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Existem duas noções fulcrais quando se aborda o conceito antropológico de cultura: o património e a identidade. Estas duas noções estão estreitamente ligadas, na realidade podem ser entendidas como o prolongamento uma da outra. São de forma lata, como refere Bernardi (1974) o produto da relação dos seres humanos com a sua comunidade. A identidade pode ser entendida como a “essência” de uma determinada comunidade e o património como a manifestação dessa comunidade, que sobrevive no passar do tempo e cuja existência é necessária preservar a qualquer custo (Peralta e Anico, 2006). Esta necessidade de preservação é na opinião das autoras uma situação que se multiplica nas sociedades ocidentais atuais. O receio que se perca todo um espólio de experiências e valores tem desencadeado numerosas ações de preservação.

Este discurso exacerbado tem origem num conjunto de fatores de mudança que têm ocorrido na sociedade contemporânea. Um desses fatores que contribui para esta necessidade de conservar a identidade prende-se com o aparecimento de novos “atores sociais” distanciados das atitudes tradicionais. O aparecimento de culturas diversas e com identidades muito específicas e com uma abordagem mais centrada na cultura, nas tradições e no acompanhar do desenvolvimento científico e ético (Touraine, 1984 citado por Vilaça, 1994).

Já segundo Coll (2002) a necessidade de assegurar a identidade surge devido à globalização e à imposição de um modelo de cultura homogénea. Se por um lado, a globalização despertou esse medo da perda da identidade por outro lado, colocou em evidência que no mundo coexiste uma grande diversidade cultural que não deve ser ignorada. A

globalização concorreu neste sentido para a dissolução de um conjunto de valores que era conjuntamente partilhado, tendo levado ao desaparecimento de algumas comunidades tradicionais (Vilaça, 1994). Um outro aspeto sugerido por Vilaça (1994) assenta num processo de individualização e de consequente afastamento dos ideais sociais motivado pela industrialização e um ideal de progresso que se revelou vazio de valores.

Ainda a propósito da identidade Azevedo (1992) verifica que existem alguns fenómenos atuais que se relacionam com a perda da identidade nacional. Um desses fenómenos foi a separação dos Estados da Europa de Leste como consequência da queda do Muro de Berlim, da postura da Dinamarca e de vários setores da sociedade civil dos vários países face à cedência de poderes nacionais a “órgãos supranacionais” expressos no Tratado de Maastricht. Esta postura mostra claramente como o sentimento nacionalista ultrapassa a esfera política e se projeta para a esfera cultural.

Azevedo (1992) aponta ainda a este propósito o aparecimento de um grande número de “perturbações psicológicas” que ocorrem ao nível individual e que são a manifestação da busca de uma identidade que se encontra esbatida numa sociedade em cujos valores se perderam. Esta falta de alicerce dificulta o processo de formação da identidade, não só a nível individual mas também a nível coletivo.

A relação do indivíduo com a comunidade forma-se justamente pela identificação e pelas referências que tem com o seu grupo, num processo que como explicava o modelo de Bernardi (1974) se opera por troca mútua e também pela oposição. Assim, explica Pinto (1991, p. 219):

(…) é importante não se perder nunca de vista que as identidades sociais se constroem por integração e por diferenciação, com e contra, por inclusão e exclusão, por intermédio de práticas de distinção classistas e estatutárias, e que todo este processo, feito de complementaridades, contradições e lutas, não pode senão conduzir, numa lógica de jogos de espelhos, a identidades impuras, sincréticas e ambivalentes. A construção de identidades alimenta-se sempre de alteridades (reais ou de referência) e por isso nunca exclui em absoluto convivências e infidelidades recíprocas (...)”

Também Cerulo (1997) define a identidade pelo “grau de identificação e solidariedade” que os sujeitos encontram no seu grupo, tendo como apoio a “perceção partilhada” dos indivíduos da comunidade da “homogeneidade social” nessa relação dicotómica entre “nós” e “eles”. A identidade construída desta forma assenta num conjunto de símbolos e representações comumente aceites (Cerulo, 1997 citado em Peralta e Anico, 2006).

A identidade baseia-se num conjunto de conceções que fazem parte de um referencial coletivo, contudo a seleção que cada indivíduo faz desses símbolos e representações, a forma como cada um se vê e imagina a sociedade é um processo ficcional, que depende do tempo e do contexto onde ocorre. Neste sentido, a identidade é “social, histórica e culturalmente contingente e passível de revisão (…)” (Peralta e Anico, 2006, p.2).

A identidade é portanto, um processo dinâmico com ação no presente e constantes ajustes, revelando desta forma uma permanente atualização das suas representações simbólicas. Isto significa que a identidade não é um processo singular, podendo existir várias versões da mesma, conjugando sempre vários fatores de entre os quais se destacam a

ideologia do momento, os valores e ideias bem como as motivações dos agentes que propõe (Peralta e Anico, 2006).

Intimamente ligado ao processo de construção da identidade surge o conceito de património, pois ele é o resultado da seleção de traços específicos de cada cultura. O património implica também a noção de propriedade.

A analogia que por vezes se coloca entre património e cultura tem de ser bem especificada já que os dois termos não são sinónimos. O património faz parte da cultura na medida em que este é uma representação da mesma, mas apenas no sentido da parte pelo todo. O património é o resultado de uma seleção feita com base num espólio mais alargado que já sofreu transformações na sua conceção inicial e que já dificilmente se relaciona com as personagens, locais ou eventos onde teve a sua origem. O património reúne portanto, um conjunto de símbolos cuja preservação foi legitimada por uma comunidade. Essa preservação não assenta em critérios rigorosa e previamente definidos, mas sim em circunstâncias culturais especiais, não pertencentes ao passado, mas sim num presente que se prepara para o futuro (Santana e Prats, 2005 citado em Peralta e Anico).

O património é neste entender sinónimo de “construção social” ou cultural, pois aquilo que é aceite como herança comum passa por vários estádios, até que é coletivamente legitimado. É no sentido mais prático como dizem Peralta e Anico (2006, p. 3): “uma idealização construída ao serviço da representação simbólica de determinadas versões da identidade mediante o estabelecimento de um nexo entre o passado, o presente e o futuro de um determinado coletivo humano.”

O património e identidade estão interligados, pois ambos fazem parte de uma mesma realidade. As suas construções fazem parte de um imaginário coletivo criado na história e na cultura sendo o seu conteúdo social e politicamente celebrado e apoiado. No património não interessa propriamente saber se estas construções imaginárias correspondem exatamente ao âmago dessa coletividade. Neste ponto importa saber se o património produz identidade, no sentido de perceber o que desperta nos indivíduos a identificação com determinadas caraterísticas dessa “ficção identitária” e sobretudo perceber em que medida essas caraterísticas são percecionadas como reais (Peralta e Anico, 2006).

Como ficou explicito a identidade e o património são dois conceitos que não podem ser dissociados, já que o património não existe sem a identidade. A relevância destes conceitos vai muito além do seu sentido imediato. Na realidade, a abordagem destes dois conceitos pode ser conduzida em diferentes contextos, produzindo com certeza importantes inferências para a abordagem antropológica da cultura. Para a contribuição da formação da identidade contribuem não só os indivíduos enquanto sujeitos individuais, mas toda uma estrutura social altamente emaranhada numa teia de relações estratificadas, formando um sistema total que se encontra permanentemente a integrar fragmentos de significado. Este processo contribui para caráter efémero da identidade. Assim, tanto a identidade como o património encontram-se em permanente revisão dos seus significados, acompanhando as tendências e demandas sociais (Peralta e Anico, 2006).