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CAPÍTULO III – TRADIÇÃO FAMILIAR E DOMINAÇÃO NA POLÍTICA

3.2. O fazer político de Carlos Ernesto

3.2.3. Troca de favores, jogos sociais e violência simbólica

instrumental, mas acima de tudo, uma relação moral, e por ser moral ela perpassa deste ato único relacionado meio-fim, está além de uma relação determinista, mesmo a pessoa dizendo que é a forma que pode pagar. Assim, enquanto “que o mercado se baseia na liquidação da dívida. A dádiva baseia-se, ao contrário, na dívida. Isso pode ser observado tanto nos laços primários como nas relações de parentesco, na doação a um desconhecido, na doação de órgãos.” (GODBOUT, 1997, p.07) (grifos nossos).

Essa dívida é construída a partir da dependência política a qual é traduzida na triste palavra

‘eu devo favor’, o que significa uma forma de gratidão, uma dívida cujo preço é a fidelidade sem limites, mas que pode resultar na possibilidade constante de humilhação pessoal e familiar, ou seja, o favor realizado, o benefício gerado, implica àqueles que recebem uma retribuição maior do que o que foi recebido. Noutras palavras, entra-se num jogo do tipo perde mais do que ganha, devido aos prejuízos causados pela perda da autonomia. (ADILSON FILHO, 2008, p.73)

3.2.3. Troca de favores, jogos sociais e violência simbólica

O médico era endeusado, Dr. Patrício Leal lá em Queimadas, Dr, Antonio Heráclio em Campina Grande, Dr. Eustáquio, na Malhada e Dr. Gilvan Barbosa, em Galante, o povo só ia pra eles, no caso quando Dr. Patrício chegava lá na Mumbuca tinha de cinqüenta a cem pessoas na porta da casa dele pra fazer consulta, e por conta disso, não tinha exame e não tinha nada, mas acertava nos remédios tudinho, até hoje nunca soube que uma pessoa morreu por causa de um erro médico de nenhum deles. Dos Ernestos, foi, foi Dr. Patrício que sustentou como médico, eles tinham muita liderança, por que era um povo que servia muito ao povo, mas o médico era quem segurava tudo, né? (Entrevista com José Cruz, em 06 de Agosto de 2008)

O depoimento acima descrito aponta para um caminho de interpretação da cultura política local e sua definição com base na legitimação de certas práticas e ações sociais. No depoimento, o entrevistado, José Cruz, proprietário do cartório do município de Fagundes, pessoa que viveu e conviveu com Major Veneziano Vital do Rêgo, destaca a figura do médico como sendo uma figura de sustentação de base política local, vale destacar que o Dr. Patrício Leal, a quem o entrevistado se refere, era concunhado de Carlos Ernesto, o qual atendia diariamente várias pessoas na fazenda Mumbuca, onde residia Carlos Ernesto. Destaca-se ainda, que a população de Queimadas,

principalmente na década de 60, era muito carente e Carlos Ernesto fazia da sua casa, na fazenda, um espaço para atender as pessoas, que por sua vez, compunham sua clientela, servidas a partir da prática do assistencialismo.

Além de ser um latifundiário, proprietário de terras nas quais possuía mais de uma barragem que, em épocas de seca, no verão, eram liberadas para a população mais carente para que pudessem utilizar as águas para suas necessidades diárias, também possuía uma quantidade enorme de afilhados, assim como, através da máquina pública e das influências políticas, conseguia, também, através de sua influência pessoal, empregar várias pessoas residentes no município junto aos organismos públicos, tudo isto como formas de construir laços sociais através da “prática de favores”. Outro entrevistado, que foi Candidato em 1982 à vice-prefeito, apoiado por Saulo Ernesto, filho de Carlos Ernesto, e que conviveu com este, destaca que,

O forte de Seu Carlos Ernesto era a palavra e a ação, ele tinha palavra e tinha ação. A casa dele, na época, em mil novecentos e sessenta e poucos, tinha tudo, era cinqüenta, cem pessoas todos os dias: aquela pessoa comia, aquela pessoa procurava um advogado, ele resolvia; procurava o juiz, e ele mesmo aconselhava a pessoa. Negócio de casamento, ele aconselhava a pessoa, a pessoa se casava. Se a pessoa se separasse, ele ia lá, dava um conselho à pessoa, a pessoa voltava a conviver normalmente. Foi um grande líder, Carlos Ernesto, um grande líder. Um homem de palavra, um homem de ação, um homem

muito sério. (Entrevista com Antônio Olímpio, em 17 de Abril de

2008)

Vê-se a partir disso que o “fazer favor” está na base da construção dessas práticas. O “fazer favor” está na base do “fazer político”, e este, por sua vez, é moeda corrente que se converterá em uma retribuição, o “fazer favor” – é um dar –, portanto, – está no plano da dádiva, destaca-se que toda dádiva já é em si mesma uma dívida – exige obrigatoriamente, um compromisso moral, uma retribuição, esta que não se realiza través de um cálculo racional, mas sim pelo simples fato de estar em jogo, de dar importância a um jogo social. Outro depoente e opositor historicamente ao grupo representado pelo filho de Carlos Ernesto, Saulo Ernesto, quando perguntado como ele via Carlos Ernesto, qual a representação deste para ele, a resposta foi a seguinte:

Carlos era um homem de ação, era um homem de ação. Ele não gostava de duas conversas. Se ele pudesse te ajudar, estava te ajudando; se ele não, não podia também te ajudar. Ele não tinha esse desencontro de informação. Se você dissesse “eu preciso”, ele estava ali. Então ele era um homem de “sim?”, “sim”; e eu creio que também no “não”, “não”, ele também sabia dar e com isso fez a diferença – e

ainda faz a diferença, hoje tem um nome forte por isso. Era um homem íntegro; era um homem que tinha, portanto, além da integridade, respeito ao ser que tinha menor condição material do que ele – e às vezes ele se colocava até no mesmo nível para resolver o problema dele. Por isso ele fez a diferença. (Entrevista com Maurício Xavier, em 18 de Abril de 2008)

A fala deste entrevistado, professor de matemática e atual vice-prefeito do município, opositor a Saulo Ernesto, reforça a fala do aliado de Carlos Ernesto, em termos de representação quanto ao fazer política local, ou seja, ambos os entrevistados reforçam e legitimam, por assim dizer, o discurso de que Carlos Ernesto era um homem de “ação”. Ação esta referente ao modo de “fazer ajudas”, de realizar “favores” para os mais humildes, não percebendo, assim, os interesses de dominação que estão por traz de todas essas formas de realizar ajudas. Aceitam a prática como formas virtuosas do agir de Carlos Ernesto, não as vêem e não as percebem como maneiras sutis de adestrar os corpos, de tornar os corpos dos agentes menos favorecidos e de seus subordinados, frágeis e disciplinados através das ajudas recebidas. Estes ficavam então, presos a um regime político de dominação e de dívidas quase “eternas”, as quais perpetuaram como dívidas para serem pagas, preferencialmente e principalmente, na forma de votos. Ou seja, as relações de favores, as ajudas, se criam num espaço social específico, com valores construídos historicamente por agentes que detêm os capitais simbólicos de notoriedades legitimados, logo as pessoas participam desses “jogos sociais” através da necessidade que os levam a sempre recorrer à liderança que pode “ajudar”.

Bourdieu (1996) utiliza a palavra illusio que vem da raiz da palavra latina ludus (jogo), e assim substitui a palavra interesse, visto que interesse é “estar em”, participar, admitir que o jogo merece ser jogado. Portanto,

os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a

illusio é essa relação encantada com um jogo que é produto de uma

relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social. Isso é o que quero dizer ao falar de interesse: vocês acham importantes, interessantes, os jogos que têm importância para vocês porque eles foram impostos e postos em suas mentes, em seus corpos, sob a forma daquilo que chamamos de o sentido do jogo. (...) assim pode-se estar interessado em um jogo (no sentido de não lhe ser indiferente) sem ter interesse nele. (BOURDIEU, 1996, p. 139)

Logo essas práticas de ajudas, através do atendimento médico gratuito, de serviços advocatícios gratuitos, de conselhos e desses favores em maneira geral, fazem parte de jogos sociais, que os agentes participam, embora o agente político saiba a intenção dessas suas práticas, onde ele quer chegar, mais isto faz parte de uma escolha particular dele, visto que possui toda uma sociedade que vive e sobrevive dessas relações de favores.

Então, no princípio dessa ação “generosa” de uma variedade de favores prestados e, conseqüentemente, de trocas de favores, ao contrário de existir uma intenção consciente de um indivíduo isolado, “o que existe é essa disposição do habitus que vem a ser a generosidade e que tende, sem intenção explícita e expressa, à conservação ou aumento do capital simbólico52: como o sentido da honra”. (BOURDIEU, 20001a, p. 236). Vejamos o depoimento de uma das entrevistadas:

Você sabe que Patrício Leal foi à pessoa de destaque na Saúde de Queimadas e ninguém nunca fez uma homenagem a ele, a primeira pessoa a fazer uma homenagem a ele aqui em Queimadas foi eu, com um desfile em que eu homenageie ele, aí eu disse: “Bau eu vou decidi uma coisa agora você não vai dizer, e nem falar no meu nome porque se você falar, ninguém vai querer porque eu sou contra, você vai a Patrícinho e pede a Patrícinho que quer colocar na Câmara um projeto pra que o nome do projeto seja o nome do pai dele, pra que Patrícinho tome conta disso tudinho e faça com você isso tudinho porque você não sabe como fazer aí você vai”, aí ele foi pra João Pessoa, chamou Patrícinho fizeram tudinho quando trouxeram de João Pessoa pra câmara por um deputado lá, tudo e aqui foi aprovado aí levaram pros deputado aí foi aprovado e o nome do hospital é o nome dele Patrício Leal, me disseram que era e eu acredito que seja, eu pedi a Bau e Bau fez, agora Bau não teve essa idéia e nem ninguém teve essa idéia, só que eu nunca quis dizer isso a ninguém porque era uma coisa que me interessava, sabe por quê? Porque ele quem salvou minha vida, porque eu estava desenganada, eu estava morrendo, e ele me salvou. (....) (Entrevista com Maria das Neves, em 14 de Abril de 2008)

Estes favores prestados pelos médicos, algo que ainda se faz cotidianamente no município, possui um significado muito grande para a pessoa que recebe o favor, gerando nesta um sentimento quase “eterno” de gratidão.

52 Fazendo uma leitura de Bourdieu, Jessé Souza destaca o capital simbólico como sendo um capital

negado e travestido. Em outras palavras esse capital é só “percebido como legítimo quando desconhecido enquanto capital”. Logo, continua Jessé, “Capital simbólico parece significar o capital, ou melhor, uma espécie de crédito social no sentido mais amplo, que logra transmutar-se e não revelar suas origens arbitrárias. Desse modo, capital simbólico pressupõe mascaramento e opacidade com relação às suas origens e funcionamento prático”. (SOUZA, 2003, p. 48)

Aqui o dom se exprime na linguagem da obrigação, “que se converte em reconhecimento incorporado, em inscrições nos corpos sob forma de paixão, amor, submissão, respeito, de uma dívida insolvente e, como se diz, freqüentemente eterna” (BOURDIEU, 2001a, p. 242)

É nesse sentido que Bourdieu (2001) nos chama a atenção para o efeito simbólico dessas relações, além disso, para o fundamento do poder simbólico, que é um poder que cria, se acumula e se perpetua pelo fato de haver uma troca simbólica, “em relações duráveis de poder simbólico pelas quais se é obrigado e com as quais a gente se sente obrigado; ela transfigura o capital econômico em capital simbólico, a dominação econômica em dependência pessoal até em devotamento, em piedade (filial) ou em amor”. (BOURDIEU, 2001a, p. 242)

Essas relações de favores, para tanto, se constituíram como algo muito forte na cultura política local, criando assim aquilo que denominamos de dependência pessoal, posto que este modo de fazer política reproduz “agentes históricos dotados, através de sua aprendizagem, de disposições duráveis que os tornam aptos e inclinados a participar de trocas, iguais ou desiguais, geradoras de relações duráveis de dependência (...)” (BOURDIEU, 2001a, p. 244) estas relações não são necessariamente fundadas a partir de um cálculo econômico racional, podendo, sim, sempre dever algo à dominação durável garantida pela violência simbólica.

Daí que, seguindo a trilha de Bourdieu (1996), os agentes sociais, orientam suas práticas, a partir do sentido do jogo, incorporando uma cadeia de esquemas práticos de percepção e de apreciação que funcionam como instrumentos de construção da realidade. E não a partir de um objetivo que calculadamente se pretende chegar através dos meios.

A relação de favores que vão constituindo o habitus político local, por exemplo, de dar remédios para pessoas enfermas, consultas médicas, feiras, trabalhos advocatícios, carro para transportar mudanças, entre outros, são favores que, devido à precariedade das famílias, não se tem como recompensar, além do mais, embora sejam realizados com recursos, na maioria das vezes, do governo municipal, através do líder político, passa como se fosse resultado da bondade de seu autor, como resultado de sua generosidade, inclusive financeira.

Isto imprime ao beneficiado uma dependência que o leva, na maioria das vezes, a comprometer-se com a liderança em questão; sendo assim, uma forma de retribuir a

“atenção recebida” é o voto ou naquele de quem se recebe a ajuda ou em quem ele indicar.

A lealdade política, lealdade do voto, é adquirida via compromisso: “ela não implica, necessariamente, ligações familiares ou vinculação a um partido; a lealdade política tem a ver com o compromisso pessoal, com favores devidos a uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias”. (PALMEIRA, 1996, p. 46).