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3. DO MITO AO POEMA: PRIMEIRAS METAMORFOSES

3.3 Da ascese lírica

Patrícia San-Payo, ao discutir a temática da metamorfose em Aracne, faz as seguintes considerações acerca da veemente intertextualidade presente na obra:

O facto de se partir da ideia de metamorfose, de se constituir uma narrativa de metamorfose, funcionando este princípio como centro que, semelhante ao centro da teia, assegura a solidez e a coesão das partes ao mesmo tempo que sugere que a teia possa ser, desde o centro, constantemente refeita e infinitamente continuada, coloca este livro em diálogo com a tradição literária, nomeadamente com Ovídio e Kafka e, embora a relação com este autor seja mais secreta, o que não significa que pese menos aqui a sua influência, com Jorge de Sena. (SAN-PAYO, 2005, p. 235).

A referência a que aqui se diz mais secreta é Jorge de Sena. Imediatamente remetemos as suas Metamorfoses, obra de maturidade do autor português a qual descreve – excetuando-se a Post-Metamorfose e seus Quatro sonetos a Afrodite

Anadiómena – vinte poemas acompanhados cada qual de uma imagem, seja esta uma

pintura, ou fotografia, ou escultura, com que estabelece algum diálogo. A ideia de transformação no plano artístico assume, então, uma invulgar perspectiva sob o olhar desse poeta, reconhecidamente no trânsito contínuo que as distintas formas de expressão figuram e intercambiam na busca de um sentido que, progressivamente, se manifesta a partir de um questionamento existencial. Esta busca se funda, precisamente, no âmbito da representação como forma de conhecimento, que se dá a partir de uma instância intermediária a qual empreende a religação do homem com o mundo. Podemos, portanto, conceber uma ideia de poesia pautada no entrechoque de dois movimentos antagônicos que se lançam no intento de reconciliarem-se no precário plano da significação. Tal reconciliação nada tem de apaziguadora, porque, não só não visa um conhecimento totalizante do real, como a sua própria natureza é violenta, impulsionada por fluxos que, por causa de seus desacertos, empreendem uma mobilização infinita.

Ora, é o que lemos no conhecido “A morte, o espaço, a eternidade”, último dos poemas de suas Metamorfoses. O desejo de infinito deste sujeito lírico é um exemplo claro de enfrentamento afirmativo do homem frente à fragilidade de sua existência. A morte (natural) como termo da vida é motivo de angústia e fúria do homem (animal de cultura), este ser que ocupa um lugar entre a natureza e o trabalho. “De morte natural nunca ninguém morreu. / Não foi para morrer que nós nascemos (...)” (SENA, 1970, p.

139). Uma humana condição ambivalente, similar a esta desenvolvida no texto de Sena, pode ser notada na obra de AFA em que ora nos detemos. Todavia, as implicações são outras. É de um dissimulado desinteresse que se reveste o discurso do aranhiço em seu embate com as questões relativas à finitude do corpo. Os temas que lemos no poema seniano são recobrados em Aracne numa dicção às vezes excessivamente austera. A presença da morte, ora é abraçada com um alento epicurista, ora é prevista nas marcas de envelhecimento, que são neutralizadas por uma consciência de um tempo outro – poético: “Já estou a ficar velho, ainda que tenha / esta figura fixa sem idade, / e me mantenha em forma o aparelho / a que todos aqui somos sujeitos” (ALEXANDRE, 2004, p. 32). No âmbito da poesia, a sujeição à linguagem a que se condena o eu lírico apresenta-se, neste caso, simultaneamente como índice de aprisionamento (tópico que já abordamos anteriormente) e instrumental mobilizador para libertação.

Tocamos, enfim, um ponto nevrálgico para a compreensão do terceiro termo em torno do qual viemos desenvolvendo a noção de metamorfose: a representação. Como já observamos nos subcapítulos anteriores, à dinâmica de rebaixamento e punição é associado um movimento de busca pelo conhecimento, ou, mais precisamente, a assunção dos dotes que tornam possível esta busca. Ao assumir a volição deliberada como motor da ação no mundo, estamos diante de uma concepção de homem num plano livre da subordinação divina. É neste sentido que Aracne, ao retomar a narrativa mitológica, empreende uma discussão acerca do fazer poético como tecedura que, não somente se quer independente de um jugo superior, como ambiciona, desmedidamente, “um poder de criação que excede o próprio criador.” (AMARAL, MARTELO, 2006, p. 32).

A partir deste comentário de Ana Luísa Amaral e Rosa Martelo sobre a natureza deste particular modo de fazer do homem no seio de sua volição deliberada, podemos compreender a contiguidade destas duas potências presentes no trabalho da escrita poética: a transgressão (ou destruição, rompimento da lei) e construção do novo (desejo da alteridade). Chamamos ascese lírica esta possível conciliação entre as referidas forças antagônicas candentes na práxis humana, aqui concentradas na atividade poética como forma de se atribuir um sentido à existência. O domínio técnico, portanto, empreende um rearranjo das permutas caóticas pelas quais se manifesta a vida em seu excesso, não de forma a estabilizarem-nas, mas de maneira a, junto delas, consubstanciar o vertiginoso movimento de fluxo e refluxo ao gesto de escrita.

ter perdido o meu tempo em outros jogos, pois com talento e tempo poderia

abandonar a fria geometria e desenhar figuras, tão reais que nelas revelasse

a verdade maior da fantasia. (ALEXANDRE, 2004, p. 15).

A fundamental contradição encerrada nesta ideia de movimento ascético por meio da escritura pauta-se, justamente, no fato de compreender uma articulação entre termos de um mesmo sistema fechado e, a partir da exata laboração de seus elementos constituintes, promover um extravasamento deste mesmo circuito de representação. No exemplo que destacamos, é notável a figuração de um aranhiço-desenhista, portanto, seu labor não se foca nos usos da língua, contudo, deparamo-nos com um inescapável problema de linguagem. Como por excesso de realidade chegaríamos à “verdade maior da fantasia”? Antes de nos determos neste aspecto, observemos, neste fragmento, um primeiro indício de anseio por elevação circunscrito, justamente, no âmbito expositivo de uma espécie de arte poética do aranhiço. Assim, partimos da pequenez de sua obra (“Vai tão pequena a teia”) à superior verdade da fantasia; entretanto, nada nos garante a efetividade desta passagem – vale atentar ao uso do futuro do pretérito “poderia / abandonar a fria geometria” (grifo nosso). A ideia de um processo, não interrompido, mas ininterrupto parece-me sedutora relativamente a esta proposição e, para sustentá-la, bastaria focar no vocábulo que mais de uma vez notamos neste trecho. Tempo é o termo axial para uma leitura tanto deste poema quanto de todo o livro de AFA, na medida em que nos oferece a percepção da fluidez com que as imagens aqui são apresentadas. Ora, tempo é marca de um incessante fluxo e precisamente o que nesta obra (talvez em qualquer obra artística) entra em tensão por meio dinâmica de mudança e permanência. Afinal, a verdade maior que nos é revelada assim se mostra nas figuras desenhadas, portanto, não exterior a elas e, além disto, é expressão de uma mesma fantasia: matéria que alimenta a criação poética.

O que ressaltamos deste processo é a sua construção cíclica em torno do duo real e linguagem que, ao extrapolar a mera relação mimética, transporta o plano da representação para o campo da metamorfose, em que os elementos figurados não mais são captados de forma estanque, mas apresentados em movimento, em seu devir contínuo através do tempo. Refletindo acerca da questão da subjetividade a partir desta forma de entendimento engendrada pela criação artística, observamos como se articulam neste fazer poético “a recta, a espiral, e o nada” de forma a se delimitarem as etapas de laboração desde o mero traço no papel à sua conversão em imagem e a

consecutiva abertura à plena potência criativa, respectivamente. Deseja o aranhiço, por meio de seu rigoroso trabalho, engendrar uma forma radical de transformação do mundo e, nele, assinalar o seu projeto de humanidade: “a recta, a espiral, e o nada / que só à filigrana se consente, / são todo o meu orgulho, e no final / ter desenhado esse lugar exacto / onde em segredo posso ser humano.” (ALEXANDRE, 2004, p. 16).

Poderíamos, à guisa de ilustração e esclarecimento do processo descrito, convocar outro poeta para balizar tais dinâmicas de metamorfose. Herberto Helder é seu nome; leio um seu texto em prosa, do livro Os passos em volta (1963). O breve conto “Teoria das cores” narra a história de um pintor e seu peixe vermelho; o artista empreende-se na tentativa de pintá-lo, mas, ao perceber que nasce um nó negro a se alastrar continuamente do interior do animal, surpreende-se com o aparecimento de um novo peixe. Enfim, após refletir sobre a natureza de tal transformação, o artista pinta um peixe amarelo. A lição parece simples:

Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. (HELDER, 2010, p. 19).

Ora, nos parece simples se reduzimos a questão ao aspecto lúdico que Herberto Helder maneja com extrema habilidade. No entanto, o jogo nos aponta um fundamento muito mais sério no que diz respeito à questão dos desníveis operados pela representação. Veja bem, o texto trata de uma teoria das cores, o que já nos sugere uma sistematização de conhecimentos especulativos; vale lembrar, a observação do acontecimento narrado ensina o artista, em seu ato de mero observador. O trânsito que se estabelece entre o mundo das coisas e o imaginário configura-se na ponte paupérrima da representação, a qual une (e, portanto, também separa) as duas instâncias. Assim, o que o poeta nos propõe neste conto é, sobretudo, uma reflexão radical sobre o sentido do movimento no seio do labor artístico, de maneira que a lei da metamorfose referida assinala o meio pelo qual vida e arte são compreendidas num único gesto. A lei da metamorfose é este ponto de interseção, entendimento da singular natureza do real e da linguagem, de que apenas somos capazes de dizer um mundo em mudança, em seu ciclo ininterrupto de imagens. Portanto, em matéria de poesia, estamos sempre a falar de outra coisa.

Em apresentação à poesia herbertiana, Luis Maffei faz referência a um poema d’Os selos quando afirma acerca do labor poético do poeta português: “O “batismo” é

“atônito”: há qualquer coisa de religiosamente em diferença na estupefação que a poesia, ao nomear, provoca, na desordem a que leva a significação.” (MAFFEI, 2010, p. 127). O ensaísta aproxima o ato de significar a uma desordem. Torna mais claras as implicações a que está sujeita a poesia em seu movimento de interação com o mundo nomeado. Aponta ainda aos laços de religação em diferença que se trançam neste encontro atônito, portanto, con-fuso, em que o mundo deixa de ser simples representação da realidade das coisas para ser o próprio mundo feito palavra. A desordem provocada pela significação parece-me, deste modo, choque com as mesmas qualidades da vida em excesso. Ora, se atribuir a palavra compreende tal desconcerto é porque este mesmo desconcerto nos obriga a dizê-lo, caso contrário, não haveria a menor necessidade da construção de sentido, posto que eles, supostamente, já nos seriam dados.

Portanto, voltando ao texto de AFA, parecem-me ser estes mesmos desníveis o que observamos nos procedimentos estéticos que levam a uma concepção em redemoinho de seus usos da linguagem. Assim, o que se esconde por trás da dissimulada austeridade que tantas vezes assume o discurso do aranhiço, como “um véu / que ao esconder nos mostra o que escondeu” (ALEXANDRE, 2004, p. 42), é um profundo arrebatamento do espírito o qual põe em jogo uma experiência do sagrado.

É necessário precisar a sacralidade de que tratamos. No bojo da leitura de Bataille, como já referimos, em contraposição aos aspectos racionais que ordenam o mundo ao nosso redor concorre, em simultâneo, uma natural pulsão destrutiva associada comumente ao universo animal. A experiência interior observada pelo ensaísta proclama a afirmação do êxtase erótico vivenciado a partir de uma abertura à pletora dos órgãos, entretanto, em oposição a uma suposta licenciosidade a que o sujeito é deixado levar diante do horror da própria dissolução, quanto à questão do sagrado há de se levar em conta o seu aspecto ritualístico e que, tradicionalmente, cumpre um papel religioso. Neste sentido, a ideia de sacrifício, como já vimos, concorre a uma transgressão ordenada, experiência da qual, metodicamente, adviria o contato com o divino. Assim nos diz Bataille que “(...) o sacrifício é essencialmente a violação ritual de uma interdição: todo movimento da religião implica o paradoxo de uma regra que, em certos casos, admite sua ruptura regular.” (BATAILLE, 2004, p. 171). Este paradoxo assinala a organização de um acontecimento excessivo, indeterminável em seus limites, assim como a força de superação procedente do movimento de vertigem e perda que caracteriza esta expressão nefasta de religiosidade.

O mesmo notamos quanto aos procedimentos estéticos de AFA, muito precisamente naquilo que, em sua linguagem, se manifesta subterraneamente. Aliás, a expressão de seu erotismo está muito mais afinada a uma dicção hesitante e, portanto, excitante, indecisa entre a candura e a tentação. Sobre este aspecto, bastaria levantarmos um complexo semântico fundado em condicionais e vocábulos que indiciam uma suspensão discursiva, que acabam por construir um texto que se move “nos intervalos da escrita” (MARTELO, 2010, p. 203). Esta concepção intervalar do fazer poético alexandrino é em muito relevante para uma articulação com as antagônicas potências que a manifestação do erotismo abarca. É curioso notar como, em Aracne, o desejo de construção de um saber perfeito, figurado pelo fiar da teia do aranhiço, oscila entre a máxima ordenação e o desequilíbrio: “Ao humano desprezo bem queria / responder com um rasgo de heroísmo / ou de bem calculada fantasia;” (ALEXANDRE, 2004, p. 25). A tensão provocada entre “um rasgo de heroísmo” e a “bem calculada fantasia”, proposições intercaladas pela conjunção alternativa ou, causa algum estranhamento. Portanto, entre o rasgo (ação descoordenada) e o cálculo, procura o eu lírico fundar uma nova ordem de relação estabelecida por seus usos da linguagem. É este, afinal, o seu gesto heroico: a tessitura “bem calculada” é uma resposta ao desprezo do ser amado, movimento contra a ausência de recepção e que, logo, demanda a suscetibilidade do outro: “Dava-me já, porém, por satisfeito / se a minha arte fosse acompanhada / por discreto rumor de élitros e asas, / e eu mesmo, amoris causa, recebido / na academia eterna dos insectos.” (ALEXANDRE, 2004, p. 25). A circunstância em que é desejado o possível encontro é mínima, discreta. Este fragmento, que não deixa de se sublinhar com corrosiva ironia, aponta, entretanto, a frágil eternidade adivinhada no gesto lírico- amoroso correspondente à interlocução. E é quanto a este aspecto que procuro entender a ascensão do amor como uma forma de conhecimento, um saber partilhado e advindo da experiência. A ideia de ascese lírica busca, por meio de uma articulação entre as forças de criação e destruição particulares ao erotismo, a concepção do leitor por vir.

Em obra denominada Ascese: Os salvadores de Deus, Nikos Kazantzákis apresenta-nos um narrador que afirma, em tom imperativo, à maneira de um Zaratustra, uma série de deveres correspondentes a uma prática disciplinar que, afinal, cumpriria levar o homem à liberdade. O texto de Kazantzákis é bem-vindo para que possamos esclarecer a noção de movimento ascético pretendida pela poética alexandrina. De maneira a articular as potências antagônicas de Eros, a vontade de elevação aqui

assinalada corresponde a uma afirmação do amor como forma de conhecimento do homem e do mundo, e de reconhecimento da sacralidade destas mesmas forças.

Tão logo nascemos, principia o retorno; partida e volta são simultâneos; morremos a cada instante. Por isso muitos proclamaram: O escopo da vida é a morte.

Todavia, tão logo nascemos, principia o esforço de criar, de tramar, de fazer da matéria da vida: O escopo da vida efêmera é a imortalidade. Nos transitórios corpos vivos, lutam duas correntes: 1 a ascendente, rumo à síntese, à vida, à imortalidade; 2 a descendente, rumo à dissolução, à matéria, à morte. (KAZANTZÁKIS, 1997, p.

38).

Pautado no desdobramento de questões existenciais, o narrador de Ascese evidentemente bebe nas fontes nietzschianas em torno das problematizações filosóficas concernentes à noção do eterno retorno. O reconhecimento do movimento cíclico operado pelas duas correntes que lutam entre si possibilitam o acesso a um saber que se nos é revelado. A partir de uma viragem dos centros de poder instituídos, seguidos de seu aniquilamento e consequente superação da náusea provocada por tal experiência, podemos ter acesso à revelação de um conhecimento anteriormente inaudito, como se tratasse da contemplação de um evento apocalíptico25. A observância de uma mesma dinâmica de interdição e transgressão nos preceitos do narrador do livro de Kazantzákis – e que também notamos no labor poético de AFA – consubstancia-se a uma severa atenção a desígnios éticos, na medida em que à construção de uma forma de saber corresponde, igualmente, a consciência de sua eficiência enquanto modo de fazer: “Cumpre-nos, então, aceder a uma visão que articule e harmonize estes dois

prodigiosos impulsos sem princípio nem fim, e por ela regular o nosso pensamento e a nossa ação.” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 38). Vale ressaltar que este gesto nada tem

que ver com certa atitude de cariz moralizante e pejorativamente conservador; pelo contrário, a ética pretendida pelo romancista grego, assim como pelo poeta português, assume um dever de ação prospectiva e transformadora.

Como já vimos, a construção deste conhecimento, no que tange à poética alexandrina, situa-se no espaço da interlocução. É portanto um gesto ético por excelência o pretendido pela poesia de AFA porque se dá no momento preciso da relação do eu com o outro. Em Aracne, a insistente ausência deste outro assinala, em contrapartida, o desejo de alteridade – transcendência no corpo de outrem. E é

25

Apocalipse provém do grego apokálypsis, que significa revelação. Embora comumente seja relacionado a fantásticos acontecimentos cataclísmicos que assinalariam do final dos tempos,

originariamente o termo designa a mudança de um poder vigente em virtude de outro, que promove o acesso a um novo saber.

justamente neste espaço que se fundamentará tal experiência. Um apelo à corporeidade da relação estabelecida expõe, assim como é sublinhado em Ascese, uma tensão entre a finitude do ser vivente e o seu anseio pela eternidade. Acredito que o efeito de beleza reconhecido neste quadro associa-se a uma mesma condição ambivalente característica do embate entre natureza e cultura no homem, como podemos ver neste que é um dos mais interessantes poemas da obra alexandrina estudada e do qual extraio o seguinte fragmento:

Esse teu mundo, de que te orgulhas tanto, não sei se tem a paz do ramo seco onde a lagarta faz o seu casulo. O corpo, é certo, “todo de olhos feito”, é o mais belo e mais sensível fruto da natureza, e a todos causa espanto;

e tens, dentro do crânio, um arbusto pensante, prodígio de design e de invenção,

com que às vezes tu pensas, outras não. (ALEXANDRE, 2004, p. 12).

Neste trecho em que o aranhiço descreve as propriedades tanto físicas quanto psíquicas de seu amado, há certa recuperação de uma ambiência edênica a qual põe em jogo a aquisição de um saber interdito. Como uma espécie de árvore do conhecimento apequenada, as propriedades deste “arbusto pensante” – ou o cérebro – situam-se num espaço em interseção com as qualidades do corpo, “todo de olhos feito”, como a assinalar algo da mesma ordem daquela “visão” que harmonizaria as contraditórias forças de Eros, como reflete o narrador de Ascese. É, afinal, o corpo o fruto proibido, acesso a uma naturalização anterior à consciência que, contudo, se intenta engendrar a partir de um aprendizado técnico, por meio de um “prodígio de design e de invenção”. Não se trata da recuperação de uma inocência perdida, mas de uma articulação entre tais particularidades humanas as quais, então, engendrariam um saber do (pelo) corpo. A ideia relativa à constituição de um corpo de sentidos por meio da linguagem de AFA, sobre a qual já esbatemos neste trabalho, se funda neste movimento.

Podemos, a este respeito, voltar a Jorge de Sena, com quem começamos este subcapítulo. Em Amor e outros verbetes, precisamente no verbete Amor, encontramos uma interessante passagem em que o autor discute a questão de um aprendizado por meio da experiência amorosa, observado em cerimônias rituais, em contraposição à ideia de pecado original, que, enfim, teria estigmatizado o prazer do corpo na relação sexual. Sena afirma que “Se há, assim, “pecado original” da natureza, em sentido genérico, está em ser possível, ou ter sido possível, estigmatizar-se qualquer aspecto da vida sexual, e tal estigma ter tido consequências profundas na psicologia individual ou

colectiva.” (SENA, 1992, p. 31). A crítica severa à cultura judaico-cristã, que se

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