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A DISTRIBUIÇÃO SOCIAL DO PRODUTO DOS DÍZIMOS

3.4. O dízimo de Deus

O que chamámos o dízimo de Deus era constituído pelos encargos dirigidos exclusivamente para o culto divino e a caridade. Será, se assim o podemos entender, uma visão sobre aquela parte dos dízimos que teórica e canonicamente deveria estar reservada para a manutenção das igrejas e do culto e para a assistência aos

202 Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra..., pág. 555. O mesmo aconteceu com a

Universidade de Santiago de Compostela. Cf. Enrique Martinez Rodriguez, la Universidad de Santiago de

Compostela al final de la época autonómica, Universidade de Santiago de Compostela, 1981, pág. 42.

203 Não conseguimos averiguar, porém, se esta especial concentração tinha alguma razão histórica.

Curiosamente, na tese de Fernando Taveira da Fonseca não é feita referência aos dízimos cobrados na região por nós estudada. Cf. A Universidade de Coimbra..., pp. 555-600. Terá a Universidade entrado na sua posse apenas após 1771, data limite deste estudo? A hipótese é viável, pois como o mesmo autor afirma a Universidade “mesmo dispondo de uma base material bastante estável, algumas modificações se podem observar, susceptíveis de fazer variar a massa das rendas.” Cf. Idem, pág. 569.

204 Enrique Martinez Rodriguez, la Universidad de Santiago de Compostela…, pág. 41, 52, 56 e 57. 205 Em Lisboa, também entre 1827 e 1831 a Universidade é apresentada como um dos “grandes colectores”

de dízimos. Cf. Dulce Freire, Dízimos no Distrito de lisboa..., pp. 114 e 123. Curiosamente, na região de Coimbra nos mesmos anos, em média, a Universidade recebia pouco mais de 600$000 réis anuais, ficando muito longe de ser um dos principais beneficiários. Cf. Arnaldo da Silva, Os Dízimos nas Vésperas da sua

Abolição..., pág. 38 e quadro 13.

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pobres que, como já foi referido, estava bastante esquecida. Em relação aos pobres o mesmo é afirmado por Aurélio de Oliveira reforçando as nossas convicções:

“a participação dos pobres na pensão decimal foi-se tornando com o tempo cada vez mais problemática e de um modo geral no século XVIII deixou de satisfazer-se, deixando também de mencionar-se confirmando-se assim mais uma das abusivas distorções de que a dízima foi sendo objecto.”207

As despesas com o culto divino

Este tipo de encargos não são muito frequentes e resumiam-se, essencialmente, a pequenas quantidades em dinheiro ou géneros atribuídas para a “lâmpada do Senhor” que deveria, segundo as constituições diocesanas, estar sempre acesa diante da imagem de Jesus Cristo208; para as hóstias e vinho das missas; e para a

cera das velas (quadro 29).

29 – As despesas com o culto divino (mil réis)

Dizimarias Dinheiro Géneros TOTAL*

34 66,120 355,584 421,704

Média 1,945 10,458 12,403 * Este valor entra nos encargos dos interessados, porém, não é atribuído como rendimento a nenhum.

O pagamento em géneros era mais frequente e representava um valor maior. Consistia, vulgarmente, no caso da lâmpada em 2 almudes de azeite anuais. Para as velas o mais comum era o pagamento de 2 libras e para as missas eram nor- malmente fixados 2 alqueires de trigo e 2 almudes de vinho. Infelizmente não temos como verificar se estas quantidades seriam suficientes para as necessidades do culto, mas o que nos parece certo é que esta preocupação não estava de todo generalizada, como se pode verificar pelo reduzido número de dizimarias em que era referida, pelo que muitas vezes essa obrigação cairia sobre o clero paroquial ou sobre as populações.

As fábricas das igrejas

Outro dos fins teóricos dos dízimos relacionava-se com a manutenção dos edifícios e paramentos de culto, função atribuída, em parte, à fábrica de cada igreja

207 Cf. A Abadia de Tibães..., pág. 438.

208 Cf. Aurélio de Jesus da Costa, “Constituições Diocesanas Portuguesas dos Séculos XIV e XV”, in Bracara

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que tinha uma administração própria209. Os gastos com a reparação e manutenção

das igrejas referidos no inquérito de 1836 eram frequentes, o que não quer dizer que fossem elevados. Efectivamente aparecem em 132 freguesias, mas no total pouco passavam do conto de réis anuais (quadro 30).

30 – Fábricas das igrejas – rendimentos (mil réis)*

Denominação Nº Dinheiro Géneros Rendimentos Encargos Rend líquido

Fábrica 132 1239,600 50,545 1290,145 0 1290,145

Média 15,691 0,640 16,331 16,331 * O n.º de observações efectivo é de apenas 79 pois a fonte não indicava rendimentos específicos ou foi impossível calculá-los em dinheiro para 53 dizimarias.

Esses pagamentos eram maiores e mais frequentes em dinheiro do que em géne- ros, mas em média apresentavam-se reduzidos, pouco mais de 16 mil réis anuais. Mesmo assim é de notar que, em muitos casos, são referidos gastos com as fábricas, mas não são especificados. O mais certo era serem feitos à medida das necessidades do momento, consoante a igreja precisava ou não de obras ou quando era necessário comprar paramentos. É efectivamente um encargo reduzido, dando razão a Fortu- nato de Almeida quando este afirma que os “corpos administrativos fabriqueiros (...) mal podiam desempenhar a sua missão (...)” por falta de recursos. Consideramos o valor médio encontrado reduzido, tendo em conta também os que são apontados num projecto das Cortes de 1827, onde é declarado como ideal um valor mínimo de 20$000 a 30$000 réis anuais para a manutenção das fábricas das igrejas210.

Este facto vem mais uma vez reforçar a ideia de que o terço dos dízimos que, supostamente, deveria ser dedicado também a este fim estava, no final do Antigo Regime, a ser desviado para outros interesses e interessados, o que onerava o clero paroquial e as populações que, depois de pagarem o dízimo, tinham, em muitos casos, de concorrer para a manutenção das suas igrejas. É o que transparece da leitura do inquérito de 1821, pois são frequentes as respostas em que se afirmava que eram o “pároco e o povo” quem “concorria para a fábrica da igreja”211.

209 Cf. Fortunato de Almeida, história da Igreja em Portugal, Vol. III, pág. 63.

210 Este projecto lei foi elaborado por uma comissão na sequência de um outro apresentado por Borges

Carneiro na sessão da Câmara dos Deputados de 11 de Dezembro de 1826. Cf. Gazeta de lisboa, 1826, pág. 1315; Fortunato de Almeida, história da Igreja em Portugal, Vol. III, pp. 63-64.

211 Cf., por exemplo, as respostas do arcediagado de Braga, do arcediagado de Labruje ou ainda da visita de

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A assistência aos pobres

O inquérito de 1836 deu-nos algumas pistas para a análise desta problemática e permitiu-nos entrar em contacto com uma instituição que desconhecíamos e que, supomos, seria de grande importância, apesar de tudo, para aquela tarefa pia. Falamos do celeiro do Micho que é o principal interessado neste conjunto a que decidimos chamar a terça dos pobres. Junto com esta instituição encontramos outras três com características distintas, apesar de se dedicarem ao mesmo objectivo de ajuda dos necessitados. É o caso do seminário de S. Caetano, do Recolhimento da Tamanca e do hospital, todos situados em Braga (quadro 31).

O seminário era uma casa fundada em 1791 pelo bispo D. Frei Caetano Brandão que se destinava a acolher e educar rapazes pobres e órfãos e que em 1805 tinha a seu cargo cerca de 150 meninos. O recolhimento era um conservatório de órfãs fundado pelo mesmo prelado, no ano de 1797, que, também em 1805, albergava 80 meninas212. Como podemos ver, os bispos, apesar de nas freguesias pouco ou nada

reservarem para a assistência aos pobres, empenhavam-se a nível central em acudir aos mais necessitados, papel interventor que já tínhamos destacado no caso do seminário de S. Pedro213. Em relação ao hospital, nada conseguimos apurar sobre as

suas origens e efectivas funções, mas como o próprio nome indica justifica-se a sua inclusão neste grupo. Para o ajudar no cumprimento da sua função de auxílio aos doentes tinha anexa a dizimaria da freguesia de Medelo, concelho de Montelongo.

31 – A terça dos pobres – rendimentos (mil réis)

Denominação Localização Pensões em

Dinheiro Pensões em Géneros Pensões + propriedade das dizimarias

Encargos líquidoRend %RL

Micho Braga 37,130 1174,292 1211,422 0 1211,422 59,22 Seminário de S. Caetano Braga 100,000 0 673,960 120,000 553,960 27,09 Recolhimento da Tamanca Braga 0 0 145,549 0 145,549 7,12 Hospital Braga 0 0 231,760 110,709 121,051 5,92

Pobres da freguesia Ferreiros e

Covelas

0 9,517 9,517 0 9,517 0,47

Mendigos Desconhecida 0 3,750 3,750 0 3,750 0,18

TOTAL 137,130 1187,559 2275,958 230,709 2045,249 100,00

212 Cf. J. Augusto Ferreira, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga (Séc. III – Séc. XX), Vila Nova de

Famalicão, Mitra Bracarense, Vol. III, 1932, pág. 409 a 411.

213 Esta preocupação dos bispos com a caridade parecia ser frequente desde o século XVII, pelo menos na

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Estas três instituições eram proprietárias de dizimarias, cujo rendimento, no caso do seminário de S. Caetano, era acrescentado com uma pensão anual de 100$000 réis paga pelo abade de Cavalões, freguesia do concelho de Barcelos. Como seria de esperar, tendo em conta o que já dissemos, os “pobres da freguesia” não tinham esse privilégio e, efectivamente, só em dois casos é referida uma distri- buição a nível local de uma pequena parte dos dízimos, constituída por géneros, cereais e vinho214.

O celeiro do Micho é um caso bastante interessante, pois apesar de nunca ser apontado como proprietário de dízimos consegue uma quantia considerável nas 68 dizimarias onde era interessado. Era um celeiro situado junto ao paço arcebispal e dedicado aos pobres que existia já desde o tempo do bispo D. João de Sousa (1696-1703). Sabemos que no final do século XVII recebia anualmente mais de 7 mil alqueires de cereais pagos pelas igrejas da comarca eclesiástica de Braga, que eram distribuídos pelos pobres, todos os dias, em forma de pequenos pães denominados “michos”215.

32 – Quantidade de géneros recebidos

Géneros Quantidades Litros*

Meado 1304 alqueires 21019 Centeio 990 alqueires 15958 Trigo 223 alqueires 3595 Milho 23 alqueires 371 TOTAL 2540 alqueires 40943 Vinho 203 almudes 4811

* Para o cálculo dos litros, neste quadro, foram usadas as medidas de Braga.

Porém, apesar de os rendimentos em géneros serem, sem dúvida, significativos, o celeiro, no final do Antigo Regime, não recebia pensões apenas em cereais e as quantidades a que tinha acesso estavam longe dos 7 mil alqueires de 200 anos antes. Recebia igualmente algumas quantias em dinheiro e vinho. Dentro dos cereais verificamos que os mais representados eram o milho alvo e o centeio, através do meado. Os cereais mais nobres, como o trigo e o milho, são os que aparecem em quantidades menores (quadro 32).

Este reduzido rendimento, se tivermos em conta os números para o século XVII, pode ser o resultado do baixo valor médio por dizimaria (cerca de 17$000

214 Tinham direito a 10 alqueires de meado no caso dos “mendigos”; 10 alqueires de milhão e 2 almudes de

vinho para os “pobres” das freguesias de Ferreiros e Covelas.

215 Cf. J. Augusto Ferreira, Fastos Episcopais..., Vol. III, pp. 218 e 219 e José Viriato Capela, “Estado, Sociedade

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réis), pois, apesar de receber estas pensões em cerca de 70 freguesias, elas não eram muito mais significativas do que as que se dedicavam à manutenção das igrejas. Porém, não nos podemos esquecer de que aqui estamos apenas a estudar uma parte do arcebispado de Braga. Tendo em conta estes diversos aspectos, pensamos que esta preocupação com os pobres não deixava de estar presente e, mal ou bem, contribuiria para suprir algumas das necessidades dos mais carenciados, em especial em épocas de crise e carestia.

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