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8 – Cultura material e integração cronológico-cultural

A cultura material, à luz da Arqueologia, traduz-se no estudo do espólio deixado pelo Homem ao longo dos tempos da sua evolução, como testemunho das suas acções, de se relacionar com o ambiente e das formas de estar em sociedade. Não se pode, contudo, tirar conclusões certas e indiscutíveis em relação às próprias acções, motivos e sentimentos, que estarão por detrás da elaboração dos objectos.

Através do estudo do material recolhido em sítios arqueológicos, como a Gruta da Cerca do Zambujal, pretende-se atribuir cronologia àquela presença humana e enquadrá-la em termos culturais, numa fase da evolução do Homem. Não se pode, no entanto, querer separar em “caixas” cada fase crono-cultural.

O material osteológico que se encontrou nesta gruta corresponde a testemunhos correspondentes a 46 indivíduos, entre crianças e adultos. O estudo agora apresentado não conta com a análise pormenorizada deste. No entanto, tentou- se perceber a que tipo de material correspondia e se poderia, ou não, conter vestígios de ritualizações, tal como o tipo de ritualizações, caso existissem indícios destas. Os vários fragmentos osteológicos recolhidos integravam, entre outros, crânios, mandíbulas, ossos longos e ossos pélvicos, conforme atrás referimos.

“Trata-se evidentemente de grutas sepulcrais pois é avultado o numero de restos humanos pertencentes, pelo menos, a 46 indivíduos, na gruta da Cerca do Zambujal, que é, como veremos, de pequenas dimensões, relativamente diminuto o numero de instrumentos líticos, ósseos e de cerâmica, não tendo aparecido vestígios de refeições ou outros que provassem a sua habitação.” (Nogueira, 1927:42)

O único sinal de ritualização que foi possível detectar naqueles restos corresponde à presença de ocre vermelho.

Segundo os testemunhos dos intervenientes responsaveis pelos trabalhos arqueológicos efectuados na gruta, nesta era possivel identificar diferentes “nucleos” de disposição quer dos materiais arqueológicos, quer das ossadas, quer ainda o enterramento único contendo esqueleto completo, em posição de decubido dorsal.

Aqueles núcleos estavam localizados em zonas diferentes da gruta, encontrando-se as ossadas depositadas junto às suas paredes e o espólio na sua entrada. O único esqueleto completo encontrava-se em uma zona exterior da gruta, mas integrando o contexto desta. Este aspecto é deveras importante, pois pode ser detectado faseamento na forma de deposição dos mortos. Tal como refere Joaquina Soares (2003:43), durante o Neolítico Final os mortos seriam enterrados encostados às paredes das câmaras funerárias e durante o Calcolítico Inicial e Pleno o inumado seria enterrado na parte central das câmaras. Importa referir que o material exumado na Cerca do Zambujal não se encontrava associado a nenhum dos enterramentos identificados, mas sim aglomerados à entrada daquela. Este factor vem dificultar a possibilidade da detecção e datação relativa dos rituais funerários.

Segundo Zilhão (1984:29), há uma “ (…) tendência para a complexificação dos

rituais funerários e para a maior importância dada a cada indivíduo (…)” desde o

Neolítico antigo ao Romano, ou seja, existe evolução das estruturas funerárias com o passar do tempo. Neste sentido, o mesmo autor, realiza separação temporal, enquadrando o enterramento isolado da Cerca do Zambujal, na fase em que existe uma escolha de “ (…) recintos naturais, mais ou menos arranjados, para a realização de

enterramentos, (…)” e em que se procederam a inumações em “fenda entre os estratos”, mas sem espólio. Ao contrário do caso em apreço, é possível encontrar-se

na, Caverna dos Alqueves, inumações em “fendas entre os estratos”, “ acompanhadas

por espólio reduzido mas que, pela presença de uma ponta de seta, pode ser de um Neolítico Final.” Um outro facto a mencionar, tal como refere Zilhão (1984:30), é que o

hábito de estruturar e ritualizar as tumulações secundárias poderá ter surgido no Neolítico Final estendendo-se a todo o Calcolítico, tal como se pode observar na Lapa do Fumo e na Lapa do Bugio, dois extremos cronológicos da mesma região.

Do mesmo modo, no arqueossítio em estudo, o grupo das ossadas corresponde a deposição secundária, evidenciada não só pela sua dissociação como pela presença, de salpicos de ocre em alguns restos osteológicos, como exemplificam os crânios. Nestes, foi ainda possível encontrar ocre nas suturas, evidência de ritualização, já com estes descarnados. Ou seja, este é mais um factor a ter em consideração relativamente ao enquadramento cronológico do tipo de tumulações encontradas.

Passando à análise do material arqueológico podemos depreender, devido à sua contabilização geral, que há um maior número de artefactos de pedra polida, seguido dos materiais de pedra lascada, materiais de osso, cerâmica e contas de colar.

Espólio arqueológico 0 2 4 6 8 10 12 14 16

Lâminas Machados Enxós Escopros Taça Carenada Taça em Calote Fragmento

correspondente a porção de bordo Fragmento indeterminado Tipologia To ta l

Gráfico 1 – Contabilização do material arqueológico estudado

A existência de um maior número de materiais de pedra polida e lascada, e a diminuta representatividade de espólio cerâmico, onde se contabilizam duas taças inteiras e dois fragmentos de bordo, associado à prática “ (…) de estruturar e ritualizar as tumulações secundárias (…)”, (Zilhão, 1984:30), pode indicar contexto do Neolítico Médio/Final. Este aspecto não viria a ser confirmado pelas várias datações de radiocarbono (ver quadro p.19, capitulo 6), efectuadas por investigadores canadianos que se debruçaram sobre o estudo do material osteológico deste e de outros arqueossítios, pois indicaram, para a Gruta da Cerca do Zambujal, datação absoluta no III milénio a.C. e, portanto, no Calcolítico.

Também o material encontrado na gruta do Algar do Barrão (Monsanto, Alcanena), que a integram como sendo um local do Neolítico Médio, é quase exclusivamente constituído por materiais não cerâmicos, como lâminas, lamelas, machados e enxós de pedra polida, furadores de osso, entre outro espólio, onde a cerâmica apresenta formas simples, lisas e com aplicação de almagre (Carvalho et alii, 2003:115). Por outro lado, a Gruta da Cerca do Zambujal não possui alguns dos

como seja, para além de maior número de cerâmicas, lâminas e lamelas, a presença de alfinetes de osso, pontas de flecha e de placas de xisto gravadas.

Não se pode, também, deixar de observar a ausência, neste mesmo local, de testemunhos como as braceletes e os geométricos, que o poderiam enquadrar no Neolitico Médio.

Analisando o material de pedra lascada da Gruta da Cerca do Zambujal, pode-se perceber que o tipo de secção predominante das lâminas é a trapezoidal, com 83%, sendo apenas de 17 % as de secção triangular.

Quanto ao tipo de contorno daquelas peças 67% é trapezoidal, sendo as restantes, 33%, sub-rectangulares.

Nesta amostragem apenas 67% possuía retoque, enquanto as restantes 33 % não a apresentaram.

O comprimento predominante encontra-se entre os 7 cm e os 10 cm, havendo apenas uma lâmina que, por se encontrar partida, mede, apenas, 4 cm.

83% 17%

Trapezoidal Triangular

33%

67%

Sub-rectangular Trapezoidal

Gráfico 3 – Contorno das lâminas

33%

67%

Ausente Sub-vertical

50% 50%

Ausente Presente

Gráfico 5 – Entalhes nas lâminas

As características de indústria de pedra lascada da Gruta da Cerca do Zambujal podem ser identificadas em jazidas como a Lapa do Bugio ou nas antas de Reguengos de Monsaraz, em que, entre outros materiais de pedra lascada ausentes na estação estudada, as lâminas ou facas, sem retoques, têm numerosa presença. As facas são produtos alongados delgados e ligeiramente encurvados, que nos monumentos megalíticos funerários não se encontram normalmente retocadas. Tal como refere V. Leisner (1985:59) “ (…) ‘facas’ pequenas e finas, que no sudeste caracterizam o

neolítico final (…)” foram também encontradas em antas de Reguengos, como sejam a

anta 1 das Vidigueiras, a anta do Poço da Gateira, anta 2 da Comenda, entre outras deste período.

Outras jazidas, em que se pode encontrar este tipo de material de pedra lascada, são os hipogeus da Quinta do Anjo (Palmela). Entre outro espólio ali exumado, importa destacar os cinco fragmentos de lâminas não retocadas, de sílex. Foi possível, ainda, encontrar paralelos, na Gruta dos Ossos, nas jazidas do Neolítico Final da Comporta e no povoado do Neolítico Final do Carrascal, apesar da sua diminuta e algo fragmentada amostragem. Pode-se determinar paralelos com um outro sítio do Neolítico Inicial/Médio, ou seja, a Gruta dos Carrascos, sobre o qual foi elaborado estudo sobre este tipo de materiais, por A. Faustino de Carvalho. Apesar da Gruta da

Cerca do Zambujal ser datável do Neolítico Final, as lâminas de pedra lascada são semelhantes às da Gruta dos Ossos, acima referenciada, que foram separadas, por este autor, em duas categorias, a partir da variação da largura média e que foi datada do Neolítico Final/Calcolítico Inicial da Estremadura/Ribatejo (Carvalho, 1998:68).

Apesar de se detectar estas variações nas lâminas exumadas na Gruta da Cerca do Zambujal, não podemos deixar de estabelecer as parecenças indicadas quanto à sua forma simples, sem ou quase nenhum retoque e tipo de secção que possuem, triangular ou trapezoidal. No que se refere ao tipo de matéria-prima, o sílex, em que foram elaboradas, ele pode ser encontrado na Península de Setúbal ou na Costa Alentejana, assim como em raros locais do Alto Alentejo (Gomes, 2002:127).

Passando à análise do material de pedra polida/picotada, que totaliza 24 exemplares, conseguiu-se claramente percepcionar que há uma maior quantidade de machados (14) comparativamente às enxós (8) e escopros (2).

No que concerne ao tipo da secção transversal, existe maior predomínio da oval com onze exemplares, seguida da secção subcircular com quatro e da ovalada com três, existindo ainda, mas em menor número, as secções circular, quadrangular e trapezoidal.

Quanto há picotagem, em onze exemplares, ela é reconhecível nas superfícies, enquanto que em nove está totalmente ausente e em apenas quatro se pode visualizar picotagem parcial.

Relativamente à matéria-prima foi possivel perceber que dos 24 artefactos em pedra polida/picotada, 19 eram de anfibolíto e apenas 5 foram produzidas em xisto anfibólico, possivelmente devido ao facto de ser uma matéria-prima local e de fácil aquisição.

8

2

14

Enxó Escopro Machado

Gráfico 6 – Material de Pedra Polida

2

6

1 1

4

Circular Oval Ovalada Quadrangular Subcircular

11

2

1

Ausente Parcial Presente

Gráfico 8 – Polimento das superfícies dos machados

1

7

Ausente Presente

1

4

9

Ausente Parcialmente Presente

Gráfico 10 – Picotagem nos machados

7

1

Ausente Presente

19

5

Anfibolito Xisto Anfibolico

Gráfico 12 – Matéria-prima da pedra polida

Através da análise do material de pedra polida pode-se atribuí-lo ao Neolítico Médio/Final. De facto, a maior presença dos machados e das enxós, de secção oval ou subcircular, apesar de não se terem encontrado goivas, constitui indicativos daquele período. Outra característica reside na existência de uma maior quantidade de machados com as superfícies picotadas e com apenas o gume polido. Todavia, em relação às enxós, há uma maior quantidade totalmente polidas, apresentando trabalho de maior cuidado.

Comparativamente ao estudo efectuado, por J. L. Cardoso (1992:99), para material encontrado na Lapa do Bugio, podemos encontrar semelhanças com o espólio da Gruta da Cerca do Zambujal não só relativamente ao tipo de machados como também de enxós.

Apesar de no presente caso de estudo não existirem enxós delgadas, totalmente polidas, elas podem ainda ser comparáveis às de outras jazidas do Neolítico Médio/Final. De facto, foi ainda possível encontrar paralelos em sítios como a Gruta dos Ossos, nas jazidas do Neolítico Final da Comporta ou no povoado do Neolítico Final do Carrascal. Uma das características comuns corresponde à existência de uma maior quantidade de enxós com as superfícies picotadas do que com elas polidas.

Um outro aspecto a ter em consideração relativamente às enxós é a sua importância simbólica para as comunidades pré-históricas neolíticas. Tal como refere Valera, (2006:341), aquele aspecto encontra-se bem representado “ (…) no papel de

relevo que lhes foi progressivamente atribuído em muitos rituais funerários (…)”. Foi

segundo o mesmo autor, durante a segunda metade do IV milénio e a primeira metade do III milénio A.C., que terá ocorrido o grande apogeu desta categoria artefactual (Valera, 2006:342).

No que se refere à cerâmica da Gruta da Cerca do Zambujal foi possível encontrar paralelos em exemplares da Comporta I, II e III, nomeadamente nas jazidas de Pontal, Malhada Alta e Possanco.

Com Comporta I, que se integra, segundo J. Soares e C. T. da Silva (1980:15), em fase do Neolítico Médio de tradição antiga, no enquadramento da evolução do Neolítico a Sul do Tejo, podemos observar semelhanças relativamente às formas em calote, às pastas compactas e às superfícies alisadas. Relativamente à Comporta II, que se enquadra na fase do Neolítico Médio-Recente, do mesmo enquadramento evolutivo acima referido, foi possível encontrar paridade relativamente às formas em calote, mas não tanto em relação ás pastas, as quais voltam a ter semelhanças com Comporta III, que se enquadra na fase do Neolítico Final, quando se tornam novamente mais compactas, mas não tanto com as formas que se encontram nesta mesma fase (Soares e Silva, 1980:16).

Este tipo de características da cerâmica lisa é, também, possível de ser encontrado em contextos da Estremadura, Estremadura/Ribatejo, datáveis do mesmo período crono-cultural, como por exemplo no povoado do Carrascal e Gruta do Ossos.

O material acima analisado remete-nos, pois, para um Neolitico Final, tal como já anteriormente referido.

Durante o período referido existem série de características na cultura material, embora estes possam variar, ou acoplar outros, dependendo da localização geográfica dos sítios arqueológicos e de existência, ou não, de miscigenações culturais.

2 7 1 1 Fragmento correspondendo a pressão de bordo Fragmento indeterminado

Taça Carenada Taça em Calote

Gráfico 13 – Forma das cerâmicas

2

9

Homogeneidade relativa Homogénia e Compacta

Gráfico 14 – Tipo de pastas

A par deste espólio que analisámos, mas em número reduzido, devem-se incluir as contas discoides, em xisto e perfuradas no centro. Eles são comparáveis às encontradas, por exemplo, na Barrosinha (Comporta II) datáveis do Neolítico Recente, mas ainda em numerosos monumentos megalíticos do Neolítico Médio/Final, designadamente do Alentejo Litoral. Entre estes devemos citar as ocorrências do dólmen da Palhota (Santiago do Cacém) (Soares e Silva, 1976-77), e da sepultura do

em xisto são em ambos os locais raras não ultrapassando os três exemplares no primeiro exemplo e de duas no segundo exemplo.

Por fim, entre os artefactos da Gruta da Cerca do Zambujal encontram-se três furadores de osso, comparáveis aos procedentes da gruta do Algar do Bom Santo, datáveis do Neolítico Médio/Final, mas também de outros arqueossítios como por exemplo a Lapa do Bugio (Cardoso, 1992:90)

Tal como refere Carvalho, et alii., (2003:101), “A cronologia do Algar do Barrão,

assim como as práticas funerárias e o espólio associado, encontram paralelo num conjunto de cavidades cársicas do Maciço Calcário Estremenho e regiões adjacentes (p. ex., Gruta do Lugar do Canto, Gruta dos Ossos) cujo espólio, tradicionalmente atribuído ao Neolítico médio, tem vindo a ser, em alguns casos, datado de finais do IV milénio (ou seja, no que se convencionou chamar Neolítico final).”. Também se pode enquadrar

a gruta da cerca do Zambujal neste parâmetro de análise comparativa.

Quanto ao material osteológico humano encontrado no arqueossítio em estudo, pode-se enquadrá-lo nas práticas funerárias do Neolítico, pois é durante este período, que a forma de encarar os mortos se vai alterar. Vai-se observar “(…) uma

proliferação de rituais de enterramento, que se transformam no tempo e que variam também de acordo com as áreas estudadas.” (Carvalho., 2003:325)

Em zonas, como a Estremadura, Alto Alentejo, e no Alentejo Litoral (Melides), onde existem grutas naturais, muitas delas foram utilizadas como local de enterramento, ou seja, como necrópoles colectivas. A Gruta da Cerca do Zambujal, pode integrar este tipo de utilização funerária.

Apesar de já anteriormente, durante o Mesolítico, se presenciar ritualização funerária, através do enterramento dos mortos em depressões escavadas no solo, não encontramos, contudo, separação física clara entre o espaço dos vivos e o dos mortos. Este seria um espaço com “ (…) expressão de uma territorialidade qualitativa, de

identificação de uma comunidade com um espaço concreto, ainda que este seja utilizado a um ritmo sazonal.” (Diniz, 2000: 113)

Tal como refere Mariana Diniz (2000:114), não se pode atribuir, uma simplicidade simbólica rudimentar àquele ritual, pois não se podendo deduzir qual o

significado subjacente, para aquelas comunidades, da importância que teria a proximidade espacial entre a comunidade e os seus antecessores. Esta deve “(…) ter

constituído uma linha de significado dominante na construção social da morte, dispensando materializações mais elaboradas.”

Apesar da escassa informação quanto aos enterramentos atribuíveis ao Neolítico Antigo, pode-se, detectar no Neolítico Médio e Final separação e, consequentemente, a mudança na forma de interpretação do espaço, havendo evidente afastamento entre os sítios de habitat e os locais de enterramento.

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