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Se a paisagem e o espaço exprimem heranças do passado, formas de identidade e de memória, a cultura como algo exterior ou interior aos sujeitos exprime “um sistema de vida, no seu aspecto material, intelectual e espiritual” [WILLIAMS, 1979: 25].

Este mesmo autor, entre outros, BOSI [1993:11-19]; [WILLIANS, 1992:10- 12], faz um apanhado histórico dos distintos significados da categoria cultura. Inicialmente, foi concebida como tendência do crescimento natural, passando

depois a designar um processo de treinamento humano. No século XIX, vários movimentos e correntes de pensamento utilizaram-se desta categoria com diferentes significados.

Na presente pesquisa o significado de cultura será adotado enquanto “um sistema de vida”, articulando as práticas, os costumes, os valores dos indivíduos. Cultura que significava um estado ou um hábito mental ou ainda, um corpo de atividades intelectuais e morais agora significa também todo um modo de vida, ou seja, é necessário pensar cultura perpassando todas as relações estabelecidas e existentes nas práticas vivenciadas cotidianamente [WILLIANS, 1969:20]. Assim, pode-se pensar articuladamente as práticas sociais e os modos de vida. Esta perspectiva, apesar de muitas resistências foi reconhecida: “o conceito de cultura como um processo social constitutivo, que cria modos de vida específicos e diferentes, que poderiam ter sido aprofundados pela ênfase no processo social material, foi por muito tempo substituídas na prática por um universalismo abstrato unilinear” [WILLIANS, 1979:25].

Inspirado em Marx, EIDT [1999] argumenta que a história-cultura é o modo como, em condições determinadas e não escolhidas, os homens produzem materialmente [pelo trabalho, pela organização econômica] sua existência e dá sentido a essa produção material. A história-cultura não narra o movimento temporal do espírito, mas as lutas reais dos seres humanos reais que produzem e reproduzem suas condições materiais de existência, isto é, produzem e reproduzem relações sociais, pelas quais distinguem-se da natureza e diferenciam-se uns aos outros em classes sociais antagônicas.

Pensar a cultura enquanto modo de viver possibilita uma aproximação com a noção de experiência, no sentido proposto por THOMPSON [1982:189], de que ela é gerada no interior das práticas e da vida material. Esta aproximação propõe um outro ponto de junção considerando que as pessoas realizam experiência enquanto “sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou na arte e convicções religiosas. Essa metade da cultura [e é uma metade completa] pode ser descrita como ciência afetiva e moral”.

Esses elementos, que dão conteúdo às experiências, não se sobrepõem uns aos outros, mas se articulam dinamicamente, dando sentido e orientando às ações do sujeito, pessoal ou socialmente. Nos estudos do referido autor o conceito de cultura é permeado por um fundo político expresso na idéia de que a luta de classe é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores.

Em Thompson e Willians as contribuições são, portanto fundamentais para pensar a cultura enquanto modo de viver, que têm suas referências nos costumes imbricados às condições de sobrevivência. É esta a orientação básica de THOMPSON [1982:190] em suas pesquisas, quando destaca: “o que eu examino é a dialética da interação, a dialética entre economia e valores. Esta preocupação se encontra em todo meu trabalho histórico e político”. É no horizonte dessas discussões e proposição que a cultura ganha significado no contexto das relações sociais, ela não está localizada fora da sociedade como um todo, como um campo da abstração.

Na mesma linha de pensamento, LEFEBVRE [1991] e HELLER [1977, 1989] entendem que o mundo humano não se define somente pela totalidade da sociedade global, pela história e pela cultura, ou ainda pelas superestruturas políticas permeadas de ideologia, mas também pela mediação da vida cotidiana. Não sendo possível conhecer a sociedade envolvente sem conhecer a vida cotidiana, assim como não é possível conhecer a cotidianeidade sem o conhecimento crítico da sociedade. LEFEBVRE [1991] vê na cotidianeidade o perfil do mundo moderno urbano, que se configura como um mundo de manipulações. Para ele a ideologia instala-se sobre a realidade vivida como um mecanismo que escamoteia os verdadeiros interesses das pessoas e que são travestidos em representações enganosas de sua efetiva situação. Essa arrebatadora capacidade é exercida em função da situação desprotegida da cotidianeidade, da realidade mais concreta de vida dos indivíduos. Já em HELLER [1989] o cotidiano tem como forte característica a rotina que, por sua vez, impõe às pessoas a necessidade imediata de uma reação que pode apresentar-se fragmentada em sua espontaneidade, no pragmatismo e na generalização ou preconceito, culminando em alienação dos sujeitos. Entretanto a possibilidade de

escapar das amarras cotidianas pode-se dar pelo que Heller chamou de “dimensão humano-genérica”, onde há a superação dialética da particularidade e as ações visam o bem comum e não o benefício individualizado.

Em Sociologia de La Vida Cotidiana [1977] e o Cotidiano e a História [1989] Agnes Heller dedica sua atenção às relações entre ética e a vida social e a estrutura da vida cotidiana. Nestes escritos a análise do humano é feita observando que os homens jamais escolhem valores, mas idéias concretas. Para ela:

Seus atos concretos de escolha estão naturalmente relacionados com sua atitude valorativa geral, assim como seus juízos estão ligados à sua imagem do mundo. E, reciprocamente, sua atitude valorativa se fortalece no decorrer dos concretos atos de escolha [1989:14].

Apesar das diferenças apontadas anteriormente entre HELLER [1989] e LEFEBVRE [1991] no que diz respeito à vida cotidiana, pode-se verificar que ambos apontam para saídas semelhantes. Se Heller supõe que a historicidade da vida cotidiana é caracterizada como lugar dialético onde convivem submissão e rebeldia, repetição e criatividade, Lefebvre supõe que as forças de consolidação de um espaço-tempo estão cada vez mais programadas e controladas em relação às forças que se opõem a esse mesmo processo no mundo moderno urbano. Mas, em Heller, a vida não-cotidiana, marcada pelas atividades da dimensão humano-genérica, pode superar dialeticamente a cotidianeidade e em Lefebvre as atividades, que chamou de “superiores” presentes no não-cotidiano, nascem dos germes contidos na vida cotidiana e a ela retornam confirmando sua validade. Residem aí suas similaridades.