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2.2 FÉ E ERA DIGITAL

2.2.1 Cultura Digital e Cristianismo

Num primeiro olhar, a cultura virtual é positiva, pois ela indica um universal mais rico, mais interconectado, mais interativo. Contudo, esse universal não dispõe de uma linha diretriz ou de um critério que organize a enorme massa de dados, ou assegure a veracidade do material oferecido, apresenta-se como um meio um tanto caótico, sem garantia de credibilidade, onde cada internauta expressa e defende suas opiniões como as mais verdadeiras, correndo-se o risco do relativismo. Com efeito, nesse ciberespaço o ser humano goza de enorme liberdade na escolha dos dados, no envio de opiniões pessoais, na defesa dos seus valores, como talvez em nem um outro espaço social. Essa liberdade, evidentemente, afeta a compreensão da fé que a cultura virtual tem e atinge, sobretudo, os preceitos mais dogmáticos presentes nas religiões, especificamente na Igreja Católica. Considerou Antônio Spadaro: o desafio para a igreja não é o modo de usar bem a rede, “como se acreditava”, mas “como viver bem o tempo da rede”. “A Rede coloca desafios muito significativos para a compreensão da fé cristã. A cultura digital tem uma reivindicação a fazer ao homem mais aberto ao conhecimento e aos relacionamentos”.137

Convém, realmente, confrontar a fé cristã com a realidade da cibercultura. O Cristianismo também se compreende universal ao oferecer um sentido a toda a realidade e a toda a História. Mas enquanto oferecido na liberdade, não é um universal imposto, e enquanto respeita a diversidade cultural não é um universal que generaliza e descontextualiza, embora em sua história nem sempre tenha sido assim. Outro ponto importante é que a fé cristã caracteriza-se pela comunidade eclesial. A mesma existia antes ainda dos textos sagrados, pois manifesta justamente o que experimentaram os primeiros cristãos ao seguirem Jesus Cristo. A própria vivência que os primeiros cristãos tinham na comunidade e a partilha dos bens é real. No mundo da internet, a comunidade desaparece e tudo depende do indivíduo. Há busca, interpretação e uso de dados oferecidos, sem nenhum controle. Abrem-se possibilidades de leituras unilaterais, ou até mesmo de incompreensões. Encontramos uma característica central de nossa sociedade atual que afeta a vivência da fé na atual sociedade digital: o individualismo. O envolvimento com as técnicas e a imposição de um universal que tolhe a liberdade do ser humano leva, no campo religioso, a uma fé com características de individualismo. Percebe-se que com o desenvolvimento da internet nasce uma nova vivência e novas manifestações de fé. Isso ocorre por meio de micro alterações que se caracterizam

137 SPADARO, Antônio. Palestra. In: SEMINÁRIO DE COMUNICAÇÃO PARA OS BISPOS DO BRASIL

como evolução antropotecnocomunicacional.138 A possibilidade de interação em sites e em outras ferramentas pelas redes sociais leva o ser humano a tornar-se condutor de sua própria fé. Além disso, o foco das tecnologias digitais opera um deslocamento espacial139 da experiência de fé. Nesse novo espaço vive-se distante de uma comunidade física real e a experiência de comunidade dá-se apenas no virtual; que, por outro lado, permite a formação de comunidades bem mais amplas que as possíveis dentro de um espaço real. Um exemplo: uma celebração feita no outro lado do mundo pode agora assistida no quarto, pela TV ou a pessoa pode acessar e assistir missas gravadas e arquivadas num site e não se questiona sobre o tempo real ou o espaço presencial. Alguém pode ver a missa da Páscoa passada em pleno mês de dezembro.

A forma cibernética de experimentar a fé vivida por pessoas materialmente distantes umas das outras não é de todo negativa. É preciso notar que as novas interações possibilitadas pela internet criam também uma nova configuração comunitária. A comunidade de fé não desaparece; porém, o fiel conectado dirige-se à comunidade virtual para nela compartilhar sua vida. O “fiel-internauta” vive uma experiência de fé sem uma presença objetiva, mas com uma ausência objetiva do outro (seja pessoa ou lugar de culto), o que, nem por isso caracteriza uma fé isolada ou individualista.140 A fé na Era Digital depara-se com atos e práticas desenvolvidas pelo fiel que interage com o sistema em busca da construção de sentido. Portanto, constroem-se sentidos para a fé, não mais em catedrais de pedras e sim na “vasta catedral da mente”141 que se atualiza no espaço virtual. Se por meio dos sinais sensíveis da

liturgia e da corporeidade é possível ver, ouvir, tocar e ser tocado pelo mistério divino, até que ponto o ambiente de seus novos sinais sensíveis, agora com uma materialidade digital própria, possibilita também uma vivência holística (corpo/mente/coração/espírito) das ações litúrgicas, em que se possa ver, ouvir, pronunciar, sentir, aspirar, tocar as linguagens simbólicas que expressam o mistério divino?142 Vê-se, portanto, que os vínculos tradicionais do fiel com a Igreja e seus rituais são desconstruídos historicamente, espacial, temporal e até mesmo liturgicamente. Logo, pode-se perceber nesse movimento todo, luzes e sombras e qualquer conclusão, por enquanto, é provisória.

138 Cf. SBARDELOTTO, Moisés. E o verbo se fez bit uma análise da experiência religiosa na Internet. Cadernos IHU

On-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 35, p. 47. Disponível em: <http://migre.me/4zX61>. Acesso em: 25 maio 2011.

139 Ibid., p. 47. 140 Ibid., p. 50.

141 Cf. CASEY, C. Symbol and Ritual Online. In: XCIV CONVENÇÃO ANUAL DA NATIONAL COMUNICATION

ASSOCIATION. San Diego. Revista do Instituto Humanitas, ano 9, n. 35, p. 50.

142 Cf. BUYST, Ione. Alguém me Tocou! Sacramentalidade da Liturgia na Sacrosanctum Concilium (SC). Constituição