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4. CASAS DO FUTURO

4.1 NOVAS FORMAS DE MORAR

Em meados do século XX, como consequência das mudanças comportamentais do período, a casa foi perdendo a função principal de representação da família e recepção formal, passando a ser um espaço da família, de encontros informais e de intimidade (PROST, 2009). Nas décadas de 1960 e 70 a decoração passou a ser importante para a construção da identidade individual dos sujeitos (SPARKE, 2008; PROST, 2009). A figura da “mulher do futuro” foi construída a partir da articulação entre as roupas afiliadas ao imaginário futurista,

vistas no capítulo anterior, com a decoração de interiores e a arquitetura em diálogo com o imaginário da era espacial.

A exploração espacial trouxe em si a oportunidade de colocar em pauta discussões acerca da casa do futuro (TOPHAM, 2003). Além disso, o imaginário futurista já estava sendo traduzido em diversos produtos cotidianos, inclusive no mobiliário. Esses novos móveis precisavam de um lugar que combinasse com sua forma da era espacial, um lugar onde pudessem estar em harmonia com seu entorno (TOPHAM, 2003). De acordo com Philippe Garner (2008, p. 127) “a preocupação central de muitos arquitetos e paisagistas durante os anos 60 eram ideias utópicas de transformação das cidades tradicionais em grandiosas visões correspondentes a uma suposta nova forma de viver”. As ideias de efemeridade e descartabilidade trabalhadas em artefatos da época também foram aplicadas à arquitetura associada à linguagem do imaginário futurista, “na busca por maneiras de revigorar a vida moderna com uma sensação de novidade”111, além do otimismo em relação ao futuro, que integrou o imaginário social nas décadas de 1960 e 70 (PAVITT, 2008, p. 38).

Na reportagem “Casas incomuns nos E.U.A”, veiculada em 1960 pela Casa & Jardim, destaca-se que

uma casa construída inteiramente de material plástico situa-se em Los Ângeles, Califórnia. Tôdas as secções foram premodeladas para formar quatro salas. A parte central contém a cozinha e o banheiro. (...) Segundo afirmam os engenheiros, o material usado é tão forte e durável como o aço, com a vantagem de poder ser molhado e curvado de uma maneira que o aço jamais resistiria. Esta é uma das principais razões de ser esta casa plástica, arredondada nos cantos e pelos lados”112.

A imagem apresentada é uma ilustração em tons de azul do exterior da casa, na qual é possível perceber a estrutura plástica arredondada subdividida em seções (FIGURA 34). Mas ela não é localizada num espaço geográfico. O recurso de mostrar somente a ilustração da casa dá a impressão de que ela flutua, uma estratégia que a torna ainda mais “incomum” e que abre espaço para a abstração

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Tradução livre do original: “looking for ways to invigorate modern living with a sense of newness”.

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CASAS incomuns nos E.U.A. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S.A., n. 65, p. 52-55, jun. 1960.

do/a leitor/a. A casa sendo composta por seções pré-fabricadas remete ao que Prost (2009) fala sobre as roupas e que poderia ser aplicado nessa situação: apesar da ascensão da identidade individual a fabricação seriada deixa os gostos, na verdade, cada vez mais uniformes.

Figura 34: Casa futurista.

Fonte: CASA & JARDIM, n. 65, p. 51, junho de 1960. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná.

Sobre uma segunda casa divulgada na mesma reportagem, que parece “um enorme balão” reforçado com concreto, Casa & Jardim sugere que sua tipologia “oferece variadíssimas possibilidades de decoração, desconhecidas em casas comuns”113. Assim, a revista infere que uma arquitetura incomum também pede uma decoração de interiores que acompanhe essa linguagem, não somente para criar coerência no projeto como um todo, mas também porque o formato incomum da casa não comporta qualquer tipo de mobília.

As visões futuristas do espaço doméstico “se referiam muito mais ao mundo da ficção científica, do que a dar respostas às questões reais do morar” (BURDEK, 2006, p. 387). O uso dos formatos esféricos e orgânicos limitava o uso de mobília, que precisava se encaixar nesses espaços, assim os móveis eram escolhidos não em relação à sua função, mas em diálogo com a modernidade da era espacial que estava no imaginário da sociedade, esta, otimista em relação ao “progresso científico” (JACKSON, 2000). Ao mesmo tempo em que a linguagem da era espacial estava sendo informada pelos valores socioculturais em circulação, ela também participava da constituição da identidade dos sujeitos, especialmente femininos, devido à sua associação histórica à decoração de interiores, sendo um processo de via de mão dupla.

O grupo britânico de arquitetura conhecido como Archigram fez diversos projetos experimentais pensando na casa do futuro. De acordo com Topham (2003), os avanços tecnológicos do período desafiavam os arquitetos a pensarem em novas e flexíveis experiências de morar. Uma das formas do grupo Archigram responder a esse desafio foi através do projeto 1990 House. Tratava-se de uma exposição de design encomendada ao grupo pelas lojas de departamento britânicas Telegraph e Harrods (ARCHIGRAM, 2016). A exposição mostrava uma casa imaginada para o ano de 1990 com móveis infláveis e um ambiente que poderia ser adaptado aos seus habitantes conforme as necessidades (TOPHAM, 2003). De acordo com Topham (2003, p. 86) “os apartamentos individuais eram plugados em uma megaestrutura, que fornecia todos os serviços essenciais como energia, água e saneamento”.

O Archigram também ficou conhecido por defender a ideia de uma “arquitetura dispensável”, trabalhando com o conceito de “cidades imaginadas

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CASAS incomuns nos E.U.A. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S.A., n. 65, p. 52-55, jun. 1960.

instantaneamente”, que poderiam ser configuradas e reconfiguradas a partir da combinação de elementos pré-fabricados (PAVITT, 2008, p. 38). Além disso, o grupo tinha uma publicação, também chamada Archigram, cuja terceira edição trazia artigos relacionados à descartabilidade na arquitetura que discutiam a ideia da tendência de uma arquitetura temporária, sem um lugar fixo (TOPHAM, 2003). Alguns outros trabalhos do grupo Archigram foram considerados como “um híbrido de roupas e arquitetura” visto que as estruturas infláveis eram pensadas para “vestir” externamente as casas (PAVITT, 2008). Jane Pavitt (2008, p. 101) explica que Peter Cook, um dos fundadores do Archigram, discutia essa ideia de arquitetura como um “container humano”, “um habitat tecnológico ideal para situações extremas, como locais inóspitos e cenários pós-desastre” 114. Isso porque durante a Guerra Fria entre EUA e URSS havia a ameaça de que um confronto nuclear poderia estourar a qualquer momento (HOBSBAWM, 1995). O principal protótipo, desenvolvido pelo grupo, que materializou essa ideia de “container-humano”, foi a Suitaloon. Desenvolvida em 1967, tratava-se de uma “casa-suíte inflável”115 (PAVITT, 2008, p. 105). O material plástico poderia ser vestido, pois tinha a forma de um macacão e, conforme a necessidade, poderia ser inflado formando um abrigo para ser usado quando o/a usuário/a precisasse de um “lar”, abrigando até duas pessoas. Dessa forma, vestuário e arquitetura transformam-se um no outro (FIGURAS 35 e 36).

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Tradução livre do original: “technological habitat ideally suited to extreme situations, such as inhospitable locations and post-disaster landscapes”.

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Figura 35: Suitaloon, traje do grupo Archigram.

Fonte: Site Archigram116.

Figura 36: Suitaloon, “casa inflável” do grupo Archigram.

Fonte: PAVITT, 2008, p. 105.

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Disponível em: <http://archigram.westminster.ac.uk/project.php?id=112> Acesso em: jan. 2017.

Preciado (2010, p. 169) afirma que esse tipo de refúgio inflável foi pensado para “intensificar, ampliar ou distorcer a experiência do corpo e dos sentidos”117. Dando continuidade ao capítulo, a partir do próximo subcapítulodiscuto os interiores domésticos e as características que delinearam a linguagem do imaginário espacial na decoração de interiores.