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2 FORMAÇÃO DOCENTE: UM ACONTECIMENTO SUBJETIVO, CULTURAL,

2.2 Cultura

Como sujeito do processo histórico, o ser humano produz e vivencia, com suas peculiaridades e as de seu grupo, a sua cultura — cultura que varia de lugar para lugar, de época para época, mas que existe sempre para todos os seres. Quando se trata da dinâmica da formação docente, convém considerar os aspectos e a formação cultural de cada ser.

Laraia (2001) faz considerações esclarecedoras sobre os conceitos de cultura e as mudanças por que passou esse termo. Ele discute o conceito antropológico de cultura num texto claro e simples cuja primeira parte faz um histórico do desenvolvimento do conceito de cultura, em que parte dos iluministas para chegar a autores da era moderna. Segundo ele, já na Antiguidade os homens se preocupavam com a diversidade de modos comportamentais entre povos diferentes, por isso foram comuns as tentativas de explicar tais diferenças com base na variação dos ambientes físicos.

A primeira definição de cultura formulada do ponto de vista antropológico pertence a Edward Taylor. Depois desta definição, surgem várias outras que mais confundiram do que ampliaram os limites do conceito. Por esta razão, o autor postula que uma das tarefas da antropologia moderna é reconstruir o conceito de cultura, fragmentado por tantas e tão diversas definições. (LARAIA, 2001, p. 11).

Laraia (2001) afirma ainda que uma compreensão exata do conceito de cultura requer um entendimento preciso da própria natureza humana.

A segunda parte do texto de Laraia (2001) mostra sua concepção de como a cultura influencia o comportamento social e diversifica o comportamento e modo de vida dos seres humanos; e é essa concepção que interessa mais de perto a esta pesquisa, porque se encaixa nas análises sobre a concepção que o professor ou a professora têm de sua formação. Sua abordagem busca compreender como indivíduos de culturas distintas veem o mundo diversamente. Para ele, comportamentos sociais distintos resultam de uma herança cultural. Se todas as pessoas têm o mesmo equipamento anatômico, seu uso, em vez de ser determinado geneticamente, depende de um aprendizado, que consiste na cópia de padrões que compõem a herança cultural do grupo (LARAIA, 2001). Para esse teórico, o comportamento das pessoas depende de um aprendizado: a endoculturação; dito de outro modo, menino e menina agem diferentemente não por causa de seus hormônios, mas de uma educação diferenciada.

Segundo Laraia (2001), a primeira definição antropológica de cultura foi dada pelo antropólogo inglês Edward Tylor;6 e a ela sucederam outras definições que mais confundiram do que ampliaram os limites conceituais. Por essa razão, ele diz que uma tarefa da antropologia moderna é reconstruir esse conceito, fragmentado por tantas e tão diversas noções. Sobre a origem da cultura, esse autor busca respostas em autores como Claude Lévi- Strauss, para quem a cultura surgiu quando o homem convencionou a primeira regra, a primeira norma, e o homem vê o mundo através de sua cultura, o que pode levá-lo a considerar seu modo de vida como mais correto e mais natural.

Chamada etnocentrismo, essa tendência responde, em seus casos extremos, pela ocorrência de conflitos sociais, pois o comportamento etnocêntrico resulta em valoração negativa dos padrões culturais de povos distintos. Sua história surgiu quando pessoas e grupos se sentiram superiores ao outro: entenderam que sua cultura fosse mais elevada e trabalharam para pô-la no centro; noutras palavras, referem-se a uma forma de fazer valer seus valores, seus modelos e suas concepções de vivências e experiências relativas ao comportamento do grupo visto como “o outro”. Tal tendência

[...] na sociedade revestiu de caráter ativista e colonizador com diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos. [...] O Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. (ROCHA, 1999, p. 10; 7).

O modelo etnocêntrico continua presente como valor cultural de grupos ou indivíduos que tenham algo em comum: interesses políticos, sociais e econômicos, dentre outros. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de se pensar na diferença como sentimento de estranheza, medo, hostilidade (ROCHA, 1999).

O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu”. Possuem no caso particular da nossa sociedade ocidental, aliados poderosos. Para uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo se conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza, com a crença num estilo de vida que exclui a diferença. (ROCHA, 1999, p. 10; 7).

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“Culture or civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society” (TYLOR, 1871, I, p. 1 apud BARNARD; JONATHAN, 2002, p. 208 [Cultura ou civilização, vista em seu sentido etnográfico amplo, é o todo complexo que inclui o conhecimento, a crença, a arte, a moral, a lei, o costume e outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade]. Sir Edward Burnett Tylor (1832–1917) é influente na antropologia inglesa e seu interesse central era a evolução da sociedade e de suas instituições, temas que desenvolveu nas obras Researches into the early history of mankind and the

development of civilization (1865) e Primitive culture (2 vols., 1871). Credita-se a ele a introdução na

O etnocentrismo se vincula ao julgamento de valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do “eu”, do “meu grupo”. Em dado momento ou dada situação, um vê como natural a sobreposição de sua cultura à do grupo cujos costumes e cujas tradições diferem. Esse sentimento e essa ação requerem conhecimento, ponderação e flexibilidade para se saber partilhar de forma a permitir a convivência (LARAIA, 2001). Com efeito, cada cultura tem um caráter dinâmico mutante, por isso é importante entender essa dinâmica para se atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Igualmente, é fundamental para a humanidade compreender as diferenças entre povos de culturas diferentes e respeitar as diferenças entre os modos de ser, pensar e agir de cada pessoa ou grupo social.

De etimologia latina, o substantivo cultura adquiriu significância por diversos idiomas europeus no período conhecido como era moderna. No início do século XIX, a palavra passa a ser empregada como sinônimo de civilização. À época, o adjetivo cultural era usado em trabalhos sobre histórias universais da humanidade, em especial pelos alemães, que tratavam de cultura como termo clássico que ser referia a um “[...] processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e artísticos ligado ao caráter progressista da era moderna” (MACHADO NETO, 2002, p. 17). Segundo Thompson (1995), no fim desse século, o conceito de cultura foi definido na antropologia, que lhe subtraiu algumas conotações até então etnocêntricas, e passou a se vincular mais aos costumes, às práticas e às crenças de outras sociedades que não as europeias. A cultura começa, então, a ser vista numa ótica de vivências e experiências dos vários sujeitos sociais.

Ao tratar do conceito antropológico de cultura, Thompson (1995) destaca que ele se vincula ao desenvolvimento da antropologia como disciplina e, para essa discussão, retoma o que chama de concepção descritiva, na qual a cultura pode ser rastreada por historiadores culturais do século XIX interessados em conhecer a descrição do conceito do ponto de vista etnográfico de sociedades não europeias. Isso sugere uma tentativa de ir além dos limites do etnocentrismo. Esse autor destaca estudiosos que se dedicaram a analisar esse conceito, a exemplo de Tylor, que emprega o termo cultura relativamente às concepções anteriores. Para Thompson (1995, p. 25), a definição dele embasa a “[...] concepção descritiva de cultura”, pois engloba o conjunto inter-relacionado do fazer de cada indivíduo como componentes de uma sociedade (fazeres e vivências estudáveis cientificamente); desse modo, chega-se ao que se define como “[...] cientifização do conceito de cultura” (THOMPSON, 1995, p. 25).

Nos estudos subsequentes sobre cultura na concepção antropológica, surge Malinowski, que, entre 1930 e 1940 defende uma teoria científica de cultura. Ele endossa

uma teoria evolucionista qualificada, embora seu interesse central fosse o desenvolvimento de um conceito de cultura guiado por uma abordagem funcionalista (THOMPSON, 1995). Sua teoria funcionalista — diz Thompson (1995) — revê a concepção descritiva de cultura apontada há pouco, pois, em termos funcionalistas, a cultura engloba e retrata o modo de vida das pessoas, suas crenças, seus valores e seus saberes. Logo, Tylor e Malinowski compartilham um pensamento comum, qual seja: cultura “[...] é o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores, bem como os artefatos, objetos e instrumentos materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou sociedade” (THOMPSON, 1995, p. 31).

Todavia, para Thompson (1995), na melhor das hipóteses, esse conceito se esvazia e se torna redundante, a ponto de correr o risco de perder sua precisão. Logo, impõe-se a preocupação de se propor um pensamento diferente na antropologia. Surge, então, a concepção simbólica, posta no centro dos debates por Geertz (1973), para quem as preocupações centravam-se nas questões do significado, do simbolismo e da interpretação. A concepção simbólica conceitua cultura como “[...] padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se comunicam entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças” (THOMPSON, 1995, p. 31). Para Thompson (1995), a teoria de Geertz elabora melhor o conceito de cultura na visão antropológica.

No entanto, Thompson (1995) aponta três questões críticas centrais no trabalho de Geertz: 1ª) a tentativa de caracterizar precisamente a concepção simbólica de cultura e, ao fazê-lo, apresentar definições inconsistentes; 2ª) a interpretação — ao recorrer à analogia do texto, ele negligencia as dificuldades da apresentação de detalhes, deixando dúvidas consideráveis quanto a qualquer tentativa de se entender a cultura de massa como “montagem de textos”; 3ª) a pouca atenção dada a problemas relativos a conflito social e de poder. Para esse autor, muitas vezes os fenômenos culturais são interpretados, acima de tudo, como construtos significativos, formas simbólicas, enquanto a análise da cultura é entendida como interpretação dos padrões de significados incorporados a essas formas. Mas os fenômenos culturais, também, estão implicados em relações de poder e conflito; e Geertz enfatiza mais o significado do que o poder, que gera conflitos (THOMPSON, 1995). Portanto, Thompson (1995) declara que a concepção simbólica de cultura — cara a Geertz — deixa lacunas ao não dar atenção a problemas relacionados com conflito e poder, em especial quanto aos contextos sociais.

O estudo das formas simbólicas, isto é, ações, objetos e expressões significativas de vários tipos em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas.

Eis a concepção-base desta pesquisa, porque trata dos fenômenos culturais como formas simbólicas em contextos em que professor e aluno são sujeitos com culturas relativas a suas vivências, experiências, concepções, enfim, sua formação social. Esse enfoque numa pesquisa sobre formação e atuação docentes se vincula à realidade social dos sujeitos da pesquisa, impregnada de um sentido intenso pelo qual as pessoas se expressam, reagem, exercem ou não suas possibilidades criativas e forjam processos de mudança social. Assim, se cultura são vivências, concepções de mundo, modos de vida, crenças, valores e outros aspectos presentes na vida humana, então compõem, também, a formação de docentes. Se assim o for, estes como mediadores — partícipes dos processos de subjetivação discente — têm de se comprometer a ir além da transmissão de informações, ou seja, a abrir espaços para negociar significados, apropriação de conteúdos científicos contextualizados, construção de interações de troca, diálogo e partilha de saberes e experiências. Isso porque se inserem num contexto de multiplicidades — a sala de aula — e materializam propostas diferentes relativas à formação, em que se entrelaçam trajetórias pessoais e profissionais singulares, com base nas quais cada um se constituiu — e se constitui — cultural e cotidianamente.

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