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Nos tempos mais remotos, a filosofia, a religião, a literatura e as artes, bem como outros campos do conhecimento, eram o palco privilegiado das representações que distinguiam habilidades intelectuais e cognitivas, entre outras, de acordo com o sexo de cada indivíduo. Segundo Beauvoir (1970), Aristóteles dizia que a fêmea só era fêmea devido a certa carência de qualidades, e São Tomás de Aquino teria afirmado ser a mulher um ser “ocasional”, entendida como um homem incompleto. Ela complementa

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sua argumentação lembrando que no Livro do Gêneses, do Antigo Testamento da Bíblia, Eva ganha vida a partir de um osso de Adão. A autora conclui dizendo que “A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser humano” (BEAUVOIR, 1970, p. 10).

Se essas e outras concepções sobre o feminino, que remontam a milênios, tinham sua circulação restrita à partilha de locais comuns, na atualidade, porém, há um deslocamento dessas representações para o campo midiático, na medida em que este se tornou o principal veículo de distribuição e disseminação da cultura. Sob essa perspectiva, foi considerada, neste estudo, a força dos bens culturais produzidos pelas organizações midiáticas num processo de socialização que transforma e reorganiza os diferentes aspectos da vida social.

Essa centralidade inaugurou o que Thompson (2009) identifica como a “Midiação da Cultura Moderna”. O autor define esse conceito como o processo por meio do qual as formas simbólicas passaram a ser, cada vez mais, mediadas pelas organizações da mídia, o que “conseguiu transformar radicalmente as maneiras como as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas por indivíduos no curso de suas vidas cotidianas” (THOMPSON, 2009, p. 220). Segundo o autor, a “midiação da cultura moderna” começou a se delinear no século XV, com a invenção da imprensa por Gutemberg, e está diretamente vinculada à expansão do capitalismo e à formação do sistema moderno de estado-nação.

O desenvolvimento desses aparatos tecnológicos transformou não apenas as formas de produção e recepção de mensagens, mas, também, as condições sociais em que as mesmas passaram a ser recebidas cotidianamente. A possibilidade de vivenciar acontecimentos espacial e temporalmente longínquos pode estimular novas formas de ação e interação, além de ampliar potencialmente a experiência individual e social. “Os próprios acontecimentos estão sujeitos, por isso mesmo, a um novo tipo de exame global como nunca se testemunhou antes” (THOMPSON, 2009, p. 29, grifos do autor).

Outro autor preocupado com a temática é Douglas Kellner (2001), que também reflete sobre o papel da mídia enquanto espaço privilegiado de produção da cultura. Processo que ele afirma ter se aprofundado decisivamente com o advento da televisão, no pós-guerra, quando a mídia se transformou em força dominante na cultura, na socialização, na política e na vida social. Em sua visão, a mídia colonizou a cultura já que é hoje o principal veículo para distribuir e disseminar a produção simbólica. Ao viabilizar um fluxo sem precedentes de imagens, sons, entretenimento e informação, a

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mídia reordena as percepções de espaço e tempo, anulando distinções entre realidade e imagem e produzindo novos modos de experiência e subjetividade.

Para Kellner (2001), os modos anteriores de cultura como livro e todas aquelas formas baseadas na fala foram suplantados pelos aparatos técnicos de comunicação. A mídia é, “portanto, a forma dominante e o lugar da cultura nas sociedades contemporâneas” (KELLNER, 2001, p. 54). Vista como força preponderante de socialização, segundo o autor, a mídia transformou todos os campos de vida social: na economia, as formas culturais modelam os sujeitos sob a forma de um “eu-mercadoria” imbuído de valores consumistas; na esfera política, as imagens da mídia produzem uma espécie de política de frases de impacto descontextualizadas, e nas interações sociais, as imagens produzidas pela mídia orientam a apresentação do “eu”, da vida diária e a maneira como as pessoas se relacionam.

Segundo Chouliaraki e Fairclough (1999, prefácio, tradução nossa), áreas fundamentais, como a política, se tornam cada vez mais centradas nos meios de comunicação de massa:

Além do mais, áreas vitais da sociedade (como é o caso da política) se tornaram incrivelmente centradas nos meios de comunicação de massa e aqueles envolvidos nestas áreas, consequentemente, estão cada vez mais conscientes da linguagem que utilizam.42

A esse respeito, Richardson (2007) salienta que os discursos políticos fazem, comumente, a defesa de ações que são indefensáveis, como é o caso das bombas atômicas que atingiram o Japão e a manutenção do domínio inglês na Índia. É o emprego de determinadas estratégias discursivas que legitima ações violentas empregadas contra comunidades civis e camponeses indefesos/as serem chamadas de “pacificação”. A esse respeito, Molotoch e Lester (1993) recordam que o massacre de My Lai protagonizado pelo exército norte-americano durante a Guerra do Vietnã, contra a população local, inicialmente, foi descrito como um bem sucedido procedimento militar rotineiro contra o exército Vietcong, e que, só posteriormente, passou a ser representado como um “massacre”.

O impacto das novas possibilidades comunicacionais também alterou a natureza e os limites do público e do privado e redefiniu o exercício do poder político. Thompson

42 “Moreover, key areas of social life (such as politics) have become increasingly centred upon the mass

media, and those in these areas have consequently become increasingly self-conscious about the language they use.” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, prefácio)

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(1998) destaca que, até o desenvolvimento dos meios de comunicação, os líderes políticos eram praticamente invisíveis para a maioria das pessoas, já que as decisões eram tomadas em ambientes fechados e que, dificilmente, eram reveladas ao público. Segundo o autor, nos estados monárquicos da Idade Média e mesmo no início da Europa Moderna, a publicidade dizia respeito à exaltação do poder, e não ao seu exercício. As aparições públicas eram eventos cercados de pompa, marcados pela partilha de um lugar comum, e destinados a afirmar a “aura” do monarca.

No entanto, o advento dos meios de comunicação, em especial a televisão, desintegrou o caráter sagrado do poder político e o submeteu a um “escrutínio global”. Essa transformação impôs a administração da visibilidade como uma habilidade intrínseca à arte de governar. Ele salienta que desde sempre os governantes e líderes políticos se preocuparam com sua visibilidade pública, porém, com a emergência dos meios de comunicação, a natureza dessa exposição passou por uma transformação que mudou “as regras práticas desta arte” (THOMPSON, 1998, p.122).

Essa nova faceta da política na era midiatizada criou, na visão do autor, uma espécie de “escrutínio global” que passa a ser exercido principalmente por meio da televisão e que é capaz de determinar a existência ou a exclusão de atores da cena política, conforme alerta Rubim (2004). Miguel (2007, p. 410) argumenta, ainda, que, muito além, de difundir o discurso político, a mídia também é responsável por transformá-lo: “Certas características do discurso político midiático – personalização, diluição, fragmentação, - colocam obstáculos sérios ao desenvolvimento do debate de ideias (que desde os gregos, é visto como indispensável à prática democrática)”.

Ainda assim, Miguel considera que mesmo antes da televisão, nunca houve um “debate puro” de ideias, porque se, hoje, a aparência do candidato tornou-se muito relevante, no passado semelhante importância era atribuída ao timbre da sua voz e mesmo à sua estatura, pois ter mais altura significava um maior destaque nos comícios políticos ou outros encontros com eleitores.