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3. DO MITO AO POEMA: PRIMEIRAS METAMORFOSES

3.2 Do amor sacrificial

De acordo com a clássica narrativa mitológica, Aracne é punida por Atena, sendo transformada em aranha condenada a fiar eternamente. Ora, desde já, é interessante notar duas condições a que fica sujeita a tecelã. Cumpre estabelecer esta distinção de modo a perceber como se articulam o que seriam as marcas mais profundas desta punição. A primeira, talvez mais evidente, diz respeito à metamorfose em si, a transformação de Aracne em aranha, “símbolo da crueldade e da traição” (AMARAL, MARTELO, 2006, p. 31). Tal gesto promove, não só uma diminuição, a passagem de humano para inseto, como uma exclusão, se atentarmos ao caráter asqueroso de seu novo estado. Não pondero o desagravo relativo a uma suposta piedade divina aquando da sentença dada por Atena, tendo em vista seu impedimento de que Aracne se mate; é neste ponto, possivelmente, que se encerra a predisposição irascível da deusa, aqui é determinada a sua maior proibição. A segunda condição diz respeito ao tear infindo. Este termo da condenação exige uma maior complexidade de entendimento e por ele, assim como pelo anterior, passaremos mais adiante a partir da leitura do poema-livro de AFA.

Falamos de condenação e o ato precedente ao julgamento supõe a realização de um crime. Como já insistentemente abordamos neste estudo, a desmedida do desejo como aspecto transgressor no gesto de Aracne de se igualar aos imortais é recorrente como marca de um desvio da norma ao qual se deve impor limites. Estabelece-se claramente uma lei de interdição a qual coíbe o extravasamento do corpo em sua volição criativa. Na obra alexandrina, há uma acentuação da culpabilidade demarcada pelo medo da repressão e isolamento: “(...) pequeno que sou, receio a inveja / da sociedade, ou de um poder mais alto, / que em mim veja rival ou parasita / e me transforme em bicho repelente;” (ALEXANDRE, 2004, p. 15). Neste âmbito se funda a primeira sujeição condenatória imposta ao eu lírico: a transformação em “bicho repelente” que, aqui, não necessariamente faz referência à aranha (embora a sua imagem possa nos provocar o sentimento), caracteriza a condição excludente deste sujeito, caso irrompa contra a sociedade ou “um poder mais alto”. Estabelecem-se, também, os termos

19 Para a elaboração deste subcapítulo, foi imprescindível a leitura da dissertação de mestrado de

comparativos que acentuam a menoridade do eu lírico repercutida em sua frágil potência discursiva em oposição a um efetivo discurso de poder.

A todo instante observamos a intercalação de posicionamentos deste sujeito que, ora se apresenta como vítima, ora como agente transgressor A ambivalente articulação destes movimentos se processa simultaneamente em Aracne, sob a forma de uma discreta ironia (tema já abordado no subcapítulo anterior) que suspende a ancoragem do discurso: “Ser o homem-aranha não me tenta, / prefiro a vida táctil dos insectos / que ainda na morte se conservam puros, / assim na estante, entre os melhores objectos.” (ALEXANDRE, 2004, p. 10). O aspecto subversivo deste enunciado assenta sobre uma renúncia: não se quer ser o homem-aranha. Curiosamente, se nega uma tentação, mas a compreendemos na medida em que assinala uma condição estanque, pois não há mobilidade neste híbrido, ou, ao menos, não como a desejaria em sua metamorfose. Há ainda, e não devemos obliterá-la, a referência ao super-herói, associado que é a uma dada cultura, a um determinado sistema ideológico, e, como sabemos, a elaboração do discurso amoroso constitui-se, com precisa gravidade na fala do aranhiço, como uma voz desterritorializada, distante de qualquer instituição hegemônica. Em contrapartida a esta primeira condição, prefere uma morte em que resguardaria certa pureza, um estado de conservação, “assim na estante, entre os melhores objetos”. Acentua-se, neste ponto, o isolamento do eu lírico que se atesta em uma série de passagens da obra alexandrina.

Sobre este aspecto, é curioso notar uma radical contradição que responde ao caráter não-coincidente – para usarmos a expressão de Jean-Luc Nancy – relativo à situação do aranhiço em sua teia. Ana Luísa Amaral e Rosa Martelo, ao organizarem um histórico das imagens da musa e da aranha na literatura, afirmam acerca desta que, a princípio, no período clássico (como também no romântico), haveria uma “indissociabilidade entre poeta e obra ou a hipervalorização da tessitura poética.” (AMARAL, MARTELO, 2006, p. 32). Deste modo, o sentido poético é advindo diretamente de um espírito criador, uma força interna capaz de revelar um conhecimento do mundo o qual é expresso na obra. A criação singular confunde-se com a própria figura do poeta, não havendo distinção entre elas.

Podemos entrever neste tipo de formulações a afirmação de um sincretismo que a imagem da aranha, tecendo os fios da teia a partir de sua própria substância, simbolicamente exprime, assim se reiterando uma relação de absoluta reciprocidade, passível de ser projectada retrospectivamente na incapacidade de sobrevivência de Aracne à desvalorização da sua obra. (AMARAL, MARTELO, 2006, p. 34).

A radicalidade do intento de indiferenciação entre poeta e obra é observada, mais adiante, nas poéticas do modernismo. Entretanto, notamos que, a partir da hipervalorização da obra, suscita-se uma aguda consciência da autonomização do texto que, investindo num “aprisionamento da subjectividade poética nos limites da textualidade imposta pelo poema” (AMARAL, MARTELO, 2006, p. 36), consecutivamente opera um movimento contrário à anterior indistinção. Agora estamos diante da mais profunda alteridade, tal qual a compreendeu Roland Barthes ao conceber a ideia de hifologia a que já remetemos na introdução deste trabalho. Há, efetivamente, um desencontro entre o eu do poeta e a sua projeção no espaço do poema, na medida em que se elabora uma deriva subjetiva realizada por meio dos procedimentos analíticos da linguagem. É este reconhecimento da distância que separa a palavra das coisas nominadas que faz com que, no discurso do aranhiço enamorado, o alocutário assuma o perfil de uma figura quase fantasmagórica, um tu que, progressivamente, parece se apagar a cada vez que é chamado ao texto.

A contradição a que atentamos refere-se ao fato de que o recanto onde se recolhe o eu lírico é um espaço de solidão, mais precisamente é um espaço em que se processa aquilo que Maurice Blanchot denomina como a solidão essencial. Não se trata, explica o ensaísta, do recolhimento necessário à atividade do escritor, mas de um afastamento operado pelo labor poético o qual determina este trânsito do eu no texto, o deslocamento da subjetividade por meio do gesto de escrita. Algo muito similar ao procedimento reconhecido nos usos da ironia, em que se dá uma desestabilização do discurso, aniquilando a noção de um eu fixo. Em passagem de Uma fábula, já encontramos a apropriação deste recurso utilizado com alguma perícia pelo autor que, ironicamente, se desautoriza: “Também agora não peço / a garantia de autor / (para que no editor / assírio e alvim se publique / peço ao franco antónio que / tudo a seu cuidado fique)” (ALEXANDRE, 2001, p. 23-24). A clara distinção entre sujeito autoral e civil faz do espaço literário o símbolo desta não-coincidência. O que há de contraditório no recolhimento do aranhiço à sua teia diz respeito ao fato de que é justamente onde ele se situa que não está. Nada mais garante a estabilidade deste sujeito que, então, experimenta o próprio esgarçamento onde se encontra encarcerado.

Deste quadro, observamos a sujeição ao isolamento e solidão do eu lírico vivenciada como um estado de marginalidade a que é posto relativamente ao ser amado. Constrói-se toda uma narrativa amorosa com um tom acentuadamente melancólico, posto que o aranhiço só se faz amar no texto, embora nele não encontre a si mesmo,

enquanto que no espaço extratextual é recebido com asco: “Triste sina porém é não poderes / suportar os contactos animais, / fazer-te comichão, teres alergia” (AELXANDRE, 2004, p. 10). É nestes termos que se fundamenta toda uma poética da distância, fratura que se faz sentir, sobretudo, na relação que se intenta empreender entre obra e leitor. A ausência de recepção soma-se a tal desencontro com a própria identidade no poema que, invariavelmente, mantém-se sob o risco de cair em vertiginoso solipsismo. Mesmo a hipótese de uma profusão de vozes emaranhadas no texto alexandrino não permite assegurar a presença de um tu com quem se estabeleça diálogo, sem que, consecutivamente, perca-se o fio do discurso. A barthesiana concepção de fading, a qual se caracteriza por um progressivo afastamento até o desaparecimento final do ser amado, pode muito bem se verificar na obra de AFA, não apenas quanto a uma figuração do outro, como também relativamente aos seus usos da linguagem que, como já assinalou Rosa Martelo, processam-se à maneira de um efeito de sublimação. “Quando o fading do outro se produz, fico angustiado porque ele parece sem causa e sem fim. O outro afasta como uma miragem triste, se desloca até o infinito e me desgasto para alcançá-lo.” (BARTHES, 1981, p. 107). Ambos os procedimentos que destaco conferem à figura do ser amado a conformação de uma voz desabitada; assim também João Amadeu Oliveira da Costa intitula seu ensaio com o verso de

Duende “o signo de uma ausência no fundo das imagens”, o que, naturalmente, remete a

esta falta ou contínuo apagamento do outro nos textos alexandrinos. Há uma série de índices de distanciamento em Aracne os quais se consubstanciam a estas duas formas em que ora nos detemos: uma distância desenvolvida no interior do próprio eu lírico – a qual o separa de si mesmo – e outra que tange ao afastamento deste mesmo sujeito em relação a um outro inscrito no texto.

Tratemos, a princípio, do primeiro exemplo. Patrícia San-Payo já assinalou um complexo jogo de espelhos por meio do qual se desenvolvem os procedimentos estéticos da poética alexandrina. Estamos, então, diante do devir-infinito do eu lírico, que, afinal, impossibilita qualquer estabilização de seu discurso; os incessantes deslocamentos que opera no espaço do texto estão em pleno acordo com a concepção blanchotiana de solidão essencial, de forma que a intensa polifonia do texto é absorvida pelo aspecto monológico de um discurso amoroso autocentrado20: “Olhar dentro do espelho deu-me ideias / do que seria um animal perfeito;” (ALEXANDRE, 2004, p. 23).

20 Já em Uma fábula o autor havia abordado alguma temática referente ao mito clássico de Narciso, o

O isolamento a que é condenado reflete-se numa evidente imagética especular a qual destorce a figuração do aranhiço no que seria um outro de si mesmo. Como sabemos, o primeiro desencontro da obra se dá, justamente, num âmbito existencial, caracterizado por um sujeito em trânsito. Os desdobramentos deste gesto são articulados a partir de uma acurada percepção dos usos da linguagem e sua inexorável separação infringida relativamente ao real. Deste modo, a imagem da teia, ou do véu, torna-se frequente na obra, como forma de investigação filosófica sobre a realidade do mundo a qual não se tem acesso direto.

Haveria, portanto, a pretensão de desvelar um saber que permanece oculto e esquivo sob o manto da fantasia enredado pelo olhar do poeta. “(...) e eu conjecturo / que um dia, no futuro, um instrumento / permitirá sondar os elementos / de que se tece o manto da aparência, / e descobrir, ao fundo, os fios / de uma agitada teia vibratória.” (ALEXANDRE, 2004, p. 39). O fragmento parece recuperar, não apenas a lapidar assertiva de Eça de Queirós, mas certa dicção de alguns dos versos de Cesário Verde em

O sentimento dum ocidental: “E eu que medito um livro que exacerbe, / Quisera que o

real e a análise mo dessem;” (VERDE, 2010, p. 203). A linguagem submete o objeto significado a um processo analítico, portanto, de divisão, separação, a que, consecutivamente, seguir-se-ia uma possível compreensão sistemática das demais partes num conjunto totalizante. Ocorre que, já na poesia verdiana, e com mais aguda acentuação na alexandrina, as palavras são agenciadoras de distâncias e dispersam o sujeito em sua tentativa de apreender o real, que só pode ser referenciado por fragmentos. Os movimentos de fluxo e refluxo diagnosticados na poética de AFA são sintomáticos de uma doença da linguagem, muito próxima da afirmação de Roland Barthes que reconhece o caráter fascista da língua, tendo em vista que ela obriga a dizer. Num movimento ininterrupto, o discurso amoroso do aranhiço insistentemente se repete, se reflete, regressa à teia muitíssimas vezes num tom lamurioso, demarcando como que uma reincidência da linguagem que bordeja os limites do sentido sem preocupar-se em fixá-lo: “Neste jogo de espelhos, a teia da aranha é desfeita, tanto quanto feita: desfeita sempre que, provisoriamente, nela se estabiliza ou demora um sentido.” (SAN-PAYO, 2005, p. 237).

Novamente recuperando a ideia de metamorfose e assimilando-a a uma desterritorialização do discurso amoroso, na medida mesmo em que ele se manifesta de forma assistemática, compreendemos a operação deste gesto de passagem realizado pelo sujeito no texto como uma forma de morte. Conciliamos os dois movimentos quanto ao

que eles manifestam de vertigem na separação do eu consigo mesmo. Deste modo, a alteridade provocada pela escritura torna-se signo de uma falta, uma carência que deturpa o real, ressaltada por uma pobreza da linguagem incapaz de transportar a experiência em sua plenitude ao universo literário. Assim o aranhiço afirma: “(...) suspeito e temo que, noutro universo, / um outro eu repita, em pobre verso, / o meu modesto e matinal passeio.” (ALEXANDRE, 2004, p. 39). Há um aspecto temeroso quanto a este trânsito, mas, simultaneamente, tentador, levando o eu lírico a abismar-se em seu próprio reflexo na promessa de engendramento de um saber novo:

Deslizo pela lente mais convexa (onde ajeito, também, o meu reflexo) e pouso sobre a mesa, no papel onde, em desenho tosco, perfiladas, mil aranhas soletram o mistério da ordem geométrica das coisas; aqui, soubesse eu ler, encontraria explicada a tristeza e a alegria, e como cada ser desdobra e afirma a sua essência singular, e implica

os infinitos modos da substância. (ALEXANDRE, 2004, p. 39).

Coadunam-se ao aspecto analítico do real, notado no mistério soletrado (logo, separado em partes), a característica deslizante deste processo, assim como a sua precariedade, posto que se faz em “desenho tosco”. A possibilidade de construção de uma imagem poética que desse conta desta subjetividade, aqui, é concomitantemente aprovada e negada. Logo, a sua “essência singular” é afirmada e desdobrada num só movimento, numa espécie de desencontro consigo mesmo ou de encontro alhures. Encontro que, hipoteticamente, supõe-se, não com um outro eu, mas com um outro efetivo, embora seja sempre assinalado por um índice de distanciamento.

As marcas de distância em relação ao outro podem ser observadas na obra sob uma variedade de aspectos que não somente se encerram na relação entre o eu lírico e o ser amado. Sabemos que este tem uma namorada, o que implica (não negaria a possibilidade de uma partilha dos afetos a três), contudo, uma divergência, desestabilizando a balança da relação: “Demora-se a falar ao telefone / com a namorada, no vagar dos dias; / diz-lhe tudo o que faz, e pensa, e sente, / e ouve também, com ar inteligente, / as divertidas vidas que ela conta.” (ALEXANDRE, 2004, p. 8). Observamos que o contato entre os sujeitos em questão, embora pareça mais direto, porque não se dá por meio do texto, assinala outro indício de separação designadamente no uso do telefone. A dissolução da namorada se opera na voz, ela que conta suas

“divertidas vidas”; não é a presença do outro que está em voga, mas seu constante desaparecimento, o fading de sua voz que somente atesta uma ausência:

Pelo telefone, sem dúvida, tento negar a separação – como a criança que, relutando em perder sua mãe, brinca de manipular sem descanso um barbante; mas o fio do telefone não é um bom objeto transicional, não é um barbante inerte; ele tem um sentido, que não é o da junção, mas o da distância: voz amada, cansada, ouvida ao telefone: é o fading em toda sua angústia. (BARTHES, 1981, p. 109).

Troca-se o fio da teia pelo do telefone, mas não se protege do risco da separação. Este cansaço, diagnosticado por Barthes, da voz amada é, em Aracne, corroborada pelo insistente desenho de uma figura desinteressada (desinteressante?), entediada, do outro: “(...) com patas firmes vou à sala, espreito / o teu corpo dourado que dormita / diante da tv;” (ALEXANDRE, 2004, p. 19). Em relação ao ser amado e sua namorada, há uma fundamental diferença em comparação a este quadro notadamente no fato de que ele a ouve ao menos. E o que observamos na obra alexandrina, precisamente no que tange ao relacionamento do eu lírico com este tu a quem interpela como um chamado ao vazio, é o muito frutuoso desenvolvimento do problema da recepção. Poderíamos compreender esta figuração do outro como uma encenação do leitor dentro da própria obra, de forma que a sua presença garantiria a movimentação do texto (e, talvez, uma maior segurança relativa à conformação do eu do discurso, já que se pressupõe que um acordo interlocutório dá-se por meio de duas entidades distintas). Entretanto, inelutavelmente deparamo-nos com a constatação de um abismo a separar os dois sujeitos discursivos, seja no texto, pela linguagem, seja fora dele, devido à condição animalizada da qual o amado sente repulsa.

Neste âmbito, a questão da liberdade21 é profundamente relativizada, na medida em que, independente do espaço em que se intente o relacionamento intersubjetivo (intra ou extratextual), está o eu lírico condenado a dizê-lo, portanto, sujeito à linguagem. Razão pela qual, talvez, a ambivalente condição de devir-animal/devir- humano momento algum é abandonada. “Sozinho agora, e solto, enquanto acaba / mãe- sol de riscar linhas no horizonte, / lamento que não saibas que se esconde / uma princesa em cada feia aranha, / mais bela e cintilante do que a lua;” (ALEXANDRE, 2004, p. 18). Neste fragmento, uma possível ilusão de liberdade é articulada com o estado de isolamento e solidão vivenciado, contudo, fora do texto: espaço da experiência empírica que se daria sem a intermediação de palavras. Todavia, esta mesma estrutura é contrabalançada por uma perspectiva que sugere uma desnaturalização da própria

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natureza no desenho realizado pela mãe-sol que risca “linhas no horizonte”. O olhar deste eu lírico como que se mantém sob um véu a separá-lo do mundo, de forma a sobre este projetar uma ordenação artificial. Descreve-se, portanto, um constante embate entre forças em tensão: o homem entre o natural e o cultural. A humanidade aqui proposta não é de forma alguma divorciada de sua condição animal – por isto mesmo a opção por descrevê-la em devir –, o que, consequentemente, torna-se motivo de grande transtorno, observável nas insistentes lamentações do eu lírico.

Sabemos que o outro não quis “pousar sequer um pé na minha teia” (ALEXANDRE, 2004, p. 17), afirma o aranhiço. Entretanto, é pelo texto que se procura encaminhar um percurso de sedução, espaço em que é buscada a outra desejada parte do discurso: a leitura. Aqui, AFA desenvolve um dos mais profícuos trabalhos intertextuais reconhecidos em sua produção. Em Aracne, o diálogo com a poesia de Luis de Camões provoca imenso assombro quando inventariada a série de indícios que retomam a obra deste poeta e constata-se a sua profunda contemporaneidade. Não é o nosso objetivo relatar cada um destes aspectos recuperados, pois tal exercício exigiria um estudo à parte tendo em vista a fertilidade desta dialogia. Para que não nos percamos em excursos desnecessários, proponho articular a questão da presença camoniana em AFA a partir do tema que ora nos propomos a debater. Falamos do problema da interlocução e das distâncias operadas pelo discurso do aranhiço, que se defronta com a radicalidade da consciência sobre os usos da linguagem. Naturalmente, aproprio-me da hipótese levantada por Jorge Fernandes da Silveira, em seu O Tejo é um rio controverso, acerca da problemática da recepção n’Os Lusíadas, para articulá-la com o signo da ausência do outro na poesia alexandrina.

A importância deste diálogo funda-se num dos motivos de maior relevância para uma compreensão da poesia contemporânea. Trato da ausência de leitura, tema que é insistentemente retomado na obra de AFA à luz dos versos de Camões (assim como na produção de tantos poetas dos séculos XX e XXI22). Em passagem de Aracne, lemos: “(...) ainda não sabes / que vim de viagem, dentro de uma mala.” (ALEXANDRE, 2004, p. 19). O significativo trecho aponta ao retorno da viagem, o qual o amado ignora, e que

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Aqui, poderíamos levantar uma série de autores de maior importância a discutir a problemática da recepção de poesia em Portugal. O trabalho seria extenso, contudo, a abordagem de um diálogo com a

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