexos na Educação InfantilContexto da

O modelo de educação da criança pequena também se insere nos padrões do modelo moderno de educação, uma vez que há nesse ensino uma hierarquização dos saberes e unilateralidade na escolha e apresentação dos conteúdos, que normalmente seguem a visão de classe (econômica e/ou intelectual), etnia e religião dominantes. Há também uma fragmentação dos conteúdos por meio do controle dos tempos e espaços ainda que o ensino não seja dividido formalmente em disciplinas.

Como citado anteriormente, na escola, são muitas as relações de poder: entre professores e alunos; direção e corpo docente; conhecimentos validados que constituem o currículo; e entre os próprios alunos. Apesar de muito se dizer sobre a diversidade e do discurso hegemônico pregar uma escola democrática e “para todos”, a exclusão torna-se velada, em ações que parecem reconhecer e acolher a diferença (nos sujeitos, no currículo, no discurso) como existente, mas sempre como diferença, sem verdadeira circulação, legitimidade e profundidade. Há um ideal a ser alcançado, um jeito melhor de ser. É como se a diferença existisse, mas devêssemos tentar extingui-la para que todos alcancem a mesma verdade, a mesma cultura, e assim, a mesma identidade. Valoriza-se uma cultura única, uma cultura comum a ser absorvida para o avanço de todos, reproduzindo na Educação Infantil os mesmos sistemas sociais do ensino básico: “A instituição educativa socializa preparando o cidadão/dã para aceitar como natural a arbitrariedade cultural que impõe uma formação social contingente e histórica” (SACRISTÁN, 2000 p. 17).

As concepções sobre as práticas corporais, à parte do currículo pensado como área de conhecimento, embutem práticas disciplinares em diversas situações do cotidiano: filas para locomoção entre os espaços; mesas e carteiras que ocupam grande parte do espaço físico das salas de aula; valorização de algumas aéreas em detrimento de outras; punição com a proibição de brincar e se movimentar, etc. Essas práticas trazem em si valores sociais e históricos que ajudam a compreender as origens, discutir o presente e repensar o futuro das ações pedagógicas e da função escolar, especialmente no que se refere às manifestações corporais.

Na história escolar, foi a partir do século XVIII, com os ideais iluministas, que as práticas corporais tiveram atribuídas valores pedagógicos, na ânsia da formação integral do sujeito (NEIRA, 2011). Nessa época, a ginástica, era extremamente valorizada e trazia os

novos códigos de civilidade (SOARES, 1998), o que inspirou a concepção do século XIX de “educação do corpo” e, a partir dele, nos processos de disciplinarização, controle e poder, que compunham o corpo como uma realidade biopolítica (FOUCAULT, 1982). Era essa a prática corporal que casava com o incentivo político-educacional dessa modalidade e com a ideia higienista: ordenativo, disciplinador e metódico.

Com o movimento escolanovista, do final do século XIX e início do século XX, o caráter lúdico passou a ser defendido no meio da educação, em paralelo ao modelo de vida ativo e da educação esportista e pelo movimento, defendido em torno dos anos 60. Com a entrada do jogo, da brincadeira e da gestualidade como formas de expressão nos debates educativos, a Educação Física passou a conviver com uma série de perspectivas curriculares (SOARES, 1998).

De modo geral, na escola, o movimento humano acaba restrito a ações mecânicas, precisas e pontuais, nas aulas de Educação Física, no recreio, ou horário de parque. A disciplina e o bom comportamento muitas vezes são vistos como sinônimo do “não- movimento” e, dessa forma, qualquer proposta corporal torna-se um tipo de moeda de troca na relação entre alunos e professores. A imobilidade física, por vezes, é a punição por qualquer distância da norma e, consequentemente, a liberdade do movimento vira prêmio. Desencorajar as crianças ameaçando-as ou punindo-as com a perda do recreio, ou da aula de Educação Física, distancia as práticas corporais das demais áreas de conhecimento, bem como reforça a ideia de que tudo que envolve o movimento é prazeroso e o que envolve a imobilidade é desconfortável (STRAZZACAPPA, 2001).

A atenção à própria estrutura física do espaço escolar contribui para uma visão mais restrita das manifestações corporais, como afirma Neira (2011, p. 51):

Uma observação atenta da arquitetura escolar permitirá constatar o silenciamento forçado de certas práticas corporais mediante a ausência total de espaços e condições para o desenvolvimento de manifestações para além das conhecidas brincadeiras, danças e modalidades [...].

Todo esse contexto está inserido em um sistema denominado por Foucault (1970) como “poder disciplinar”, isto é, que se aplica coletivamente e que atinge individualmente os corpos, por meio de técnicas de vigilância e de sanções normatizadoras, de forma que o corpo entra em um maquinário de poder que o enquadra, desarticula e recompõe.

Hall (1997) também se aproxima dessa ideia ao destacar os processos de sofisticação dos meios de regulamentação e vigilância pela cultura. Essa disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos e de produtividade e diminui essas mesmas forças, em termos

políticos, contestando as identidades: “A globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local.” (HALL, 1997, p. 21).

Entretanto, encontramos pesquisas que desconfiam dessa lógica. Os estudos culturais, apoiados no multiculturalismo crítico, propõem mais do que a convivência entre iguais e desiguais. Propõem um embate, o conflito e a luta entre o que se diz identidade e o que se diz diferença. É importante não ser estrangeiro o tempo todo, mas também não ser identidade2 o tempo todo. Um currículo que pense a cultura dessa maneira é sensível ao que os diferentes têm a dizer e presta atenção no repertório cultural que os identifica (NEIRA, 2011), inclusive corporalmente.

Giroux (1986) já contestava esse papel reprodutor da escola, reafirmando momentos de relativa autonomia que poderiam ser destacados na cultura e na ideologia que constroem a resistência. Ainda segundo ele, os grupos sociais são carregados de dominação e de controle em diferentes graus e, por isso, as pessoas podem ser sujeitos da história ou sujeitos da dominação.

São esses canais que, quando bem aproveitados, podem contribuir para a aproximação dos professores entre si, com o espaço e com o trabalho. Para uma prática docente condizente com a concepção de ensino defendida aqui, mergulhada e centralizada na cultura, o espaço coletivo precisa estar garantido, visando à construção do grupo, mas também a manifestação da individualidade e construção identitária para a formação de um professor investigativo, pesquisador e reflexivo, como ressalta Woods (1999): “É essencialmente por meio do self que compreendemos o mundo. Por sua vez, as descobertas que fazemos refletem-se no self, que afeta a investigação, e assim sucessivamente.”

O autor ainda destaca o papel das crianças nessa inserção cultural que desvela a complexidade contextual e desmistifica “problemas” apontados como responsabilidade dos alunos ou outros como responsabilidade do professor. Podem-se perceber os impasses como pertencentes às práticas escolares, que são, nessa visão, produtos e invenções culturais das legitimadas culturas e das subculturas (WOODS, 1999).

Nessa perspectiva, a prática pedagógica é vista como uma negociação cultural, na qual o currículo é visto como uma invenção e, por isso, flexível, dinâmico, como produto de

criação e trabalho. Fala-se, aqui, de um currículo cultural, que pode ser definido nos termos de Neira (2011, p. 148):

Todas as práticas corporais são compreendidas nos seus limites espaços-temporais sem discriminar seus formatos, nem tampouco são concebidas como expressões a serem imitadas e fixadas por todos indistintamente. [...] O que se espera é a formulação de estratégias que possibilitem a transformação das condutas em relação aos grupos historicamente subjulgados. Só assim, o currículo cultural pode alcançar o seu objetivo de formar identidades democráticas.