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CAPÍTULO V – CULTURA POLÍTICA

5.2. Cultura política e o habitus

Neste trabalho desenvolvi uma linha de análise que tem levado em consideração as maneiras através das quais as práticas e as relações sociais pautadas em “trocas de favores” foram instituídas a partir do exercício de dominação política exercido a partir do grupo familiar Ernesto-Rêgo. Levando-se, assim, como base compreensiva à origem dessas famílias e como essas práticas foram sendo incorporadas pelos agentes de maneira natural a ponto deles são perceberem o próprio processo de docilidade que os seus corpos foram moldados através de regimes de poder, de imposição e, conseqüentemente, incorporação de práticas políticas que historicamente constituíram profundas dependências por parte dos menos favorecidos em relação aos grupos que dominaram ou pertenceram à ortodoxia do campo político local.

Para tanto, cabe agora destacar não somente a maneira como cada personagem foi se legitimando, de forma relacional, inseridos nas disputas e articulando capitais, como elementos diferenciadores e distintivos dentro do campo de disputas, mas também perceber a dimensão cultural na qual esses agentes estão inseridos.

Assim como a maioria dos municípios brasileiros, Queimadas possuiu, desde o seu processo de formação, e ainda hoje possui, uma grande dependência de receitas públicas do ente federal, da União, mostrando-se assim esta submissão quanto a sua receita em relação às transferências constitucionais do Governo Federal, chegando a 99,9% dos seus recursos dependentes de repasses unilaterais. Associado a isto se tem também, um sistema tributário do município desajustado, enormes dificuldades de

acesso ao crédito pelos pequenos e médios agricultores, uma estrutura agrária, ainda, concentradora de terra, característica do Semi-Árido nordestino; a baixa produtividade em todos os setores da atividade econômica; uma elevada concentração de renda (de 9.126 domicílios existentes no município, 6.658 domicílios, equivalente a 72,96%, recebem até 2 salários mínimos, enquanto que 27,04% dos responsáveis pelos domicílios recebem mais de 2 salários mínimos mensais e a baixa qualificação da mão de obra.

Em relação aos índices relacionados ao campo educativo, destaca-se que ainda se encontram muito aquém, e um dos elementos que nos desperta a atenção é que o município se caracteriza com um estado de analfabetismo funcional de grande parte da população jovem, ou seja, a quantidade de analfabetos do município ainda é bastante elevada.

Destaca-se, também, e ainda, que do ponto de vista político-institucional há uma carência muito grande em termos de organização da sociedade civil, ou seja, não existe uma sociedade civil empoderada, organizada política e socialmente, o que não possibilita por em prática mecanismos de participação e controle social de políticas e de fundos públicos, e com isto se fortalece uma cultura política antidemocrática.

Os partidos políticos são apropriados por lideranças locais, as quais decidem quais as alianças devem ser realizadas em períodos eleitorais, sem que antes consultem os filiados para tomarem suas decisões. Em outras palavras, as decisões são tomadas pelo “dono” do partido, políticos locais e não através de debates em fóruns públicos, conforme o ideal democrático. Diante deste quadro, o município se caracteriza através de práticas tidas, no jargão da ciência política, como personalistas, por parte das lideranças políticas locais, clientelísticas, assistencialistas, nepotistas e centralizadoras, focalizadas em interesses individuais dos agentes envolvidos. Soma-se a isto, o fato de que, embora possuindo, 54 associações estas funcionam como instrumentos de arregimentação de votos em períodos eleitorais, visto que a relação com o gestor se dá através do vereador e este junto à associação.

Numa sociedade onde ainda impera o clientelismo e outros padrões de relações sociais baseados em códigos de ética e de direito privado próprio das oligarquias agrárias, apesar de envernizados de modernos, os valores que presidem tais relações são seguidos pelo conjunto da população como algo transcendente e imutável, e não como algo construído socialmente e passível de tematização pública e questionamento.

Nesse sentido, a cultura política local se constitui enquanto cultura política de sujeição, visto que é marcada por práticas políticas autoritárias e que, em geral, tende a reagir às mudanças sociais, ao processo de difusão e exercício de uma cultura política baseada no ideal da democracia participativa. Nessas culturas, a atitude da população, inclusive de suas lideranças políticas e celebridades, é geralmente de passividade diante dos problemas sociais, por isso mesmo tornam-se crônicos, apresentando-se como saída à fuga da população de tais problemas pela via da emigração, do êxodo rural, o que tem sido notório no município. Estando os agentes sociais sempre à espera das decisões do Governo Federal, da burocracia estatal encarregada da face provedora de um Estado Providência, conforme dados do PDPQ.

Então, numa realidade dessas o horizonte de mudança esperado não estaria no seu protagonismo cidadão, na sua ação, avaliação e conhecimentos com relação ao input do conjunto do sistema político, tudo parece depender da sorte de ter um “bom” ou “mau” governante, um líder com poderes extraordinários e que encarne a “alma popular” e seja “benevolente” com o povo. Portanto, tem-se uma cultura política pautada em crenças, atitudes e sentidos voltados unilateralmente para os benefícios que poderão ser pleiteados pela fase provedora do Estado, particularmente possíveis de serem obtidos nas relações estabelecidas com os governantes.

Nessa cultura política as perspectivas da população são de satisfação de seus interesses imediatos e particulares. Ao contrário de uma cultura política de participação (SANI, 1995), há certa passividade e espírito de complacência diante dos problemas sociais e outros que atingem uma grande parte ou o conjunto da população.

Constata-se, conforme os dados contidos no PDPQ, que cerca de 95% das associações comunitárias estão atreladas a vereadores e cabos eleitorais, ou seja, onde se poderia encontrar um associativismo cívico e outras entidades pautadas na cooperação, na confiança, em relações menos hierárquicas e heterônomas, por sua vez, alicerçadas em uma cultura política de participação (SANI, 1995), e não baseadas num simulacro de associativismo.

Ao invés das associações comunitárias de Queimadas estarem em busca de interesses coletivos e de valores, normas e atitudes culturais, por sua vez expressos em estruturas sociais e padrões de comportamentos que configuram a comunidade cívica, como as estudada por Alexis Tocqueville nos Estados Unidos e por Robert D. Putnam na experiência da Itália Moderna (PUTNAM, 1996), estão, pautadas em interesses eleitoreiros e particularistas, portanto, favoráveis à reprodução do status quo.

Assim, ao invés das associações comunitárias estarem pautadas na cooperação e requerendo aptidão e confiança interpessoais, aptidões essas naturalmente reforçadas pela colaboração organizada (PUTNAM, 1996), se têm associações pautadas na subordinação dos agricultores familiares e dos moradores de bairros aos “caciques políticos locais” e sua política de troca de favores e fidelidades, razões mesmas da subserviência da maioria daqueles que se apropriam e usaram recursos e fundos públicos para reprodução do status quo, do atraso econômico, político e cultural do povo.

Sabe-se que nesse contexto as associações não contribuem, portanto, para democratização da sociedade, mas são instrumentos utilizados pelas elites locais para realizar o seu contrário. O que se vê é que prevalece à força do hábito, da tradição, dos valores culturalmente incorporados, inculcados, chamados por Pierre Bourdieu (1998) de habitus. Ou seja, o que se tem do ponto de vista da estrutura social são instituições que longe de se pautarem em relações horizontais e de reconhecimento do “outro”, se pautam em princípios hierárquicos e desiguais de relações.

Os agentes políticos locais, por exemplo, encararam e tem encarado o espaço público como se este lhes pertencesse. Portanto, será a partir da extensão do público concebido como privado que os agentes políticos desenvolverão suas práticas e políticas de “ajuda”.

Isto é decorrente, conforme os discursos dos entrevistados, desde o processo de emancipação política do município, ou seja, desde a sua fundação enquanto unidade política independente. E essas relações são as que foram moldando e, conseqüentemente, constituindo o fazer político local, até os dias atuais.