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Se és curvo, louvas a Deus quando tudo te corre bem e blasfemas quando as coisas vão mal Se

SALMO 18 I COMENTÁRIO

II. SERMÃO AO POVO

3 Se és curvo, louvas a Deus quando tudo te corre bem e blasfemas quando as coisas vão mal Se

este mal é justo, não é mal. É justo, porém, porque vem daquele que nada pode fazer de injusto. Então serás um menino tolo na casa de teu Pai, amando-o se te acaricia, e odiando-o quando te castiga, como se não te preparasse uma herança, quer acariciando, quer castigando. Vê como aos retos convém o louvor, ouve a voz do homem reto a louvar, em outro salmo: “Bendirei ao Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2). “Em todo o tempo” equivale a: “sempre”. E “bendirei” é idêntico a: “seu louvor em minha boca”. Em todo o tempo e sempre, na prosperidade e na adversidade. Pois, se for na prosperidade e não na adversidade, como será em todo o tempo, como será sempre? E, no entanto, ouvimos muitas palavras destas e da parte de muitos. Quando lhes sucede algum evento feliz, exultam, alegram-se, cantam a Deus, louvam a Deus. Não são reprováveis; ao contrário, devemos nos alegrar por causa deles, porque muitos não o fazem nem assim. Mas estes já começaram a louvar a Deus por causa da prosperidade, hão de aprender a

reconhecer o Pai quando castiga, e não murmurar contra a mão que corrige, a fim de não permanecerem sempre maus e merecerem ser deserdados, e retificados (o que é reto? Que nada lhes desagrade do que Deus fizer) possam louvar a Deus mesmo na adversidade, dizendo: “O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi do agrado do Senhor assim se fez; seja bendito o nome do Senhor” (cf Jó 1,21). A estes retos convém o louvor, pois não estão inclinados a primeiro louvar e em seguida vituperar.

4 Consequentemente, justos e retos, exultai no Senhor, porque vos convém o louvor. Ninguém diga:

Que espécie de justo sou eu, ou quando sou justo? Não deveis vos menosprezar, nem desesperar de vós mesmos. Sois homens, feitos à imagem de Deus. Quem vos fez homens assim, por vós igualmente fez-se homem. O sangue do Filho único foi derramado por vós, a fim de que muitos de vós fôsseis adotados por filhos, em vista da herança eterna. Se vos menosprezais por causa da fragilidade terrena, avaliai-vos de acordo com o vosso preço. Pensai bem no que comeis, no que bebeis, em que assentis, ao responderdes: Amém. Acaso vos advertimos para vos tornardes soberbos, e ousardes arrogar-vos alguma perfeição? Mas, ao invés, não deveis vos julgar desprovidos de qualquer justiça. Não vos quero perguntar sobre vossa justiça. Talvez nenhum de vós ouse responder-me: Sou justo. Todavia, interrogo-vos acerca de vossa fé. Como nenhum ousa dizer: Sou justo, assim ninguém se atreve a afirmar: Não sou fiel. Ainda não pergunto como vives, mas pergunto o que crês. Hás de responder que acreditas em Cristo. Não ouviste a afirmação do Apóstolo: “O justo vive da fé” (Rm 1,17)? Tua fé é tua justiça. Se, de fato, acreditas, tens cautela. Se te acautelas, esforças-te. Deus conhece teu esforço inspeciona tua vontade, considera tua luta contra a carne, exorta a combateres, ajuda a venceres, assiste ao lutares, sustenta ao fraquejares, coroa ao seres vencedor. Portanto: “Justos, exultai no Senhor”. Diria: Exultai, ó fiéis, no Senhor, porque o justo vive na fé. “Aos retos convém louvá-lo”. Aprende a dar graças a Deus na prosperidade e nas tribulações. Aprendei a manter no coração o que todos têm na boca: O que Deus quiser. A linguagem popular muitas vezes é ensinamento salutar. Quem não fala todos os dias: Como Deus quiser? Este será um dos retos que exultam no Senhor, aos quais convém o louvor. A eles se dirige, portanto, o salmo, dizendo: “Celebrai o Senhor com a cítara, entoai-lhe hinos no saltério de dez cordas”. Foi o que cantamos há pouco, em uníssono ensinamo-lo a vossos corações.

5 2 A instituição destas vigílias em nome de Cristo não exige a exclusão das cítaras? Eis que o

salmista ordena soarem as cítaras: “Celebrai o Senhor com a cítara, entoai-lhe hinos no saltério de dez cordas”. Ninguém volte o coração para instrumentos musicais usados nos teatros. Ordena-se empregar o que já possuímos dentro de nós, conforme declara outro salmo: “Em mim, ó Deus, estão os votos de louvor, que cumprirei” (Sl 55,12). Lembram-se os que estavam aqui ontem qual a diferença entre saltério e cítara. À medida do possível, fizemos a distinção, esforçando-nos para que todos entendessem; sabem os que ouviram se o conseguimos. Agora, é oportuno repetir. Na diversidade dos dois instrumentos vimos representada a variedade dos atos humanos, praticados em nossa vida. A cítara consiste num pedaço de madeira côncavo, semelhante a um tímpano, com uma caixa de ressonância. As cordas se apoiam na madeira e soam quando tocadas. Não falo de um arco que as tocasse. Mas disse que a madeira é côncava, e sobre ela, como ponto de apoio, acham-se esticadas as cordas, de sorte que vibram quando tocadas. O som emitido ressoa melhor na cavidade. A cítara tem a concavidade de madeira na parte inferior, e o saltério na superior. Esta é a diferença. Então, o salmista nos ordena confessar com a cítara, e salmodiar com o saltério de dez cordas. Não fala em cítara de dez cordas, nem neste salmo, nem, se não me engano, em qualquer outra passagem. Leiam e considerem melhor e com mais vagar os leitores, nossos filhos; no entanto, enquanto me

lembro, em muitos trechos encontramos saltério de dez cordas; jamais cítara de dez cordas. Lembrai- vos de que a cítara tem a parte sonora em baixo e o saltério em cima. Na vida cá de baixo, isto é, na terrena, temos prosperidade e adversidade, e em ambas devemos louvar a Deus, a fim de que esteja sempre seu louvor em nossa boca, e bendigamos ao Senhor em todo o tempo (Sl 33,2). Existe prosperidade terrena e adversidade terrena; em ambas, Deus há de ser louvado, para tocarmos cítara. Qual é a prosperidade terrena? Consiste em gozarmos de saúde corporal, de abundarem os bens necessários à vida, em conservarmos a incolumidade, em termos abundância dos frutos da terra, em que Deus faça o seu sol nascer sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (Mt 5,45). Tudo isso é válido para a vida terrena. É ingrato quem não louvar a Deus por tudo isso. Acaso não pertencem a Deus, porque são bens terrenos? Ou será outro o doador, uma vez que são concedidos também aos maus? A misericórdia de Deus é múltipla, paciente, longânime. Manifesta melhor o que reserva aos bons, quando mostra quanto dá igualmente aos maus. Efetivamente, as adversidades derivam da parte inferior, da fragilidade do gênero humano, constando de dores, doenças, angústias, tribulações, tentações. Em toda a parte louve a Deus quem toca a cítara. Não dê atenção ao fato de serem coisas inferiores, e sim que não podem ser regidas e governadas senão por aquela Sabedoria que atinge de um extremo a outro com força, e dispõe de tudo com suavidade (Sb 8,1). A Sabedoria não governa só as coisas celestes e abandona as terrenas. Não se lhe diz: “Para onde me afastarei de teu espírito, e aonde fugirei de tua face? Se subir ao céu lá estás; se descer ao inferno, ali estás presente” (Sl 138,7.8)? Onde não se encontra quem está em toda parte? “Celebrai, pois, o Senhor com a cítara”. Se tens abundância de algum bem terreno dá graças ao doador! Se te falta, ou se sofres algum dano, toca a cítara com segurança. Não se retira o doador, embora te seja tirado o dom. Mesmo assim, diria, toca a cítara com firmeza; seguro a respeito de teu Deus, tange as cordas do coração e diz, como uma cítara a soar bem, da parte inferior: “O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi de seu agrado assim se fez; seja bendito o nome do Senhor” (Jó 1,21).

6 Ao considerares, porém os dons superiores de Deus, a saber, que preceitos te deu, que doutrina

celeste te ensinou, o que te ordenou do alto, daquela fonte da verdade, toma o saltério, salmodia ao Senhor no saltério de dez cordas. Pois, os preceitos da Lei são dez. Nos dez preceitos da Lei tens o saltério. É coisa perfeita. Ali tens o amor de Deus em três mandamentos e o do próximo em sete. Em verdade, sabes, pois o Senhor o disse, que “desses dois preceitos dependem a Lei e os profetas” (Mt 22,40). Deus te fala do alto: “O Senhor teu Deus é um só”. Eis a primeira corda. “Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus”. Aqui tens a segunda corda. Observa o dia do sábado, não carnalmente, nem com prazeres judaicos. Eles abusam do ócio para cometer a maldade. Melhor seria, de fato, cavar a terra o dia todo do que dançar o dia inteiro. Tu, porém, pensando no repouso diante de teu Deus, e fazendo tudo por causa deste repouso, abstêm-te de toda obra servil. Todo aquele que comete pecado é réu de pecado (Jo 8,34); antes fosse escravo de um homem e não do pecado! Estas três coisas pertencem ao amor de Deus, a saber, unidade, verdade, deleite. Há uma espécie de deleite no Senhor, o do verdadeiro sábado, do verdadeiro repouso. Daí a palavra: “Deleita-te no Senhor e ele te dará o que pedir teu coração” (Sl 36,4). Quem é que assim se deleita, senão aquele que fez tudo o que deleita? Nesses três mandamentos se trata do amor de Deus, em sete outros, do amor do próximo. Não faças a outrem o que não queres que te façam. “Honra teu pai e tua mãe”, porque queres ser honrado por teus filhos. “Não cometas adultério”, porque não queres que em tua ausência tua mulher cometa adultério. “Não mates”, porque também não queres ser morto. “Não furtes”, porque não queres ser roubado. “Não levante falso testemunho”, porque abominas aquele que levante falso testemunho contra ti. “Não desejes a mulher do próximo”, porque também não queres que outro deseje a tua. “Não cobices as coisas alheias” (Ex 20,12-17; Dt 5,6-21), porque desagrada-

te que alguém cobice o que é teu. Reprime a tua língua, se te desgosta quem te prejudica. Tudo isto é mandamentos de Deus, dados pela Sabedoria. E soaram do alto. Toca o saltério, cumpre a Lei que o Senhor teu Deus não veio abolir, mas cumprir (Mt 5,17). Farás por amor o que não podias cumprir por temor. Quem não faz o mal por temor, preferia praticá-lo se fosse lícito, pois então se não lhe é dado o poder, continua a querer. Não faço, diz alguém. Por quê? Porque tenho medo. Ainda não amas a justiça, ainda és escravo; torna-te filho. Mas, de um bom escravo torne-se um bom filho. Por enquanto, não faças por temor, aprende a não fazer por amor. A justiça possui certa beleza. O castigo te leve a desistir. A justiça tem bela forma, quer ser vista, inflama o amor. Por causa dela os mártires, desprezando o mundo, derramaram seu sangue. O que amavam, quando renunciavam a estes bens todos? Por acaso não amavam? Ou vos dizemos isto para não amardes? Quem não ama, esfria- se, enrijece. Ame-se, mas aquela beleza que reclama os olhos do coração. Ame-se, todavia aquela beleza que, ao ser louvada a justiça, inflama os ânimos. Pronunciam-se algumas palavras, emitem-se sons, de toda a parte se diz: Bom! Ótimo! O que viram eles? Viram a justiça, que embeleza o velho curvado. Se está andando um ancião, apesar de justo, nada existe em seu corpo que atraia o amor, e no entanto é amado por todos. Ama-se o que não é visível; ou antes, ama-se o que vê o coração. Agrade-vos, portanto, e pedi ao Senhor que vos agrade. “O Senhor, pois, dará a suavidade, e nossa terra produzirá seu fruto” (Sl 84,13), de sorte que cumprireis por caridade o que é difícil cumprir por temor. Por que afirmo que é difícil? Para o espírito ainda não é possível. Se não é levado pelo amor a cumprir o preceito, mas é impelido pelo temor, preferiria que a ordem não existisse. Não furtes, teme a geena. Preferirias que não existisse a geena, onde serias metido. Quando começa alguém a amar a justiça, a não ser quando prefere que não haja furto, mesmo que não houvesse inferno, onde os ladrões fossem lançados? Isto se chama amar a justiça.

7 E como é a justiça? Quem a pintou? Que beleza tem a sabedoria de Deus? Ela faz belas todas as

coisas que agradam aos olhos. Para vê-la e atingi-la, os corações têm de ser purificados. Professemo-nos amantes dela. Ela nos orna para não lhe desagradarmos. E quando os homens nos censuram acerca daquilo que é aprazível àquele que amamos, como os temos na conta de nada, desprezamos, não fazemos caso deles! Os lúbricos e condenáveis amantes de mulheres, quando suas amadas os ornam conforme agrada a seus olhos, não fazem conta dos que os aborrecem, achando que lhes basta agradar aos olhos das que amam. E muitas vezes desagradam aos homens honestos, ou antes, sempre lhes desagradam e eles são repreendidos pelos de juízo sadio. Teu cabelo não está bem cortado, diz o homem sensato ao adolescente lascivo. Não ficam bem tais adornos. O jovem sabe que aqueles cabelos agradam a não sei a quem; fica aborrecido com quem o repreende com boas razões, e conserva o que agrada a perversas intenções. Considera-te inimigo, porque proíbes a torpeza. Foge de teus olhos, e não considera absolutamente a regra de justiça que o censura. Se, pois, eles não dão importância aos censores verdadeiros, para terem uma beleza falaz, nós naqueles pontos em que agradamos à sabedoria de Deus, devemos dar atenção aos zombadores injustos, que não têm olhos para ver o que amamos? Com tais pensamentos, os retos de coração confessem ao “Senhor com a cítara, entoem-lhe hinos no saltério de dez cordas”.

8 3 “Cantai-lhe um cântico novo”. Despi tudo o que é velho. Conheceis o cântico novo. Homem novo,

Novo Testamento, cântico novo. O cântico novo não pertence a homens velhos. Só o aprendem os homens novos, renovados pela graça, de sua velhice, e já pertencentes ao Novo Testamento, que é o reino dos céus. Por ele suspira todo o nosso amor e canta um cântico novo. Cante o cântico novo, não com a língua, mas com a vida. “Cantai-lhe um cântico novo. Cantai-lhe bem”. Cada qual pergunte a si mesmo como há de cantar a Deus. Cantai-lhe, mas bem. Ele não quer ter os ouvidos a doer. Canta

bem, irmão. Se alguém te disser, na presença de um bom músico: Canta de maneira que ele aprecie. Se não és instruído na arte musical tremes, de medo de desagradar ao artista. O artista critica em ti o que um inexperto não percebe. Quem há de se oferecer para cantar bem diante de Deus, que ouve, julga o cantor, tudo examina? Quando poderás apresentar-te com tanta arte e finura no canto que em nada firas ouvidos tão perfeitos? Mas, eis que ele te dá um estilo para cantar. Não procures palavras, como se pudesse explicar em que Deus se compraz. Canta “com júbilo”. Cantar bem a Deus é cantar com júbilo. O que quer dizer: cantar com júbilo? Entender, não poder explicar com palavras o que se canta no coração. Pois, aqueles que cantam na colheita, na vinha, em algum trabalho pesado, começando a exultar de alegria por meio das palavras dos cânticos e estando repletos de tanta alegria que não podem exprimi-la, deixam as sílabas das palavras e emitem sons jubilosos. O júbilo é som significativo de que o coração está concebendo o indizível. E diante de quem é conveniente tal júbilo senão diante do Deus inefável? Inefável é aquilo de que é impossível falar. E se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar? O coração rejubila sem palavras e a imensidão do gaúdio não se limita a sílabas. “Cantai-lhe bem com júbilo”.

9 4 “Pois é reta a palavra do Senhor, e há fé em todas as suas obras”. Reta é a palavra mesmo naquilo

que desagrada aos que não são retos. “E há fé em todas as suas obras”. Em tuas obras haja fé, porque o justo vive da fé (Rm 1,17), e a fé opera pela caridade (Gl 5,6). Em tuas obras haja fé, porque acreditando em Deus tornas-te fiel. Como pode haver fé nas obras de Deus, como se Deus vivesse da fé? Vemos que também Deus é fiel, e não são nosas palavras que o dizem. Ouve as do Apóstolo: “Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar”. Ouvistes. Deus é fiel. Ouvi também outra passagem: “Se com ele sofremos, com ele reinaremos. Se nós o renegamos, também ele nos renegará. Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo” (2Tm 2,11.13). Aí está. Deus é fiel. Mas distingamos entre Deus fiel e homem fiel. O homem fiel é o que acredita em Deus que promete; Deus é fiel oferecendo ao homem o que prometeu. Retenhamos a garantia de um devedor fidelíssimo, porque temos quem nos prometa, cheio de misericórdia. Não lhe demos de empréstimo coisa alguma, de sorte a tê-lo por devedor. É dele que recebemos tudo o que lhe ofertamos, e dele provém todo o bem que há em nós. Todos os bens de que fruímos vêm dele. “Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e para ele” (Rm 11,34- 36). Nada lhe demos, portanto; e o temos por devedor. Como é devedor? Porque prometeu. Não lhe dizemos: Senhor Deus, devolve o que recebeste, mas: Paga o que prometeste. “Pois é reta a palavra do Senhor”. Qual o significado de: “É reta a palavra do Senhor?” Não te engana. Tu também não o enganes; ou antes, não te anganes a ti mesmo. Quem pode enganar o onisciente? Mas, “a iniquidade mentiu a si mesma” (Sl 26,12). “Pois é reta a palavra do Senhor, e há fé em todas as suas obras”.

10 5 “Ele ama a misericórdia e o juízo”. Faze isto, porque ele também o fez. Dê atenção à

misericórdia e ao juízo. Agora é tempo da misericórdia; o do juízo virá depois. Por que é tempo da misericórdia? Agora chama os refractários, perdoa os pecados aos convertidos, é paciente para com os pecadores até que se convertam. Seja quando for que se convertam, esquece-se do passado, promete as coisas futuras. Exorta os preguiçosos, consola os aflitos, ensina aos esforçados, ajuda os combatentes. Não abandona o lutador que clama por ele. Fornece o necessário para o sacrifício e ele mesmo doa o que o pode aplacar. Não nos escape, irmãos, não passe em vão o tempo favorável da misericórdia. O juízo virá. Haverá então remorso, mas já inútil. “Dirão entre si, arrependidos, com gemidos de angústia”; assim está escrito claramente no livro da Sabedoria: “Que proveito nos trouxe

o orgulho? De que nos serviu riqueza e arrogância? Tudo isso passou como uma sombra” (Sb 5,3.8.9). Repitamos agora: tudo isso passa como sombra. Digamos, com aproveitamento: Passam, para não termos de dizer inutilmente: “Passaram”. Agora, pois, é tempo de misericórdia; então será o do juízo.

11 Não deveis pensar, irmãos, que estas duas coisas possam em Deus se separar de algum modo. Às

vezes, parecem contrárias entre si. Quem é misericordioso, não mantém o julgamento, e quem é tenaz a respeito do juízo, esquece-se da misericórdia. Deus é onipotente, e não omite o juízo quando exerce a misericórdia, nem perde a misericórdia durante o juízo. Pois, ele se compadece, considera a sua imagem, a nossa fragilidade, o nosso erro, a nossa cegueira e nos chama. Aos que se convertem a ele perdoa os pecados, mas não perdoa aos que não se arrependem. Ele é misericordioso para com os injustos? Acaso desiste do juízo, ou não deve julgar diversamente convertidos e não convertidos? Parece-vos justo que trate igualmente o convertido e o não convertido? Que seja recebido de modo idêntico o que confessa e o que mente, o humilde e o soberbo? Mantém Deus, portanto, o juízo e a misericórdia. Terá, contudo, também misericórdia no último juízo para com aqueles aos quais há de dizer: “Tive fome, e me destes de comer” (Mt 25,35). Por esta razão diz-se na epístola de um apóstolo: “O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia” (Tg 2,13). E: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Portanto, no juízo final haverá também misericórdia, mas não sem um critério. Se haverá misericórdia, não para qualquer um, mas para aquele que exerceu a misericórdia, esta será justa, porque não indistinta. É certamente misericórdia o perdão dos pecados, é misericórdia a concessão da vida eterna. Vê o juízo: “Perdoai e vos será perdoado; dai e vos será dado” (Lc 6,37-38). Certamente, “vos será dado, e vos será perdoado” são efeitos da misericórdia. Mas, se dali estivesse ausente o juízo, não se teria dito: “Com a medida com que medis sereis medidos” (Mt 7,2).