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CAPÍTULO I – A descoberta do mundo babélico da tradução: assinatura e arquivo

1.2 A tradutora entre o crédito e o valor

Quando um escritor se torna uma “referência”, quando seu nome se torna um valor no mercado literário, ou seja, quando se acredita que o que faz tem valor literário, quando é consagrado escritor, então “dão- lhe crédito” (CASANOVA, 2002, p. 32).

Refletir sobre a assinatura de Clarice Lispector, neste caso, não sugere um retorno à premissa teórica da intencionalidade do sujeito que se põe como “autor” de determinado texto, sobretudo porque, conforme a valiosa “lição” de Roland Barthes, em “A morte do autor”, a linguagem literária, a própria escritura, coloca-se no lugar daquele que foi visto por um bom tempo como seu proprietário. É preciso pontuar que o afastamento da figura autoral, no contexto de Barthes, vinha se impor contra uma percepção vigente de que o sentido de determinado texto seria abstraído a partir da “pessoa” que escreve, cuja existência fosse predecessora a do texto. Por isso, Barthes opta pelo termo “escriptor” no lugar de “autor”, já que aquele “nasce ao mesmo tempo que seu texto” (BARTHES, 2012, p. 61), o qual se realiza enquanto acontecimento performativo.

Nesse curso, a noção de assinatura de Derrida encontra respaldo na tese da morte do autor de Barthes, pois para ambos torna-se inoperante conceber a ideia de um sentido uno, passível de ser abstraído em sua totalidade, visto que a escritura se realiza enquanto se performa em um ato inconcluso, sem origem cabalmente demarcada, impossível de traduzir a intencionalidade de quem escreve. Logo, considerar a assinatura de Lispector nas referidas traduções e se guiar por ela no estabelecimento da tabela anterior, ao invés de nos lançar para um incoerente pensamento que privilegia um propósito autoral, viabiliza-nos uma reflexão acerca de uma Clarice a partir do presente, do já dito e, até mesmo, do não dito sobre a escritora.

Oportuno, neste momento, talvez seja lembrar da noção de escrita performática ilustrada pela própria Clarice logo no início de A hora da estrela (1977), novela na qual o narrador-autor-personagem Rodrigo S.M. possui um incômodo quanto à dificuldade de contar a história de sua personagem Macabéa. Em uma hesitação constante, provocada a partir da relação criador/criatura, a narrativa torna-se agonizante devido à problemática levantada por S.M. a respeito da complexa percepção do ato de escritura ao qual o “seu” texto se lança, texto que se “escreve escrevendo”, pois a narrativa dos fatos dá-se por meio de uma ação constante, cujo testemunho encontramos logo no terceiro parágrafo da novela: “Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu escrevendo o que estou escrevendo. Deus é o mundo” (LISPECTOR, 1998a, p. 11).

A própria ficção clariceana parece, ressalvadas as diferenças, elucidar o que move a noção de assinatura em Derrida e de escritura em Barthes, pois a ideia de performance inerente a ambas está diluída por toda a narrativa de S.M., a qual narra-se enquanto a narração é construída e problematizada. Ao estabelecer esse paralelo, não pressupomos que os textos de Derrida e Barthes, a partir dos quais propomos a presente reflexão, sejam dotados da mesma “natureza” que o texto de Lispector, porém lembremos que o texto literário também pode suscitar, por si só, reflexões, sem deixar de ocupar unicamente o pleno lugar de objeto passível de análise a espera de uma teoria, visto que a partir dele toda e qualquer reflexão torna-se possível, assim como a partir de outros textos também o é.

A assinatura, nesse contexto, mostra-se profícua quando se realiza frente a uma recepção, pois sentidos outros podem ser atribuídos aos textos, relações e citações outras identificadas em momentos diferentes, razão pela qual Barthes inverte o mito do autor e propõe o nascimento do leitor (Cf. BARTHES, 2012, p. 64), pois, assim como para Derrida a assinatura é uma questão de acontecimento futuro, para Barthes a “escritura é uma questão de enunciação” (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 30), cuja existência de um autor como presença é negada em detrimento de uma recepção produtiva.

É importante mencionar que a própria crítica reconhece nos escritos posteriores de Barthes uma espécie de “retorno” do autor, porém, esse retorno, segundo Leyla Perrone- Moisés, dá-se sobre uma suspeição contínua de certo poder que antes ocupava a figura autoral, ou melhor, que antes lhe atribuíram. Contemporaneamente, ele volta como um sujeito sem unidade, não universal e cada vez mais aberto à alteridade, cuja constituição ocorre a partir do momento no qual seu “eu” se aproxima de um “outro”, um “eu” plural, não-moral, ou como quer o próprio Barthes um “sujeito disperso”: “Pois, se é necessário que (...) haja no texto (...) um sujeito para ser amado, esse sujeito está disperso, um pouco como as cinzas que se jogam ao vento depois da sua morte” (BARTHES, apud PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 200).

Dessa forma, a assinatura de Lispector nos textos vertidos para o português ocupa o lugar de uma autoria reatualizável, sempre a depender da abordagem da obra em que se rubricou o nome de Clarice como tradutora. Apresentá-la como autora dos textos traduzidos não deixa de promover uma alteração que, certamente, modifica o funcionamento de seu nome e, ao mesmo tempo, possibilita a instauração de relações nunca antes postuladas; pois afirmar que determinado texto “foi escrito por” promove a ampliação de um contexto recepcional atrelado a tal nome, não uma mudança sobre o que se conhece biograficamente a

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respeito da escritora, mas implicações outras jamais conjecturadas no plano da crítica, a qual, por sua vez, assume a função de legitimar enunciados tidos como válidos, em uma espécie de “política discursiva” (Cf. HANSEN, 1992, p. 37).

Por isso, pensar a assinatura das traduções como uma espécie de “função autoral” é considerar as instituições articuladoras de discursos, a mutabilidade a qual ela se sujeita dependendo da época e cultura em que se realiza e não defini-la pelo outorgamento de um discurso a um sujeito empírico, dado que ela oscila entre uma descrição e uma designação, pois o nome do autor não é um nome próprio igual a outro qualquer, ele exerce uma função classificatória, além de estabelecer relações entre textos, por mais que não se possa conceber uma homogeneidade entre estes.

Segundo Michel Foucault (2006), “(...) o nome próprio (...) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais que uma indicação, um gesto, um dedo apontando para alguém; em uma certa medida, é o equivalente a uma descrição” (p. 272), mas, em outra, uma designação. Ele é um elemento discursivo, cujo funcionamento ocorre no interior de uma sociedade, de um contexto, e, ao mesmo tempo, uma espécie de marca legitimadora de prestígio em dada cultura. Nas palavras de Foucault,

(...) para um discurso, o fato de haver o nome de autor (...) indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status (FOUCAULT, 2006, p. 274).

Torna-se importante ressaltar que as noções de “assinatura”, “autoria” e “nome próprio” aqui evocadas por meio de Derrida, Barthes e Foucault, não são postuladas, especificamente, a partir de (con)textos de tradução. Porém, são inerentes às três um pensamento que considera os textos/discursos (no sentido mais amplo dos termos) não como construções oriundas do nada, muito menos advindas de uma origem totalizadora provida de um sentido único e maior. Tal pensamento permite-nos pensá-las a partir dos textos traduzidos por Clarice Lispector, sobretudo quando nos lembramos da posição de Antoine Berman, em A prova do estrangeiro (2002), quando ele reflete sobre a condicionalidade oriunda da resistência cultural a qual está sujeita o tradutor, quer ele saiba/queira ou não.

Para Berman (2002), a posição do tradutor é regida por uma ambiguidade que oscila da fidelidade à traição e vice-versa. O tradutor assume a posição do escrevente que “escreve a partir de uma obra, de uma língua e de um autor estrangeiro” (p. 18) e, ao mesmo tempo, no plano psíquico quer

(...) forçar a sua língua a se lastrear de estranheza e forçar a outra língua a se de- portar em sua língua materna. Ele quer ser escritor, mas é senão re-escritor. Ele é autor e nunca o Autor. Sua obra de tradutor é a obra, mas não A Obra (...). Para que a pura visada da tradução seja algo mais do que um voto piedoso ou um “imperativo categórico”, seria então preciso acrescentar à ética da tradução uma analítica. O tradutor deve “colocar-se em análise”, recuperar os sistemas de deformação que ameaçam a sua prática e operam de modo inconsciente no nível de suas escolhas linguísticas e literárias (BERMAN, 2002, p. 19 – 20).

Sob essa perspectiva, o tradutor é concebido enquanto sujeito que assina um “texto” e assume sua “autoria” com a assinatura de seu nome próprio, por mais que fique explícito desde sempre o texto outro a partir do qual realizou sua tarefa. Em outras palavras, o tradutor, em nosso caso Clarice Lispector, sorrateiramente, ocupa o lugar do autor do texto que se apresenta como tradução, por mais que saibamos, desde a capa do livro, da existência de um texto outro sob o qual ela se debruçou para produzir um duplo semelhante e diferente. Como se, em meio a volteios babélicos, a tradução tivesse ampliado o universo da escritora, lançando-a a uma etapa mais avançada como quer Borges: “o ofício do tradutor é mais sutil, mais civilizado que o do escritor: o tradutor vem evidentemente depois do escritor; a tradução é uma etapa mais avançada” (BORGES, apud BARRETO, 2001, p. 183).

Sem dualidades, se pensarmos o texto da tradução como um texto outro, o postulado da existência de uma autoria inerente a ele torna-se admissível. Talvez não uma autoria como aquela peculiar à criação literária que busca em alguns momentos ocultar os diálogos estabelecidos entre escritores e textos sejam do passado ou do presente, mas uma autoria esclarecidamente endividada, “dívida insolúvel no interior de uma genealogia” (DERRIDA, 2002, p. 28), como pondera Derrida a partir do ensaio “A tarefa do tradutor”, de Walter Benjamin (2010). A “tarefa” do escritor e do tradutor não são idênticas, mas há em ambas algo que os coloca sempre frente a uma alteridade, seja no primeiro caso de modo mais camuflado, seja no segundo mais explícito. O próprio filósofo alemão precisou a diferença entre a tarefa do escritor e do tradutor. Segundo Benjamin, “a intenção do escritor é ingênua, primeira, intuitiva; a do tradutor, derivada, última, ideativa” (BENJAMIN, 2010, p. 217), pois a tarefa deste funda-se em encontrar na língua de chegada o propósito em que o “eco” do original vê-se revivido, enquanto a daquele volta-se para o manejo de sua língua nacional com o objetivo de edificar formas atingíveis até a língua pura.

Essa associação entre a tarefa do escritor e a do tradutor é polêmica, como bem aborda Paulo Henriques Britto (2012), que opta por estabelecer uma “clara e precisa” distinção entre elas. A ocupação do primeiro seria dotada de uma força centrífuga, enquanto a do segundo de

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uma centrípeta, ambas guiadas por uma trajetória consciente (Cf. BRITTO, 2012, p. 35). Porém, o estudioso parece se esquecer de que, na “extensa zona cinzenta entre elas” (BRITTO, 2012, p. 33), não há como prezar por um movimento consciente do primeiro sujeito (o escritor); pois por mais que este tente se afastar de determinado centro ou modelo afim de uma busca “original”, sempre estará inserido em uma tradição constituída por filtros, alguns talvez mais ou menos perceptíveis que outros. Ao contrário de Britto, Otávio Paz (2009), em Tradução: literatura e literalidade, mesmo pontuando as diferenças entre os papéis do escritor e do tradutor, não deixa de mostrar que existem intersecções entre eles, a exemplo dos trabalhos com a linguagem executados por ambos, especialmente no âmbito literário, concluindo que “tradução e criação são operações gêmeas” (PAZ, 2009, p. 27, grifo nosso).

A conclusão de Paz, fora do (con)texto em que aparece reproduzida, pode gerar equívocos provenientes da maneira como foi aqui transcrita. Se compreendermos o termo “gêmeas” para além de sua acepção primeira (“idênticas”), notaremos, tomando o texto do crítico mexicano como um todo, que a palavra grifada estaria mais próxima do sentido de “análogas” ou “semelhantes”, mas não necessariamente “iguais”. Entendemos, assim como Paz, que esses papéis são, na verdade, exercícios próximos executados em direção oposta; isto é, enquanto a criação literária não tem seu ponto de partida pré-determinado, a tradução, desde sempre, sabe qual o ponto a partir do qual deve iniciar. Inversão essa que não exclui uma comparação, seja por semelhanças ou diferenças, as quais já foram, por muito tempo, caras à prática comparatista, ao menos no Brasil.

Segundo Tania F. Carvalhal (2003), em releitura aos postulados de Otávio Paz, tradução e criação literárias são “atividades paralelas, que correm em sentido inverso” (CARVALHAL, 2003, p. 220 – 231). Por esse ângulo, as diferenças entre tais atividades, apesar de aproximáveis, não deixam de existir; todavia, também seria ingênuo presumir que, nos momentos de criação, o escritor se lança como um barqueiro à deriva no mar da linguagem, sem norte, sem arrimo, sem projeto, sem ao menos vislumbrar terra firme para atracar. Existem fatores externos que podem interferir na forma como determinada obra chega a seu público; a saber, o contexto sócio-histórico-cultural, o mercado e, até mesmo, princípios norteadores do gênero no qual se predispõe escrever, ainda que seja para transgredi-los ou, talvez, renová-los, assim como também fizera a própria Clarice em sua prosa, a exemplo de seu (não)romance Água viva, publicado em 1973, no qual a narradora-personagem afirma: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega

mais” (LISPECTOR, 1998c, p. 13, grifo nosso), “(...) quero a experiência de uma falta de

construção” (LISPECTOR, 1998c, p. 27).

É nesse sentido que a literatura e a tradução literária podem se iluminar mutuamente, pois

Se o tradutor tem um ponto de referência preciso e delimitado para o seu trabalho, igualmente o escritor não parte do nada; ele tem atrás de si (e a seu lado) uma série de referenciais literários e não-literários) que ele redimensiona de modo particular. Não se trata de imitação, na acepção pejorativa do termo, mas de apropriações várias, de adesões a tendências expressivas, que poderiam ser consideradas como outras modalidades de “traduções” (CARVALHAL, 2003, p. 221).

Não que o escritor sofra de uma eterna angústia da influência, mas sua escrita o insere em determinada tradição, ainda que esta venha negada em um primeiro plano, a exemplo de vários depoimentos concedidos pelo próprio escritor, como os de Clarice que dizia não ter nenhum livro de Machado de Assis em sua estante e não se lembrar de ter lido José de Alencar alguma vez (Cf. LISPECTOR, 1998b, p. 47). Entretanto, essas proximidades não pressupõem a total semelhança entre a tradução e a criação literárias, sobretudo porque no primeiro caso o modelo logo se dá a apresentar, enquanto no segundo, às vezes, não. Por essas razões, Haroldo de Campos (2015) concebe o tradutor como um “transfingidor” ou “transcriador”. Segundo ele, “o tradutor constrói paralelamente (...) ao original o texto de sua transcriação, depois de ‘desconstruir’ esse original num primeiro momento metalinguístico” (CAMPOS, 2015, p. 110). Sob essa égide, o trabalho do escritor se aproxima ao do tradutor porque há no projeto daquele uma ficcionalização primeira, enquanto no projeto deste uma

transficcionalização.

Como sugere Campos, “o fictício da tradução é um fictício de 2º grau, que processa, metalinguisticamente, o fictício do poema” (CAMPOS, 2015, p. 119), por extensão, o ficctício da própria literatura. Assim, traduzir e escrever seriam operações próximas dentro de uma esfera maior: a criação literária. Nesse sentido,

Escrever e traduzir são atividades que envolvem inerentemente o processo criativo, ainda que de maneiras distintas. Acreditamos que o tradutor (...) exerce um papel criador sobre o seu produto. Além disso, podemos assumir que para desenvolver uma produção literária autônoma, o escritor também compartilha de fontes inspiradoras para a construção de uma obra (SOUSA; RABELO; TIMO, 2015, p. 261).

Semelhanças e diferenças várias poderiam ser aqui enumeradas sobre tal relação, mas a correspondência a qual por ora nos interessa trata-se do fato de que tanto na criação literária

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quanto na tradução encontra-se inscrita uma assinatura, um nome próprio, uma rubrica provedora de crédito à determinada tarefa, em nosso caso o nome da Clarice escritora exposto nas capas dos livros traduzidos, nome legitimador tanto no mundo mercadológico quanto literário. Pascale Casanova (2002, p. 32) afirma, com base nos postulados de Erza Pound (2006), que no “Mundo literário” é o nome próprio daquele que assina o responsável por atribuir crédito ao texto e, podemos pensar, por conseguinte, à tradução.

Em Lispector, essa proposição parece fazer sentido, pois boa parte das obras que consta o nome da intelectual como tradutora não faz parte do grande cânone literário, fato este que evidencia o quanto sua assinatura funciona como ferramenta fiadora de crédito ao texto que ora se apresenta em língua portuguesa. Dessa forma, obras que vão de romance policial a livros religiosos ou manual de psicologia acabam recebendo certo “valor” no contexto em que Clarice traduz. Por isso, Casanova admite a existência de uma crença inerente a todo valor, visto que o mercado literário se movimenta a partir de tal crença, ressaltando a importância e autoridade inerentes a certos nomes, certas assinaturas.

Em muitos casos, o nome do autor do original é o elemento definidor da posição ocupada pela obra quando traduzida em um novo contexto, porém, em outros, assim como pensamos ocorrer com Clarice, o nome da tradutora parece se sobrelevar frente ao nome do autor do texto de partida, sobretudo porque o “boom” quantitativo das traduções assinadas por ela ocorreu quando a escritora já ocupava um lugar relevante no cenário da literatura nacional. Assim, se observarmos os “aspectos morfológicos”, tal como proposto por Marie-Hélène Torres (2011)17, dos volumes das traduções de Lispector reproduzidos no anexo, notaremos que o nome próprio da intelectual deixa-se logo notar na capa de vários deles, rubricando certa garantia a um espaço de visibilidade à imagem da tradutora, além de (pré)definir “parâmetros que conduzirão à leitura e recepção do texto traduzido na cultura de chegada” (SOUSA, 2011, p. 12), tornando-se considerável o postulado poundiano de que “a referência a um escritor é o seu ‘nome’. Depois de certo tempo ele passa a ter crédito” (POUND, 2006, p. 30).

Por mais que esse postulado seja operante frente a maior parte das traduções elencadas no início deste capítulo na tabela 1, não podemos incorrer em generalizações. Basta somente lembrarmo-nos de alguns autores que pululam na babel tradutória de Clarice, a exemplo de Jorge Luis Borges, Yukio Mishima, Henrik Ibsen, Oscar Wilde, Frederico García Lorca, entre

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“Entendemos por índices morfológicos todas as indicações que figuram nas capas externas – frente e verso – e nas internas (página de rosto, páginas do falso título etc.) e que trazem detalhes sobre o estatuto das traduções, ou seja, a maneira pela qual elas são percebidas conforme os elementos informativos que apresentam” (TORRES, 2011, p. 18).

outros, para notarmos, logo de antemão, que tanto os nomes dos autores quanto o nome da tradutora estão sob o véu de uma “crença” atribuída a eles na cultura. Neste caso, é como se a crença ao texto traduzido não fosse filtrada somente pelo nome da tradutora, mas também pelo do autor da literatura de partida.

Antoine Compagnon, em O demônio da teoria (2010a), esclarece que o valor é atribuído “por intermédio de instituições: a escola, a publicação, o mercado” (p. 250), ao longo do tempo, o qual se encarrega por conferir crença aos objetos artísticos que pululam na cultura. Assim, a posteridade franqueadora de valor pode ser a mesma que o retira, confirmando, por conseguinte, que os créditos concedidos a determinados nomes são oriundos de uma exterioridade cuja natureza se torna, por vezes, instável e ambivalente, ou seja, “não se nasce clássico, torna-se clássico” (COMPAGNON, 2010a, p. 242). Tais premissas, quando associadas ao trabalho da tradução de Clarice Lispector, parecem fazer todo sentido, visto que o boom quantitativo de volumes por ela traduzido deu-se no momento em que a escritora possuía um conjunto considerável de obras publicadas e já gozava de certo reconhecimento crítico.

Essa relação entre o mercado e a escritora consagrada parece ser a justificativa mais plausível para o aparecimento de tantas obras com o nome de Clarice na condição de tradutora nos anos de 1970. Além de proveniente dos problemas financeiros, aspecto cuja explanação mais detida faremos no segundo capítulo, a tarefa da tradução de Lispector ilustra o que foi o