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3. ROUPAS PARA VESTIR A “MULHER DO FUTURO”

3.1 CULTURA MATERIAL COMO TECNOLOGIA DE GÊNERO

Nessa seção, penso na cultura material como tecnologia de gênero. Considero a cultura material a partir da interpretação do antropólogo Daniel Miller (2013) para pensar a materialização da linguagem futurista e como, através da relação com esses artefatos, são construídas noções de feminilidades47. De acordo com Miller, os artefatos são importantes justamente por não os percebermos. Nas palavras do autor: “quanto menos tivermos consciência deles, mais conseguem determinar nossas expectativas, estabelecendo o cenário e assegurando o comportamento apropriado, sem se submeter a questionamentos” (MILLER, 2013, p.

47

A escolha por trabalhar com noções de feminilidades está relacionada ao recorte do trabalho. No entanto, compreendo que a relação com os artefatos também constrói noções de masculinidades.

78). Ainda de acordo com Miller (2007), os estudos da cultura material, através da especificidade de objetos materiais, trabalham para criar uma compreensão mais profunda da sociedade através da singularidade dos artefatos produzidos, que são inseparáveis da humanidade. Nas palavras do autor, “a melhor maneira de entender, transmitir e apreciar nossa humanidade é dar atenção à nossa materialidade fundamental” (MILLER, 2013, p.10).

As práticas de consumo são um aspecto da cultura material. Conforme visto no primeiro capítulo, essas práticas, além da escolha dos produtos em si, também englobam a atribuição de significados aos artefatos, bem como a organização espacial, no caso dos interiores domésticos (HOLLOWS, 2008). De acordo com Santos (2010a) os indivíduos fazem uso recorrente de diversas estratégias de consumo como forma de apropriação de seus ambientes domésticos, inferindo significados a esses espaços (SANTOS, 2010a). Da mesma forma, os sujeitos escolhem e se apropriam das roupas que irão vestir seus corpos. Segundo Miller (2007) o consumo é uma forma de entender os padrões sociais, inclusive em relação ao gênero.

O autor compreende que “grande parte do que nos torna o que somos existe não por meio da nossa consciência ou do nosso corpo, mas como um ambiente exterior que nos habitua e incita” (MILLER, 2013, p. 79). Assim, o autor considera os artefatos fazendo parte do processo de objetificação. Para Miller (2013), o conceito de objetificação trata da ideia de que os objetos nos fazem como parte do mesmo processo pelo qual os fazemos, ou seja, a objetificação trata do caráter recíproco do processo pelo qual sujeitos e artefatos são constituídos. Sob essa ótica, quando nos apropriamos de um objeto e de seus usos, aplicações e práticas correlacionadas, estamos simultaneamente nos constituindo como determinados tipos de sujeitos e também atribuindo significados ao objeto (MILLER, 2013). As roupas e os interiores domésticos afiliados à linguagem do imaginário da era espacial podem ser compreendidos como objetificações de determinados valores e padrões comportamentais que, à medida em que estejam aderidos à vida cotidiana, participam da constituição dos indivíduos como determinados tipos de sujeitos.

Os artefatos, não sendo neutros, são a objetificação de valores que, inclusive, influenciam na construção de identidades de gênero. Em função disso, penso na cultura material como tecnologia de gênero. Isso possibilita pensar no processo de construção de identidades de gênero através da relação entre sujeitos e

materialidades. O conceito de tecnologia de gênero foi proposto por Teresa de Lauretis (1994) a partir da “premissa conceitual da teoria da sexualidade de Foucault como uma tecnologia do sexo” (DE LAURETIS, 1994 p. IX). No entanto, as proposições do filósofo francês não consideravam questões de gênero.

De acordo com Beatriz Preciado (2008, p. 83), para De Lauretis, o gênero “é o efeito de um sistema de significação, de modos de produção e de decodificação de signos visuais e textuais politicamente regulados”. O gênero, assim, vai além dos limites da diferença sexual entre mulheres e homens, sendo uma relação social que constrói posições de sujeito implicadas em noções culturais de feminilidades e masculinidades. Nas palavras da autora, o “gênero representa não um indivíduo e sim uma relação” (DE LAURETIS, 1994, p. 211). Tendo isso em conta, a autora propôs pensarmos o gênero como um constructo sociocultural, uma representação. Sendo assim, o gênero “é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (DE LAURETIS, 1994, p. 208).

As tecnologias de gênero acarretam a produção, propagação e implantação de “representações de gênero” (DE LAURETIS, 1994, p. 228). As representações se relacionam às diversas possibilidades de identificação representadas para os sujeitos. De Lauretis (1994) afirma que essas representações acontecem através de discursos de diferentes instituições, como o Estado, a Igreja, a família e a escola, que podem exercer poder no campo do significado social e, assim, promover e instituir representações de gênero. No entanto, mesmo que de forma menos evidente, a construção dessas representações também ocorre em outros espaços, como na comunidade intelectual, no meio artístico, na arquitetura, no cinema e no próprio movimento feminista (DE LAURETIS, 1994). De Lauretis (1994, p. 212) explica que sendo as representações de gênero “posições sociais que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos sociais”. Portanto, essas tecnologias de gênero envolvem tanto o processo de construção das representações de gênero, quanto os produtos de tais representações.

Para De Lauretis (1994) as tecnologias de gênero envolvem também a construção de auto-representações. Estas se referem ao investimento que os sujeitos fazem diante de algumas possibilidades. Uma vez comprometidas com as

auto-representações, as tecnologias de gênero participam da constituição das subjetividades dos sujeitos, mediante o investimento em determinadas representações em detrimento de outras (DE LAURETIS, 1994).

Teresa De Lauretis (1994), enquanto pesquisadora da linguagem cinematográfica, compreende o cinema como uma tecnologia de gênero que atua na construção de representações, particularmente femininas. No cinema, as práticas, desde a escolha das tomadas até o que é representado no filme, fazem parte do processo de tecnologia de gênero. A autora explica que o cinema opera na sexualização feminina através das técnicas cinematográficas e suas formas de registro, como: iluminação, enquadramento e edição, e de “códigos cinemáticos específicos” como, por exemplo, a forma de olhar, que constrói “a mulher como imagem, como objeto do olhar voyeurista do espectador” (DE LAURETIS, 1994, p. 221). Assim, a representação do corpo feminino o coloca como a real expressão de sexualidade e prazer visual (DE LAURETIS, 1994).

Beatriz Preciado (2002; 2008), em diálogo com o pensamento de Teresa De Lauretis (1994), vai chamar a atenção para as materialidades e visualidades que também fazem parte da construção do gênero. Para a autora, as tecnologias de gênero atuam como sistemas de produção que, através das materialidades, promovem e naturalizam representações de gênero. Segundo Preciado (2002, p. 25) “o sistema heterossexual é um dispositivo social de produção de feminilidade e de masculinidade”. Nisso, a cultura material é um importante recurso para a construção e (re)produção de representações de feminilidades, como a da “mulher do futuro”.

O conceito de tecnologia de gênero, a partir de Teresa De Lauretis (1994) e Beatriz Preciado (2002; 2008), possibilita compreender que a construção das identidades de gênero acontece a partir da relação entre as materialidades e os sujeitos. As materialidades do vestuário e da decoração informadas pela linguagem do imaginário espacial podem ser entendidas como parte das prescrições culturais que colocaram em circulação e operaram na construção e reforço de representações de gênero. Podemos pensar, então, nas estratégias materiais de associação do corpo feminino com o entorno doméstico como uma tecnologia de gênero – o que procuro analisar ao longo desse capítulo e do próximo a partir dos discursos imagéticos e textuais veiculados nas revistas Casa & Jardim, Claudia e Manequim, que colocaram em circulação representações de gênero ligadas à noção de “mulher do futuro”.