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8. RESULTADOS

8.2. Análise dos grandes temas na fratria Maia

8.3.3. Débora

O início do discurso da Débora (ANEXO F) é algo confuso, marcado por um débito acelerado em que fala alternadamente de ambos os irmãos destacando qualidades positivas e negativas da relação: “ (…) a minha relação com a minha irmã é um bocadinho melhor que com o meu irmão (…) há uns anos atrás era [a Eunice] assim um bocado mais hipócrita; gosto muito dele, é meu irmão (…) é rapaz, as coisas são um bocado mais complicadas (…) já nos damos melhor (…) costuma muito haver aquela coisa do «foste tu que começaste!»; também tivemos bons momentos.”

Depois deste início oscilante, a Débora parece encontrar (an)coragem para prosseguir a sua narrativa nas memórias de bons momentos que teve com o irmão e segue explorando uma particularidade dessa relação: “ (…) eu gostava mais de estudar Matemática com o meu irmão do que com o meu pai (…) ele [o irmão] não me tratava como se eu fosse uma criança.”. Esse aspecto é valorizado pela Débora, o que se nota pelo contraponto que constitui à forma como o pai parece fazê-la sentir, de uma forma que põe em evidência a sua incapacidade ligada à imaturidade. À mesma imaturidade que o pai a faz sentir, a Débora associa “histórias de roubar o sofá”.

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Assim, em seguida fala-nos de um lugar de onde é retirada para ser recolocada num lugar que não é o dela. Vejamos a sequência: “O meu irmão começa por me deixar ver o que eu quero. Depois senta-se no sofá e vai-me empurrando para fora do sofá e depois eu tenho de me ir embora. A minha irmã não, a minha irmã diz «Eish, eu „tou em Lisboa todos os dias, deixa-me lá ver… em Lisboa não tenho os canais que eu quero, aqui já tenho (…) ”. É depois de nos contar que a retiram do lugar onde ela tinha chegado primeiro para a colocar noutro que não lhe pertence. Logo em seguida, após uma curta hesitação, afirma: “ (…) a minha família gosta bastante de me comparar com a Eunice (…) o meu pai (…) quer que nós sejamos com ela (…) estudemos como ela, façamos tudo como ela faz.”. Um lugar à sombra da irmã onde quase em permanência enfrenta solicitações que a compelem a ser desse jeito. Mas se isso acontece e se a Débora está destinada por esta figura paterna a ser como a irmã e a fazer tudo como ela faz, está igualmente destinada a falhar nessa missão e a ser tratada como se fosse uma criança.

No momento seguinte conta que, quando era criança, os amigos do irmão “gozavam” com ela no ténis e que “havia imensas confusões… é sempre difícil”. Porém depois fala de como se dava bem com o irmão quando jogavam PlayStation juntos, o que dá conta de um duplo registo em relação ao irmão: por um lado têm cumplicidade, mas pelo outro ele “goza” com ela. Quanto à irmã, a Débora reconhece que ela é o modelo a seguir criado pelo pai e que essa força paterna origina entre elas uma interacção competitiva: “Quando andávamos as duas no piano havia assim um bocado de competição (…) ”. As sugestões que a Débora faz parecem ser mal recebidas pela Eunice, que poderá sentir o seu lugar ameaçado, o que se subentende quando a Débora diz: “ (…) ela não percebe, se calhar no sentido de «ai, eu sou mais velha do que ela, ela não sabe ainda», deve ser por aí, é sempre assim.”. Em seguida, num tom de protesto, afirma que as expressões do feminino são condenadas em si, por oposição à irmã, que “não faz nada”. Em contrapartida, a Débora é sempre responsável por ter deixado “cabelos no ralo” e “pensos mal enrolados”. A Débora vai protestar longamente a respeito de as “culpas” serem sempre colocadas nela enquanto os irmãos estão “sempre certos” e também de quererem submetê-la à lógica deles, o que ela reconhece, porém recusa: “Mas às vezes parece que às vezes querem mudar-me e não, eu gosto de ser como sou, eles têm é de lidar com isso (…) nunca tiveram esse tipo de atitude de aprender a lidar com a pessoa que eu sou.”. Neste momento a Débora fala-nos de como sente que não pertence ao grupo fraterno. Durante longos minutos vai explicar porquê: porque os irmãos passam muito tempo a expressar a sua inveja e a forma como as relações externas são ameaçadoras, “para te

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sacar qualquer coisa (…) acham que as pessoas têm segundas intenções, nunca são boas por si mesmas”. A Débora tenta recorrer a uma outra lógica que é ameaçadora para os irmãos, tão enredados na referência paterna.

De facto a Débora retira-se desse lugar: “ (…) deixem-me viver como eu sou (…) a minha família é uma família de engenheiros e é horrível (…) o meu irmão „tá a tirar Engenharia, a minha irmã „tá a tirar Engenharia, os meus pais tiraram Engenharia, para que é que eu me quero relacionar com uma coisa assim?”. Nesta intervenção a Débora, que era retirada “do sofá” e da fratria, retira-se e desidentifica-se do grupo familiar subordinado às lógicas paternas e em seguida denuncia os irmãos, que se mantém nesse lugar: “ (…) se calhar se ele [o Elias] estivesse a fazer uma coisa que ele quisesse e não que o meu pai tivesse (…) posto na cabeça dele, ele se calhar „tava mais feliz (…) ”; “ (…) a Eunice já me tinha dito isto «Eu agora vou fazer aquilo que eu quero, não vou fazer aquilo que o pai me põe na minha cabeça.».”. Assim se vê bem que a Débora apreende os irmãos nesse lugar de cumprimento de desejos paternos e denuncia que os irmãos aceitem esse lugar. Ela própria não o terá aceitado. Em seguida fala sobre a falta de referências internas e sobre os ataques narcísicos infligidos pela figura do pai quando ela tenta expressar-se e essa expressão não coincide como os seus desejos.

Conta como foi o processo de candidatura e prestação de provas de aptidão na universidade e logo em seguida refere: “O meu pai agora veio dizer-me a mim que eu não sou muito boa porque fiz para quatro universidades, só entrei numa e foi à rasca. É um bocado brusco nessas coisas e se calhar é por isso que eu também não gosto que as pessoas gritem comigo (…) já não ligo a coisa que se calhar me vão perturbar, se calhar eu já me sinto um bocadinho melhor com eles.”. Nesta intervenção vê-se que a Débora em certas alturas se pode sentir ameaçada pela falta de referências que da negação da referência paterna advém. Dessa maneira, tenta restaurar os laços anulando-se. Porém, volta em seguida a criticar a postura dos irmãos, como se o reconhecimento de que também ela por vezes se coloca nesse lugar fosse responsável pela reemergência do conflito: “ [a Eunice] está a começar a fazer coisas que gosta.”; “O meu irmão não sabe dizer: «Não, eu não quero tocar piano, não quero fazer isto, não quero fazer aquilo, vai mas é dar uma voltinha, não quero fazer isto.».”. Ela própria, que conseguiria fazer isso, tenta levar o irmão a revoltar-se contra o pai e a constituir a sua própria identidade, porém essa investida produz no irmão o efeito contrário: “ (…) ainda assim virou- se contra mim e disse: «Ah, porque é que achas que eu não quero aprender guitarra?» (…). Não queria vê-lo passar por aquilo outra vez (…).”.

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Em seguida regressa aos ataques narcísicos do pai em relação a si: “ (…) o meu pai uma vez tinha aqui visitas e vira-se para mim: «Ó Débora, vai lá tocar pianinho, que é bonito.» e houve uma vez que eu disse assim: «Pai, eu não „tou com reportório sabido, é início do ano e eu não tenho peças para mostras às pessoas (…) correu mal, obviamente (…) e então depois acabei aquilo e ele disse: «Ah, „tás fraca hoje.». Ele disse-me aquilo (…) cada vez que eu faço uma coisa que é ele que me „tá a pedir ou é ele que me „tá a obrigar ou é ele que „tá a pôr em cima de mim, nunca corre bem.”.

É como se este tipo de representações lhe relembrasse constantemente de que o pai não pode ser a sua referência. Em seguida, fala longamente sobre referências outras que foi encontrar fora do espaço familiar: professores de piano com quem fez Masterclasses, o professor de piano do Conservatório, o explicador de Matemática. Além disso, fala também da forma como o pai critica esse movimento e qual a sua resposta: “ (…) podia ter-lhe dito: «Olha lá, porque é que o Elias foi para o Instituto X? Não foi porque tu lhe deste a tua opinião (…)? Eu „tou a pedir opinião, não é a tua, é essa a diferença!».”. De seguida fala sobre a sobrecarga que o pai coloca sobre si em comparação com a irmã: “«Ai, tens de ir para a natação, tens de fazer isso, tens de encontrar uma casa, mais não sei o quê, tens de ir para um curso de línguas, que a tua irmã também fez isto e aquilo.» (…) Eu não tenho de fazer aquilo que os meus irmãos fazem e aquilo que ele quer que eu faça.”.

Na sequência de muito falar sobre o seu lugar efusivamente contestatário da lógica paterna e dos tumultos entre a apresentação constante por parte do pai de um lugar que é sempre rejeitado por ela, a Eunice revela-nos onde se encontra a sua inscrição genealógica na linhagem paterna: “ (…) eu queria tocar violino, mas tu não me deixaste, quiseste que eu fosse para piano, então eu fui para piano…”. Assim se vê que em certa parte a referência paterna está também presente.

Posteriormente cita o pai que despoja as suas outras figuras de referência: “ «(…) os professores do Conservatório não sabem o que dizem.».” e logo em seguida, por associação, fala de como a irmã se inclui bem na linhagem paterna: “O meu pai já me disse que a minha irmã estuda muito mais do que eu e como é que eu não me sinto mal se uma pessoa que não „tá em música estuda mais do que eu.”, ao contrário de si própria que aos olhos do pai fracassa com frequência: “No teste tirei treze (…). Eu estudava mas aquilo não dá.”.

Em resumo, a narrativa da Débora transparece a ocupação de um lugar estrangeiro face aos irmãos e porventura mesmo face à família. Estabelece uma diferença entre os irmãos que, inscritos fortemente na linhagem paterna, operam numa rejeição de influências exteriores

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e também numa rejeição de si própria, que escolhe não se submeter às mesmas referências. Desta maneira, a relação entre a Débora, os irmãos e o pai revela-se bastante tumultuosa e dificulta o estabelecimento e o assegurar de referências internas.