• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO IV –Perto do coração selvagem da tradução ou A tradução segundo C.L

2. Década de 1960

(...) traduzir pode correr o risco de não parar nunca: quanto mais você revê, mais se tem que mexer e remexer nos diálogos (LISPECTOR, 2005, p. 115).

Como se nota a partir dos apontamentos da crítica na seção anterior, a década de 1960 marca a fase de consagração da escritora. No início deste período, Clarice Lispector colabora com matérias no Correio da manhã assinadas com o pseudônimo de Helen Palmer, escreve as páginas femininas da coluna “Só para mulheres” no Diário da Noite, tornando-se ghost writer de Ilka Soares37, e publica vários de seus contos na revista Senhor, os quais serão, por sua vez, republicados em 1960, no volume Laços de família, lançado pela livraria Francisco Alves, com capa de Cyro Del Nero e apresentação de Paulo Rónai, que afirma ser recorrente nos textos em questão “o instante decisivo em que uma pessoa muda de atitude em relação a toda a existência” (RÓNAI, apud GOTLIB, 1996, p. 171).

A coletânea de 1960 não traria muitas novidades, pois Lispector republicaria nela todos os contos já presentes em Alguns contos (1952), somados a mais sete, sendo que quatro deles já tinham sido publicados na Senhor. Porém, essa coletânea exerceria um papel importante no projeto da escritora, pois consolidaria de vez as suas marcas enquanto contista, fazendo com que a crítica notasse alguns aspectos comuns às curtas narrativas, entre eles “a tensão conflitiva” (NUNES, 1995, p. 84), “a epifania” (SANT’ANNA, apud SÁ, 1979, p. 130), “o instante existencial” (MOISÉS, apud SÁ, 1979, p. 130), para citarmos apenas alguns.

Laços de família teve oito edições enquanto a autora era viva, chegando até a ser reeditado

pela renomada José Olympio em 1976 e 1977 (Cf. MENDES, 1998f, p. 6). Clarice também lançaria pela Francisco Alves, em 1961, o tão emblemático romance mencionado anteriormente, A maça no escuro, contando com o apadrinhamento do compositor Tom Jobim, por ocasião do II Festival do Escritor Brasileiro, no qual também marcaram presença vários escritores, entre eles Lygia Fagundes Teles e Carolina Maria de Jesus.

Apesar de um início de década movimentado para a escritora, parecia que o seu rendimento proveniente de todas essas relações editoriais era insuficiente para complementar a pensão recebida de Maury, agora seu ex-marido. Diante disso, além de publicar seus livros e colaborar em jornais e revistas, a escritora retoma com mais intensidade o seu ofício de tradutora iniciado em 1941, e traduz 11 títulos a partir do inglês e do espanhol durante os anos

37

117

de 1960, mas apenas cinco deles são publicados, pois as outras versões, quando terminadas, serviram para a encenação no teatro.

As organizadoras de Outros escritos (2005), Teresa Montero e Lícia Manzo, afirmam, no capítulo 8 do volume, “Clarice tradutora”, que “o início da atividade de Clarice Lispector como tradutora coincide com o término de seu casamento e sua volta para o Brasil (...)” (MONTERO; MANZO, 2005, p. 113), no fim da década de 1950 e início dos anos 60. Porém, constata-se informações diferentes, visto que a primeira tradução assinada por Clarice é de 1941, como se observa no levantamento por nós realizado (Cf. Tabela 1 e anexo desta tese). Na verdade, o que temos neste período é um retorno mais pontual da escritora aos exercícios de tradução, em virtude do complemento de seus rendimentos financeiros, agora que se encontrava sem o esposo e com os filhos no Brasil.

Segundo o Inventário do arquivo Clarice Lispector, da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), organizado por Eliane Vasconcellos em 1993, constam nos arquivos pessoais da escritora as seguintes versões: Sotoba Komachi (1956), de Yukio Mishima; The member of

the Wedding (1946), de Carson McCullers; Hedda Gabler (1890), de Henrik Ibsen; e A casa de Bernarda Alba (1936), de Frederico Garcia Lorca (Cf. VASCONCELLOS, 1993, p. 74).

Sendo as duas últimas em co-autoria de tradução com Tati de Moraes. Se observarmos a nota jornalística de Paulo Francis publicada no Diário Carioca em dezembro de 1961, como bem atesta André Luis Gomes (2007), a peça de McCullers teria sido traduzida pela intelectual durante o ano de 1961.

Conforme Gomes, a versão de The member of the Wedding trata-se de uma tradução em processo, pois no datiloscrito existe a presença de interferências no texto em português, a exemplo de anotações manuscritas para uma possível alteração, como se pode notar na página fotocopiada e reproduzida pelo estudioso em seu livro Clarice em cena: as relações de Clarice Lispector e o teatro (2007), ao fim da seção “Nos bastidores”, no catálogo de imagens38. O crítico afirma que

38

Não reproduzimos no anexo a versão em processo, nem a citaremos diretamente aqui, porque, quando procuramos agendar uma visita na Fundação Casa de Rui Barbosa, fomos informados pelo setor responsável que não seria permitido qualquer tipo de reprodução do material consultado, a não ser sob a autorização dos herdeiros da escritora, como se lê em e-mail redigido por Claudio Vitena, da Sala de Consulta FCRB, em 25 de maio de 2015:

“Olá, Rony

Confirmo o agendamento da sua visita para a data solicitada (22.05), às 11h.

A FCRB não fornece cópias dos documentos dos acervos. Caso seja necessário, o próprio interessado deverá fazer fotografias digitais do material. No entanto, para isso, é necessário (sic) autorização expressa (por escrito) dos herdeiros do autor.

Claudio Vitena

(...) logo abaixo do título em inglês datilografado, ‘The member of the wedding’, há uma possível tradução para o título: ‘A sócia do casamento’, acompanhada de um ponto de interrogração, o que nos leva a crer que a tradutora ainda não havia se decidido (GOMES, 2007, p. 94).

Por meio dessas inferências, chegamos a duas informações pontuais: Lispector teria traduzido a peça a partir do inglês e o possível título de sua versão seria “A sócia do casamento”.

São também de 1961 as traduções que Clarice fez de três peças japonesas: O crime de

Han (1913), de Shiga Naoya, O tambor de damasco (1956) e Sotoba Komashi (1956), ambas

de Yukio Mishima. Tanto no site da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) quanto no Inventário da FCRB e no livro de Gomes, encontra-se registrada apenas a tradução de

Sotoba Komashi. Na verdade, Lispector traduziu as três peças devido a uma encomenda feita

por Eros Martim Gonçalves, fundador da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, que teria assistido, na Off-Broadway, enquanto esteve em Nova York, ao espetáculo Três

Peças Modernas Japonesas, dirigido por Herbert Machiz.

Jussilene Santana (2011), em sua tese de doutorado Martim Gonçalves: uma escola de teatro contra a província39, relata que Gonçalves possivelmente teria passado pelo Rio de Janeiro, por ocasião de seu retorno ao Brasil, no fim do mês de abril de 1961, e solicitado as traduções à escritora, pois as peças seriam montadas, em julho do mesmo ano, no III Seminário Internacional de Teatro, na Bahia. Nas palavras de Santana,

os especialistas da obra de Clarice Lispector parecem desconhecer as suas traduções (...) [de] O Tambor de Damasco e O Crime de Han realizadas a pedido de Martim Gonçalves, cujas cópias existem no banco de textos da Escola de Teatro da Bahia (...) (SANTANA, 2011, p. 364).

Ao traçar o papel de Gonçalves na Escola de Teatro, a pesquisadora discorre sobre a sindicância que o afastou da direção da Escola e volta a mencionar, por meio de um fragmento retirado da coluna Balanço, do jornal A Tarde, de 21 de agosto de 1961, que o teatrólogo teria realmente preferido pagar pelas traduções das peças a pessoas externas, entre elas Bárbara Eliodora e Clarice Lispector, do que a integrantes da Escola (Cf. SANTANA,

Como parte da tradução está reproduzida e detalhadamente comentada no referencial livro de André Luis Gomes, faremos as menções às traduções das peças de teatro por meio deste livro. Sem contar que o primeiro critério para a delimitação do corpus, “tradução publicada” (Cf. a Tabela I do capítulo anterior), desincumbiu- nos, no decorrer da pesquisa, de uma pretensa necessidade de acesso às versões para uma possível análise.

39

A tese foi desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Em 2013, foi premiada pela Capes como a melhor Tese da área de Artes/Música defendida em 2011. Cf. http://www.capes.gov.br/premiocapesdetese/edicoes-anteriores/6590-teses-premiadas-em-2013. Acesso em 10.10.2016.

119

2011, p. 467, 521). Aí se justifica a inserção das traduções de mais duas peças do teatro moderno japonês em nosso levantamento, por mais que não seja de conhecimento dos especialistas de Clarice. Como a escritora possivelmente não lia em japonês, a premissa mais aceitável é a de que Lispector teria feito uma tradução de segunda mão, tomando como ponto de partida as versões em língua inglesa realizadas por Donald Keene e Ivan Morris (Cf. SANTANA, 2011, p. 367). Essa premissa pode ser corroborada, quando observamos um cartaz de divulgação da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, Jardim Botânico (Rio de Janeiro), feito em virtude de uma leitura dramática da peça O tambor de damasco, de Yukio Mishima, realizada, no ano de 2012, na condição de trabalho resultante da oficina “Ludus Ludi – cenografia, design e teatro de brinquedo”, dirigida pelo cenógrafo e diretor teatral Hélio Eichbauer. Em tal cartaz, abaixo reproduzido, encontram-se registrados os nomes de Donald Keene e Clarice Lispector como os respectivos tradutores de O tambor de

damasco para o inglês e o português:

Imagem 03 – Cartaz de divulgação da Leitura Dramática de O tambor de damasco, de Yukio Mishima, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no ano de 2012.40

40

A Escola de Artes Visuais do Parque Lage foi fundada em 1975 por Rubens Gerchman e passou a congregar cerca de 40 artistas e intelectuais (entre eles, Hélio Eichbauer) que passaram a oferecer oficinas que contrariavam tanto o academicismo estéril quanto a repressão imposta pela ditadura na década de 1970. A Escola abrigou inúmeros projetos conhecidos como a 1ª Exposição Mundial de Fotografia, que contou com uma montagem da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade (dirigida por José Celso Martinez Corrêa), uma

Por essas razões, acreditamos na coerência das informações de Santana. Além disso, a relação existente entre Clarice Lispector e Martim Gonçalves (solicitador das traduções) é comprovável por meio da crônica “Por detrás da devoção”, de 02 de dezembro de 1967. Apesar do tema básico da crônica ser as empregadas domésticas da escritora, assunto por sinal recorrente na prosa de Lispector (a exemplo das personagens Janair, do romance A paixão

segundo G.H (1964), e Eremita, do conto “As criadas”, de Felicidade clandestina (1971),

para citarmos apenas dois casos), a cronista deixa entender que conheceu Gonçalves. Nas palavras de Clarice: “Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e explorada, piorei muito depois que assisti à peça As criadas dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves” (LISPECTOR, 1999, p. 49 – 50). Ao externar um juízo pessoal a respeito do trabalho do diretor, a própria cronista deixa margem para confiarmos nos postulados apresentados por Santana em sua tese.

Ainda no âmbito do teatro, a intelectual também traduziu junto com Tati de Moraes as peças A gaivota (1896), de Antón Tchékov, e The litte foxes (1939), de Lillian Hellman. Essas duas versões, que receberam os títulos A gaivota e As pequenas raposas respectivamente, são mencionadas pela própria tradutora na crônica “Traduzir procurando não trair”, publicada em 1968. Ao comentar as dificuldades de tradução do texto de Hellman e o trabalho sempre “inconcluso” ao qual se lança o tradutor, devido à necessidade de uma revisão contínua – “quanto mais se revê, mais se tem que mexer e remexer nos diálogos” (LISPECTOR, 2005, p. 115) –, Clarice esboça lucidamente a complicada posição em que se põe um tradutor no momento de transpor para outra língua/cultura determinado texto. Esboçando uma visada ambivalente que marca o trabalho do tradutor, a escritora toca no dilema fidelidade versus traição muito mencionado quando se pensa na tradução de textos literários. Segundo ela, existe uma “(...) necessária fidelidade ao texto do autor, enquanto ao mesmo tempo há a língua portuguesa que não traduz facilmente certas expressões americanas, o que exige uma adaptação mais livre” (LISPECTOR, 2005, p. 115).

Estaria, talvez, aí inscrita a imagem de um sujeito fiel a mais de um (Cf. DERRIDA, 2005, p. 170 – 171). Friedrich Schleiermacher (2010), em seu clássico texto “Sobre os diferentes métodos de tradução”, já tratara desse emblema ao se voltar para o movimento exposição de fotografias inéditas de Mario de Andrade, além de vários shows musicais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Cazuza, Fagner e Chico César, contemplados dentro do projeto Verão a Mil, encabeçado por Xico Chaves. Além disso, a Escola também realizava constantemente mostras de cinema, seguida de debates, que contaram com a participação de Darcy Ribeiro, Roberto da Matta e Ferreira Gullar. Atualmente, a EAV, como é mais conhecida, é dirigida por Lisette Lagnado e continua voltada às artes visuais contemporâneas em sua inter-relação com outras expressões artísticas como a música, a dança, o cinema, o teatro e a literatura. Cf. http://eavparquelage.rj.gov.br/. Acesso em 10.10.2016.

121

duplo no qual se lança o tradutor. Seria este aquele que leva o leitor ao autor ou aquele que leva o autor ao leitor? Sem uma pontuação categórica, diríamos que a (in)traduzibilidade do texto é quem determina o “método” – para utilizarmos a expressão de Schleiermacher – do qual se valerá o tradutor. O fato é que se torna inadmissível tomar uma das posições como lei geral. Ora voltando-se para o autor, ora para o leitor, a única lei/necessidade básica seria a do traduzir, tendo-se em mente a inoperância da obstinada unilateralidade do “método” imposto, sobretudo quando se tem em mente a tradução de poesia e da prosa artística (Cf. SCHLEIERMACHER, 2010, p. 67 – 68).

Semelhantemente, Clarice, ao expor o seu próprio “método” de escrita na crônica “Escrever”, de 1970, afirma:

Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem nem vontade nem tempo de se aprofundar.

Mas escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem.

Sobretudo quando se teve que inventar o próprio método de trabalho, como eu e muitos outros (LISPECTOR, 1999, p. 286, grifo nosso).

A questão do “método”, ressalvadas as possíveis diferenças, perpassa tanto o trabalho do escritor quando o do tradutor, principalmente no âmbito literário. Fica explícito no fragmento de Lispector que, ao menos na literatura, quando não se tem um método, inventa-o. Talvez para a tradução essa fosse uma máxima nem sempre aceitável, pois o texto que se traduz, muitas vezes, sugere uma possível direção na qual deve ir o tradutor. Contudo, seria também ingênuo pressupor que elementos exteriores ao texto não interferem igualmente na obra do escritor e no trabalho do tradutor. A recepção e o mercado seriam uns, dentre outros fatores, que circundam a literatura assim como a tradução. No caso da literatura, as fidelidades são várias e acabam definindo as marcas de determinado escritor; na tradução, diríamos que a fidelidade deve ser problematizada, pois o tradutor encontra-se situado entre dois espaços diferentes e tem a função primeira de promover a interação entre eles.

O estar em um “entre” colocou ao longo da história o trabalho do tradutor em suspeita, em uma “condição ancilar”, a qual propicia um “drama”, como sugere Antoine Berman (2002). A servilidade do tradutor em seu próprio drama consistiria em “servir a dois senhores” (ROSENZWEIG, apud BERMAN, 2002, p. 15), pois ele considera, simultaneamente, a língua estrangeira e a sua própria língua, o autor e o leitor. Logo, a posição ambígua do tradutor e de sua tradução promove um reexame de qualquer visada binária e dual que se volte

para este dilema. Apesar de resistir à tradução, por mais que necessite dela, à cultura é imposta um lugar de relação e descentramento, visto que

a própria visada da tradução – abrir no nível da escrita uma certa relação com o Outro, fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro – choca-se de frente com a estrutura etnocêntrica de qualquer cultura, ou essa espécie de narcisismo puro e não misturado. Na tradução, há alguma coisa da violência da mestiçagem (BERMAN, 2002, p. 16, grifo do autor).

Enquanto ferramenta oriunda de um processo mestiço, a fidelidade, no caso da tradução, afasta-se de sua promessa unilateral e passa à ambivalência, oscilando sempre entre uma ida ao texto de partida e outra à língua na qual se traduz. Ambivalência essa que, segundo Berman (2002), deve ser superada. A tradutora, no caso da crônica de 1968, assume essa posição paradoxal evidenciando a necessidade de estar com o texto da língua estrangeira e com o texto de sua própria língua. Está inscrita aí uma visada que admite a impossibilidade de se falar de tradução em uma linguagem maior sem passar pelo lugar de uma língua local, ou seja, contraditoriamente, a tradução de um texto estrangeiro (ainda que o mesmo texto) suscitará ao tradutor problemas de “fidelidade” reais a partir do momento de sua transposição em outra língua. Por isso, a imagem que se tem é a do tradutor enquanto sujeito sempre em tradução / a traduzir, adágio pontualmente apresentado por Lispector na crônica de 1968, citada como epígrafe desta seção.

Assim, as duas “fidelidades” se exteriorizam ao menos àqueles que traduzem. Neste caso, Lispector parece considerar a irredutibilidade intraduzível de um idioma, mas, ao mesmo tempo, não descarta uma saída, ainda que provisória e interminável, para apreender essa intraduzibilidade. Em outras palavras, a escritora evoca em sua crônica uma experiência de quem traduz o intraduzível enquanto tal, não descartando a necessidade dessa operação, dado que “apreender o intraduzível e apreendê-lo como tal é ler, é escrever, no sentido forte da palavra, naturalmente, é o corpo-a-corpo com o idioma; mas já é então uma prova, a primeira prova do apelo a traduzir” (DERRIDA, 2005, p. 171).

Parafraseando Ricardo Piglia, podemos dizer que em seus exercícios de tradução, o tradutor tem que por um olho na língua/cultura estrangeira e o outro nas entranhas da

língua/cultura de chegada, para que se tenha como produto final um texto escrito em sua

língua41. A fidelidade assim concebida seria inerente a ambos os olhos, obrigando ao tradutor

41

A noção de “mirada estrábica” é proposta por Ricardo Piglia, em “Memoria y tradición” (1991). Neste ensaio, publicado nos Anais do 2º Congresso da Abralic – “Literatura e memória cultural”, Piglia propõe uma reflexão acerca da relação existente entre a literatura latino-americana e a estrangeira, com o intuito de ilustrar como uma

123

uma visada no mínimo estrábica. Talvez a metáfora não seja a mais poética possível, mas torna-se exequível tanto nos contextos de tradução quanto nos da própria literatura no interior de uma mesma língua. Dizemos isso, pois, pelo menos no projeto de Lispector, a prática da tradução e a arte literária foram desenvolvidas simultaneamente, fato que tornou notável quase sempre uma ou outra reflexão explícita sobre o trabalho realizado com a palavra, a língua e a própria escritura, o qual, por sua vez, parece ser, ressalvadas possíveis diferenças, inerente a toda tarefa de tradução. Em crônica de 11 de maio de 1968, a escritora afirma:

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem tem. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida (LISPECTOR, 1999, p. 100, grifo da autora).

Ao rejeitar “uma herança de língua já feita”, além de questionar uma tradição imposta que recebe a glória do trabalho máximo com a língua portuguesa, Clarice deixa claro que o seu papel de escritora é conceder vida, uma vida contínua, à língua, ou melhor, fazer com que a língua viva mais e melhor, distanciando-se de sua morte. Em sentido semelhante, um exercício de tradução, ao mesmo tempo que proporciona uma hospitalidade total do outro em determinada língua, também promove, assim como no ato de criação literária, uma vida a mais da língua, uma sobrevida, como antes mencionado. A literatura, enquanto trabalho de vida da língua, passa a correr um risco contínuo quando se pensa na (im)possibilidade e na necessidade de sua tradução, as quais promovem na língua de chegada um processo outro de vida, o de sobrevida. Esse risco, no caso da escritora-tradutora, parece iminente quando lembramo-nos de que o exercício da tradução acompanhou todo o seu período de criação literária, sobretudo aquele circunscrito às décadas de 1960 e 1970.

As peças de Lorca, Tchékov, Ibsen e Hellman traduzidas por Lispector durante os anos de 1960 também não se enquadram nos critérios de delimitação de nosso corpus, visto que não atendem ao item 5 (versão que tenha Clarice Lispector como única tradutora) apresentado no início do capítulo anterior. Além disso, apenas a tradução da peça de Hellman