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Da convivência com a lama aos estudos sobre a fome

“Recife, cidade do mangue

Incrustada na lama dos manguezais Onde estão os homens caranguejos ...” (Antene-se, de Chico Science). Josué Apolônio de Castro nasceu em 05 de setembro de 1908 na capital pernambucana50. O nascer em Recife (que chamou de mocambópolis ou de Hong- Kong das Américas) possui relação com a tristemente famosa seca de 187751, que

expulsou os avós paternos e seu próprio pai do sítio que possuíam em Cabaceiras, no sertão paraibano. Durante esta seca, o imperador D. Pedro II enviou ao Ceará uma comissão de estudos, composta basicamente por engenheiros e estes imaginaram que poderiam solucionar o problema somente através de obras de engenharia. Foi o início da política de combate às secas, que perdura até hoje52. A colocação do problema como natural, e não de ordem sócio-política, colaborou com a permanência das causas – e também para que estas se agravassem – e permitiu o surgimento da indústria da seca53.

Sua mãe era filha de criação de donos de engenho na Zona da Mata pernambucana, de modo que ele era fruto do Sertão, da semi-aridez e do gado, e da Mata, úmida e açucareira. Quando tinha quatro anos, seus pais se separaram. O pai (Manoel de Castro) era um comerciante de gado e leite, proprietário de terras em Cabaceiras (PB), com pouca instrução formal e com uma situação financeira estável. A mãe (Josefa de Castro, conhecida como Dona Moça), apesar de uma origem mais aristocrática, era pobre (na época, mulher abandonada pelo marido não possuía direitos) e conseguia algum recurso através de aulas ministradas em sua casa a filhos de operários pobres, que também só podiam pagar pouco. O fato de ser filho de pais separados, de ser filho único por parte de mãe, e de ter tido uma infância com privações e ao lado de crianças que habitavam os mocambos erguidos nos mangues

50 Será que o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) tinha razão quando afirmou (in: Que é uma coisa? Lisboa: Edição 70, 1992, p. 70) que “O ‘onde’ determina o ‘como’ do ser, porque ser significa presença.”?

51 A seca de 1877-79, conhecida inclusive pela frase de D. Pedro II de que não restaria uma jóia da Coroa enquanto um nordestino estivesse passando fome, talvez tenha sido a que, proporcionalmente, tenha causado os maiores estragos. “Calcula-se que, por causa dela, morreram cerca de 500 mil pessoas, a metade da população do semi- árido, na época. Estima-se que 150 mil morreram de inanição; 100 mil de febres, principalmente tifóide; 80 mil de varíola e 180 mil de fome, alimentação venenosa e sede.” (Garcia, 1984, p. 66)

52 Em 1907 foi criada a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, mais tarde transformada em Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) que, até 1992, havia perfurado 25.000 poços (18 mil para particulares) e construído 800 açudes, sendo 500 em propriedades particulares (cf. Veja. São Paulo: Abril, 21/04/93, p. 24-25).

53 Indústria da Seca é o nome que se dá aos influentes grupos da região que conseguem tirar proveito deste fato. Divulgando a seca de forma dramática, conseguem verbas e auxílios federais, perdão de dívidas bancárias, novos empréstimos em condições especiais, açudes em suas terras (ou obras que as beneficiam) e a possibilidade de controlar as Frentes de Trabalho ou de Emergência, inclusive para continuar garantindo o voto de cabresto.

(mais habituados a lares desfeitos e pouco preocupados com certas convenções sociais), marcaram muito a sua trajetória54. Como afirmou mais tarde, no cenário de fome do Nordeste,

“os mangues eram uma verdadeira terra de promissão que atraía homens vindos de outras áreas de mais fome ainda. Da área das secas e da área da monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem: reduzindo tudo a bagaço.” (Castro, 1983, p. 24)

Na cidade, com ilhas formadas pelos braços dos rios Capibaribe e Beberibe, passou sua infância e descobriu o tema de sua vida: a fome. “Esta foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.” (Ibidem, p. 18) Inicialmente, freqüentou a escola pública e depois foi matriculado em um educandário particular (Colégio Chateaubriand) no qual, além de integrar a lista dos piores alunos da classe, sempre ficava de castigo e era, vez por outra, humilhado por alunos mais ricos e de linhagem aristocrática. Três anos depois, mudou de escola (Instituto Carneiro Leão) e, graças à influência de um professor, o aluno rebelde se transformou em um dos melhores de sua classe.

Terminou o curso preparatório com 15 anos e, com a idade falsificada, entrou para a faculdade de Medicina em Salvador (BA). Foi cursar medicina por desejo da mãe e na Bahia por vontade do pai. Após três anos, dizendo-se desiludido com o curso que fazia, transferiu-se para outro, também de Medicina, na cidade do Rio de Janeiro. Nesta cidade, morando com uma família, diversificou suas atividades para sobreviver, e nestas se incluíam a elaboração de resumos para colegas mais ricos até artigos para jornais e revistas sobre diversos assuntos, inclusive cinema. Neste período sofreu algumas crises depressivas. Em dezembro de 1929, com vinte e um anos, concluiu o curso de Medicina55. No ano seguinte, regressou a Recife para começar sua carreira de médico.

O início de sua vida literária aconteceu em 1925, com o artigo A doutrina de Freud e a literatura moderna, em um texto rebuscado, com muitas citações em inglês, francês e espanhol. Neste ensaio, escrito três anos após a Semana de Arte Moderna56, já estavam algumas das posições57 que defendeu ao longo da vida: “a defesa da

mestiçagem como um fator positivo em nossa cultura e no desenvolvimento da sociedade brasileira, a valorização do nacional e o compromisso com o que chamará de ‘arte comprometida’.” (Silva, 1998, p.176) No Rio de Janeiro, ainda estudante,

54 Mais tarde – não obtivemos a data precisa (presumivelmente, dos 8 aos 14 anos) e os motivos exatos – passou a residir com o pai, que financiou seus estudos, inclusive o de Medicina. Muitos de seus inimigos o acusavam de esconder sua origem e de ter vergonha do pai, por este ser entregador de leite e com pouca instrução formal. Mas sempre foi apegado à mãe (1873-1956), que morou com ele no Rio de Janeiro até o seu falecimento.

55 No dia da colação de grau (28/12/1929), ele estava no México chefiando, como presidente do Centro Universitário Cuauhtemoc, uma delegação de estudantes na posse do presidente do México (Pascual Ortiz Rúbio, que, no dia da posse, foi ferido à bala; renunciou alguns dias após o incidente). Depois, deixou a caravana de estudantes e foi para os EUA, onde permaneceu por quatro meses, estagiando na Universidade de Columbia e no Medical Center de Nova Iorque.

56 “Durante um período mantém estreitas relações com os adeptos do Modernismo, como Mário de Andrade,

Oswald de Andrade e a Revista Antropofágica.” (Silva, 1998, p. 178)

57 Em um artigo escrito em 1928, intitulado México-Brasil, já demonstrava seu repúdio às teorias racistas, ainda em voga no país, e revelou algumas idéias: “... sejamos latinos e sejamos pela paz. [...] ... alcançaremos este futuro lentamente como quem busca a perfeição. Etapa por etapa. Do individualismo ao socialismo. Derrubando primeiro os preconceitos de classe. Segundo os de raça. Terceiro de nacionalidade.” (apud Silva, 1998, p. 180) Seus artigos e crônicas versavam sobre os mais variados assuntos, como análise de livros e de costumes, relato de viagens, literatura, política, teatro, pintura e cinema, pelo qual sempre foi um apaixonado (entretanto, chegou a considerar o cinema falante como um “desastre da cinematographia”, por considerar o gesto como sua única linguagem).

publicou crônicas, artigos, ensaios – sobre temas diversos – e até algumas poesias58. De volta à Recife, continuou a publicar artigos em jornais e revistas, com destaque, agora, para os contos. Narrações e contos, escritos entre 1935 e 1937, foram reunidos em seu primeiro livro de ficção, Documentário do Nordeste, publicado em 193759. São contos e crônicas, quase documentários, que possuíam como tema básico o pauperismo nordestino, sendo a maioria sobre a vida nos mangues e mocambos da capital pernambucana. Tem-se a impressão de que, neste momento, ele começou a perceber melhor que a sua cidade era a “sociedade traçada no solo”. A crueza na descrição da realidade brasileira fazia parte da tendência modernista da época, de se opor ao formalismo, aos estilos rebuscados e importados. Estes contos foram a matriz de seu único romance, Homens e caranguejos, publicado na década de 1960.

Também foi na década de 1930 que passou a se dedicar mais à carreira de médico e a publicar textos relativos à alimentação. Sua tese de docência em Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife, em 1932, intitulava-se O problema fisiológico da alimentação no Brasil; neste mesmo ano, publicou Metabolismo basal e clima60 e, menos de dois anos depois, O problema da alimentação no Brasil61. Na introdução62 deste último, discorreu sobre as mudanças na medicina – “A medicina de hoje é eminentemente objetiva ...” –, caracterizou o período dela como Fisiológico, no qual se estudava o organismo antes de se estudar a doença.

O objetivo do trabalho era o de ”sistematizar dentro das possibilidades máximas de síntese – as noções básicas que a fisiologia atual fornece para compreensão do problema alimentar” (Castro, [1933], p. 09) através da aplicação das leis gerais “que a fisiologia estabeleceu pela relação entre estes fenômenos e suas causas eficientes.” (Ibidem) Para ele, o conhecimento do problema alimentar era fundamental e “nos governos científicos onde a política se consorcia com a ciência para maior benefício social, o problema da alimentação recebe os cuidados imediatos do estado como capítulo preponderante da higiene geral.” (Ibidem, p. 10) Citou como exemplos os Estados Unidos e a Rússia [sic], representando os dois tipos antagônicos de civilização da época: “a civilização capitalista e a organização proletária”63.

58 Como esta, intitulada Poema: “Eu sonho sonhos distantes,/ em barcos ausentes, velozes, ondeantes,/ paisagens

vivas, longe, differentes./ Eu sonho sempre. Sonho! [...] Eu sinto uma saudade louca/ dos meus sonhos loucos/ que nunca se realizaram.” (Silva, 1998, p. 196)

59 Foram os seguintes contos: O despertar dos mocambos, O ciclo do caranguejo, João Paulo, Ilha do leite,

Assistência social, Solidariedade humana e A seca. Mais tarde, anexou diversos textos e estudos sobre a região Nordeste e publicou com o mesmo nome utilizado em 1937 (Castro, 1957a). Perguntado, em 1957, se tinha alguma predileção por algum de seus livros, respondeu que Documentário do Nordeste era, de todos eles, o que mais o agradava. “É a minha descoberta do mundo” e o embrião do que escreveu depois, disse ele. No final da entrevista afirmou: “Em matéria de predileção a resposta exata seria: prefiro literariamente o ‘Documentário do Nordeste’; como pesquisa e interpretação social, a ‘Geografia da fome’ e como concepção doutrinária, ou seja, trabalho de criação, ‘Geopolítica da fome’. Talvez estas predileções sejam transitórias, sejam caprichos do momento.” (O autor ..., 1957)

60 Metabolismo basal e clima. Recife: Revista Médica de Pernambuco, n. 02, 1932.

61 Possuímos a 1a edição, mas nela não consta a data. Em seu livro A alimentação brasileira à luz da Geografia

Humana (Castro, 1937), ele cita (p. 13) como data de publicação o ano de 1934. Com base em Miranda (1952), Castro (1983), Pires e Simões (1992) e Linhares (2000), optamos por 1933 (em 1934, provavelmente, ocorreu uma 2a edição).

62 O livro foi assim dividido: I- Introdução; II- Nutrição e Alimentação; III- Valor Energético do Alimento; IV- Ração Alimentar; V- Papel Regulador da Alimentação: vitaminas; VI- Fatores de Importância Secundária na Alimentação; VII- Conclusões; VIII- Tábuas; IX- Bibliografia. A obra resultou de sua tese para a docência da cátedra de Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife. O prefácio foi do Prof. Pedro Escudero, diretor do Instituto Municipal de la Nutrición, de Buenos Aires, com o qual mantinha contatos e que, segundo Magalhães (1997, p. 34), o influenciou na formulação de dietas básicas, “racionais”, para a população brasileira.

63 A partir da década seguinte, sempre que mencionava que o mundo estava dividido em dois, não se referia a Oriente e Ocidente e sim a ricos e pobres, a alimentados e subnutridos.

Realçou a falta de atenção ao problema alimentar no país – o que causava uma ignorância em relação aos princípios elementares de uma alimentação sadia64 – e ao fato de que o estabelecimento de um consumo alimentar verdadeiramente científico era importante, até como problema eugênico, pois a alimentação era “um dos fatores externos mais importantes na constituição dos biotipos vitais e que é pela seleção biotipológica que se eleva o índice vital da raça.” (Ibidem, p. 14) O papel das falhas de alimentação, “principalmente as deficiências qualitativas”, na diminuição da resistência imunitária e a importância da propaganda científica na divulgação de hábitos sadios foram destacados. Foi claro ao dizer que seu trabalho tinha problemas para estabelecer bases definitivas pela exiguidade de aparelhos de pesquisa, pelo ambiente pouco propício à investigação desinteressada, pela ausência de guias experimentados nestas questões.

“Estas bases gerais, sistematizadas pela compreensão dos princípios fundamentais de nutrição, pelo cotejo experimental da fisiologia comparada e pela aplicação dos modernos princípios de geografia viva – são bases provisórias ...” (Castro, [1933], p. 16; grifo meu).

Alguns aspectos já nos chamaram, de modo positivo, a atenção: a afirmação de que o homem do mundo tropical necessitava de padrões diferentes de alimentação, a colocação de “deficiências qualitativas” e a utilização de princípios de Geografia quando ainda tinha pouco contato com a disciplina – pois foi no mesmo ano da publicação que começou a lecionar Geografia Humana na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais de Recife (PE) – e por ter sido, o texto, escrito antes da cidadania acadêmica da disciplina no país.

Iniciou definindo nutrição e alimento65, estabelecendo as ordens de

necessidades energéticas do organismo para estabelecer o regime alimentar racional, esclarecendo metabolismo basal66 e explicando seu cálculo e suas variações conforme faixas etárias e climas, e introduzindo um novo aspecto na explicação pois, pela temperatura média, o metabolismo basal dos habitantes do Nordeste deveria ser inferior ao dos moradores do Rio de Janeiro e ocorria o contrário, sendo a razão deste fato a grande influência da umidade relativa do ar nas áreas tropicais. Definindo clima como a “tradução fisiológica de uma condição geográfica”67, citou a concepção do

prussiano Friedrich Ratzel (1844-1904)68, algumas experiências para demonstrar que “a resistência do homem ao calor é maior no clima seco do que no clima úmido” (Ibidem, p. 51) e trechos do livro Civilização e Clima (do estadunidense Ellsworth Huntington, aquele que propôs uma explicação geral da “evolução histórica” segundo as variações climáticas) sobre aumento da umidade, baixa das combustões orgânicas e diminuição do metabolismo basal. Com isto, demonstrou que a cifra do metabolismo, devido extensão territorial e variedade climática, não podia ser guiada por cálculos em

64 “Tem-se um exemplo clássico na concepção errônea, generalizada de que a carne (albumina) é um alimento mais

útil, especialmente mais ‘fortificante’ do que os açúcares e os amiláceos (hidrato de carbono).” (Castro, [1933], p. 13)

65 Citou diversos autores – entre eles, o fisiologista russo Ivan P. Pavlov (1849-1936) – mas muitos não constavam da bibliografia, o que demonstrou que foi via outras fontes. Importante foi a visão de que diversas patogenias tinham como “causas essenciais a falta de certas substâncias alimentares no regime dos pacientes.” (Castro, [1933], p. 26)

66Metabolismo basal “é a quantidade de calor que o animal produz em repouso absoluto, jejum e em neutralidade

térmica por hora e por metro quadrado de sua superfície cutânea.” (Castro, [1933], p. 35)

67 Entre parênteses, colocou: Euclides da Cunha; mas não o citou na bibliografia. Encontramos o trecho em Os

Sertões: “Um clima é como que a tradução fisiológica de uma condição geográfica.” (Cunha, 1982, p. 60; grifo meu) Não o estava definindo e sim tentando demonstrar a inexistência de um meio físico uniforme no Brasil, para explicar os tipos humanos com base em sua visão determinista.

68 “... e daí a concepção de Ratzel que restringiu este conceito de clima – às influências que derivam das

propriedades sensíveis do ar, isto é, do calor e do frio, da umidade e da secura e de como se apresentam distribuídas e combinadas estas propriedades.” (Castro, [1933], p. 50)

uma única localidade; por esta razão, apenas afirmava que, no Brasil, ela era 10% a 30% inferior às cifras de climas frios e temperados.

Estabeleceu as calorias despendidas por hora em determinadas atividades masculinas e femininas – na época, elas ainda eram marcadamente separadas por gênero –, para calcular o quanto se devia adicionar para suprir os gastos energéticos do trabalho, o que impunha o conhecimento do valor termoquímico das substâncias alimentares. No capítulo seguinte, realizou uma análise de matérias orgânicas (albumina, hidrato de carbono e gorduras) e substâncias inorgânicas (água e sais minerais, como ferro, cálcio e fósforo), e concluiu que a alimentação no Brasil deveria estabelecer uma cota rica em hidratos de carbono (produtores de energia mecânica, importantes para um país no qual a maioria vivia do trabalho manual, e com a vantagem de serem mais baratos pela abundância dos mesmos em um país agrícola), que não havia necessidade de grande ingestão de gorduras e que a alimentação adequada para o equilíbrio do organismo era a variada69.

A seguir, estudou o papel das vitaminas e foi interessante observar que, na década de 1930, ainda eram objeto de controvérsias e carentes de estudos experimentais, notadamente sobre as avitaminoses e seus efeitos. Criticou a aplicação apressada de certos conhecimentos de higiene pois, mal compreendidos, poderiam tornar uma alimentação sadia em uma carente de vitaminas70. Nas conclusões – dez

itens –, além de prescrever que as regras precisavam ser harmonizadas às possibilidades sócio-econômicas, pois as ciências “têm de se subordinar à lógica dos fatos”, terminou-as com uma afirmação importante para a época: “Muitas das conseqüências mórbidas incriminadas aos efeitos desfavoráveis do nosso clima são o resultado do pouco caso dado aos problemas da alimentação.” (Castro, [1933], p.123) Carregou este conceito por toda a sua vida.

Em geral, o texto era técnico mas já procurando adaptar as análises à realidade brasileira; ou seja, seu estudo do problema nutricional não se limitava ao aspecto fisiológico. Importante a valorização da história da Medicina e a afirmação de que nem tudo o que era válido para os habitantes das altas latitudes o era para os que se encontravam nas baixas. A bibliografia (somente autor, obra e ano) demonstrava a dificuldade de se fazer ciência no Brasil e a já presença de geógrafos em sua obra. Foram setenta e três citações, sendo somente oito em português; destes, dois livros, provavelmente, eram traduções. Número semelhante foi o de geógrafos encontrados, todos estrangeiros71. Foi uma obra de um nutrólogo com preocupações sociais, em uma área ainda incipiente no país e sem disciplina específica nos cursos

69 Nossa intenção, ao incluir estes dados e os seguintes, não foi a de verificar a veracidade das afirmações mas a de demonstrar a preocupação do autor em estabelecer padrões adequados para o Brasil, de relacioná-los com a situação econômica e cultural e com a produtividade, de propor soluções etc. Por exemplo: sobre sua análise sobre a quantidade diária de proteínas desejável para o brasileiro, interpretações atuais levam a conclusões distintas. “Embora a ação dinâmica específica das proteínas, ou seja, o calor extra produzido pela combustão metabólica, seja elevado e, portanto, em climas frios a quota diária possa ser aumentada, isto não significa que em climas tropicais deva ser reduzida. Ao contrário, dada a pouca ingestão de proteínas de alto valor biológico, como ressalta o próprio autor [Josué de Castro] , a maior incidência de infecções e verminoses e, também, o trabalho excessivo sob altas temperaturas comum no País, haveria maior exigência de proteínas na dieta.” (Magalhães, 1997, p. 35)

70 “É o caso dos discípulos de Pasteur que num zelo exagerado de esterilizar os alimentos de nocivos micróbios

destruíam os princípios vitamínicos destes alimentos.” (Castro, [1933], p. 112) Ainda acrescentou uma regra contra a carência vitamínica: a introdução na alimentação de “uma salada crua e um fruto cru, temperar a salada com suco de limão, consumir certa quantidade de manteiga fresca e acrescentar ao regime sempre uma das substâncias ricas em vitamina B.” (Ibidem, p. 113) Neste capítulo, fez uma referência aos hábitos sociais dos “supercivilizados” (Ibidem, p. 112), termo que, mais tarde, deve ter se arrependido muito de tê-lo usado.

71 Entre eles: J. Brunhes (1869-1930), E. Huntington (1876-1947), L. Febvre (1878-1956), E. Reclus (1830-1905), F. Ratzel (1844-1904), E. Semple (1863-1932) e G. Taylor (1880-1963). A bibliografia se constituía de publicações em inglês (39,7%), francês (31,5%), português (12,3%), espanhol (11%) e italiano (5,5%).

universitários72. Ainda que com pouca profundidade, as diferenças sócio-econômicas foram levadas em consideração nas prescrições alimentares, já estabelecia a existência de uma relação entre alimentação adequada e aumento da produtividade, e a concepção de uma ração básica para o trabalhador vai representar “uma forte característica da trajetória do escritor: levantar e propor medidas de intervenção para atingir a transformação do quadro de fome no País.” (Magalhães, 1997, p. 34)

O início de sua carreira médica em Recife foi difícil. Formado, tinha a promessa de um cargo na Secretaria Estadual de Educação mas, a eclosão da chamada