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Cultura e educação

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CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

2 Cultura e educação

Para compreender os jovens tapuios como sujeitos no processo de (re)construção de sua identificação étnica, é fundamental uma investigação sobre a cultura em seu dinamismo. Todo sistema cultural vive em contínuo processo de modificação, seja pelo próprio dinamismo interno de cada cultura, seja como resultado dos contatos com outras culturas. Ao falar da cultura como realidade dinâmica, Laraia, (2003, p. 96), afirma que “existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro”.

Compreender a situação em que vivem atualmente os jovens tapuios do Carretão pressupõe considerar que, como grupo social, eles participam das mudanças que afetam todo ser humano, tendo em conta, sobretudo, os contatos intensivos vivenciados pelo grupo, nas últimas décadas, com os colonizadores, e, mais recentemente, com os diversos agentes das instituições de apoio no processo de retomada de suas terras e de reconstrução de sua identificação cultural. É importante, porém, notar que as mudanças em uma cultura não são frutos apenas do contato. Cada sistema cultural tem seu potencial dinâmico que opera as mudanças com base em seu interior.

Vaz (1983) considera, por exemplo, que, a cultura em nos tempos atuais, em cada povo, sofre influência muito grande do consumismo que a penetra e nela se estabelece com certa naturalidade. No dinamismo interno do sistema cultural e na tentativa de administrar as influências da sociedade econômica e industrial marcada pelo consumismo, encontram-se os tapuios do Carretão, buscando reviver sua própria identificação cultural, em meio ao contato com a cultura regional e nacional sob o reinado do consumismo. Ao definir a cultura como “o sistema das significações com que a sociedade e o indivíduo representam e organizam o mundo como humano”, o autor (1993, p. 39) declara:

Enquanto mundo objetivo de realidades simbolicamente significadas e que tende, pela tradição, a perpetuar-se no tempo, a cultura mostra, assim, toda uma face voltada para o dever-ser do indivíduo e não apenas para a continuação do seu ser: nela o indivíduo encontra, além do sistema técnico que assegura a sua sobrevivência, ainda e, sobretudo, o sistema normativo que lhe impõe sua auto-realização. Porque as razões de viver se inscrevem exatamente no espaço de transcrição simbólica da vida num sistema de interpretações que não é dado ao homem como o sistema das coisas ou dos

objetos, mas é por ele recebido e recriado no ato que o constitui exatamente como sujeito de cultura. (grifos do autor)

Com essa definição, Vaz (1993, p. 40) chama a atenção para o aspecto vivo e dinâmico da cultura: “As definições puramente descritivas da cultura são notoriamente insuficientes para traduzir a originalidade da visão do mundo e da idéia do homem subjacentes à diversidade histórica das culturas”. (grifos do autor)

Não sendo possível ao homem viver fora da cultura – embora a cultura seja criação sua – nela ele se encontra e se dá a conhecer, nela ele organiza sua vida como indivíduo e como membro de um grupo social. É impossível, diz Geertz (1989), imaginar o homem sem nenhum padrão cultural que torne reconhecível para si mesmo e para os demais, todo o seu pensar. Interpretar sua linguagem, seu agir e reagir dependem da cultura.

O autor (1989, p. 33) esclarece:

Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentindo e de explosões emocionais, e sua experiência não tinha praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua especificidade.

Pensar a cultura, seja como conceito, seja como realidade vivida na diversidade dos grupos sociais no diversos momentos históricos não é tarefa fácil, como lembra Paes (2003, p. 88): “A princípio, quando pensamos ou falamos sobre cultura, nos parece que trata de um conceito tão comum que não nos damos conta do quão difícil e controverso é tentar defini-lo”. (grifo da autora)

Não existe uma única cultura, em razão do que é mais apropriado falar em culturas, seja pela diversidade de grupos e povos, seja pelo dinamismo interno, que é diferente em cada cultura.

Considerando a cultura como atravessando tudo aquilo que faz parte do social, ocorreu a aproximação com os jovens tapuios do Carretão, em busca de compreendê-los no processo de ressurgimento que estão vivendo, bem como a contribuição de instituições governamentais e não-governamentais, no (re)encontro de sua identificação cultural. É de fundamental importância considerar a cultura na sua diversidade e no seu dinamismo interno, integrando as novas gerações ao grupo social por meio do processo educativo, como assinala Gomes (2003, p. 75):

Os homens e as mulheres, por meio da cultura, estipulam regras, convencionam valores e significações que possibilitam a comunicação dos indivíduos e dos grupos. Por meio da cultura eles podem se adaptar ao meio, mas também o adaptam a si mesmos e, mais do que isso, podem transformá-lo.

Segundo Laraia (2003), como ser de cultura o homem é herdeiro de um longo processo acumulativo, ao qual ele se associa e pode acrescentar a sua contribuição como sujeito. O patrimônio acumulado ao longo dos anos e dos séculos, em sua dinâmica, entra como componente básico de inovações e invenções que vão caracterizando a história humana. Para Laraia (2003, p. 45),

o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade.

Como realidade dinâmica, a cultura tem papel decisivo no aprendizado da vida. A cultura ensina a viver, humaniza a pessoa humana, é objeto do ensinar-e-aprender. Na cultura, na qual se aprendem os diversos modos de viver dos mais diversos povos, a vida se manifesta. Ela possibilita ao homem ver-se a si mesmo como um ser da natureza e como sujeito que a transforma em razão de suas necessidades. Assim, ele é sujeito da cultura porque ela é criação da espécie humana e também porque, em seu dinamismo, ela está sempre se enriquecendo, se adicionando e mudando pela ação do homem.

Brandão (2002, p. 16) assinala:

Ali, onde os fios da Vida transformados em memórias, em palavras, em gestos de sentimentos recobertos do desejo da mensagem, recriam a cada instante o mundo que entre nós inventamos desde que somos seres humanos, e com este estranho nome: cultura.

Ou, como diz Geertz (1989, p. 36):

Nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura – não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e classe baixa, acadêmica e comercial. A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é a sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico.

Enquanto o ser humano está aprendendo a vida e a viver a vida, está imerso na atividade educativa, e o modo de viver a vida que aprende é cultura. Imerso em uma cultura, o ser humano a ela pertence (e ela também lhe pertence), pertence então ao mundo que a espécie humana criou para aprender a viver. É por meio da cultura, ou por causa dela, que é obrigado a aprender, desde criança e pela vida afora, a compreender seus vários significados, suas linguagens, suas roupagens. Por isso, cultura e educação são duas realidades criadas simultaneamente pelo homem, as quais por sua vez, o moldam constantemente.

Brandão (2002, p. 22) declara:

Tal como a natureza onde vivemos e de quem somos parte, também a cultura não é exterior a nós. A diferença está em que o “mundo da natureza” nos antecede, enquanto o “mundo da cultura” necessita de nós para ser criado, para que ele, agindo como um criador sobre os seus criadores, nos recrie a cada instante como seres humanos. Isto é, como seres da vida capazes de emergirem dela e darem a ela os seus nomes. (grifos do autor)

A cultura, como realidade humana e dinâmica e, mais ainda, como saber acumulado da humanidade, precisa ser continuamente transmitida, porque o homem não vive sem ela (Geertz, 2003). A educação, como componente da cultura, é a atividade e o cuidado de favorecer às novas gerações o acesso ao modo de viver que a humanidade já desenvolveu até os dias atuais. Os padrões culturais são indispensáveis à pessoa humana. A cultura é condição essencial para a existência humana e a principal base de sua especificidade.

A diversidade cultural faz pensar que não existem homens sem cultura. Existem modos diferentes de cultura e estágios diferentes de cultura, segundo a diversidade de povos que compõem a humanidade. Para Geertz (2003, p. 36), homens sem cultura seriam

monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso central cresceu, em sua maior parte em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes. O que nos aconteceu na Era Glacial é que fomos obrigados a abandonar a regularidade e a precisão do controle genético detalhado sobre nossa conduta em favor da flexibilidade e adaptabilidade de um controle genético mais generalizado sobre ela, embora não menos real. Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes. Tais símbolos são, portanto, não simples expressões, instrumentalidade ou correlatos de nossa existência biológica, psicológica e social: eles são seus pré-requisitos. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens.

O gênero humano, ao mesmo tempo que evoluiu, transformando a natureza por meio do trabalho, também desenvolveu idéias, valores e crenças sobre o seu modo de vida. As pessoas não só trabalham, como também refletem e representam o mundo em que vivem. Em decorrência, surge a necessidade de transmitir suas experiências cotidianas a seus semelhantes. Aquilo que se aprende na prática é veiculado para outras pessoas, o que possibilita que o conhecimento humano sobre a natureza não se perca, mas se acumule de geração em geração. Os mais velhos ensinam aos mais jovens os segredos da sobrevivência e as formas possíveis de entender o mundo em que vivem. Assim, a educação constitui maneiras de transmitir e assegurar a outras pessoas o conhecimento de crenças, técnicas e hábitos que um grupo social já desenvolveu com base em suas experiências de sobrevivência.

Conforme Brandão (2002, p. 25),

tal como a religião, a ciência, a arte e tudo o mais, a educação é, também, uma dimensão ao mesmo tempo comum e especial de tessitura de processos e de produtos, de poderes e de sentidos, de regras e de alternativas de transgressão de regras, de formação de pessoas como sujeitos de ação e de identidade e de crises de identificados, de invenção de reiterações de palavras, valores, idéias e de imaginários com que nos ensinamos e aprendemos a sermos quem somos e a sabermos viver, com maior e mais autêntica liberdade pessoal possível, os gestos de reciprocidade que a vida social nos obriga. (grifo do autor)

A educação existe ao longo da vida do ser humano, atinge a todos e está presente em todas as atividades do cotidiano e, embora se diferencie conforme o grupo social em que se desenvolve, como forma de socialização do conhecimento e da cultura, está presente em todas as sociedades. Tanto na zona rural, em meio aos índios, ou na sociedade urbano-industrial, ela se faz presente nas redes de relações educativas de maneira informal, na família, na Igreja, no clube, no trabalho e nos mais diferentes grupos sociais. Bem antes do período escolar, ela se dá de modo espontâneo, sem a necessidade de professores ou de escolas. Ela existe misturada com a vida.

O dinamismo da cultura permite a sobrevivência de diferentes grupos étnicos em meio às mudanças impostas pelo contato com outras culturas. A cultura identifica- se com a força mais sutil da alma de um povo, conforme o depoimento do índio Ailton, liderança crenaque, de Minas Gerais(apud Brasil, MEC/SEF, 1998, p. 24):

É claro que toda cultura é dinâmica, cheia de respostas para as provocações que aparecem e, muitas vezes, feliz na formulação de resoluções. Muitas delas voltadas para a própria defesa cultural. Daí que muitas comunidades indígenas, mesmo tendo sofrido enormes mudanças no aspecto mais aparente de sua cultura, mesmo aí onde

tudo parece ter mudado profundamente, a força mais sutil da alma de um povo subsiste.

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