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“Sem o papel constitutivo da cultura nós somos monstruosidades não trabalháveis... animais incompletos ou inacabados que se completam ou acabam através da cultura”

(Clifford Geertz, apud Bruner, 1997: 22).

Exponho agora a proposta de uma pedagogia popular de Bruner, que a entende como “campo de provas” para a ação de uma psicologia cultural e popular, a partir do que ele chama de “modo narrativo” da atividade mental. Bruner salienta que “a cultura, ao mesmo tempo, forma e possibilita o funcionamento de uma mente indistintamente (grifo meu) humana (...) o que caracterizaria que a aprendizagem e o pensamento estariam sempre situados em um contexto cultural e dependentes de recursos culturais” (2001: 17).

Minha leitura de Bruner busca demonstrar que, se quisermos compreender a efetividade de uma prática educativa, devemos buscar na cultura o conjunto de códigos necessários à realização dessa prática. Há um conjunto de “teorias intuitivas cotidianas (...) teorias leigas (...) que afetam constantemente nossas interações com os outros” (id.: 54). Essas teorias presentes na cultura são chamadas de psicologia popular: “não trata apenas da forma como a mente funciona aqui e agora (...) mas de como somos guiados em nossa interação corriqueira (...) [e também] na atividade de ajudar as crianças a aprender sobre o mundo por noções de pedagogia popular” (idem).

Neste sentido, na cultura se faz presente como um locus de atuação e interação das significações particulares e comunitárias apropriadas à vivência e ao entendimento da cultura. Qualquer proposta pedagógica coerente tem que levar em consideração as “teorias da psicologia e pedagogia populares [tanto] de professores (...) como também dos alunos” (id.: 55).

O que Bruner sugere é que a atividade de ensinar “baseia-se inevitavelmente (grifo meu) em noções sobre a natureza da mente de quem aprende” (idem). É neste sentido que, ao se problematizar a educação, se deveria levar em conta “as teorias populares que aqueles que participam do processo de ensino e aprendizagem já possuem”(ibid).

A psicologia cultural pressupõe que “a atividade mental humana não ocorre sozinha e não é realizada sem assistência, mesmo quando ocorre ‘dentro da cabeça’”(id.: VIII). A psicologia cultural converte-se assim no campo de provas da atividade pedagógica. Como lembra Bruner:

“a educação não ocorre apenas nas salas de aula, mas em torno da mesa do jantar quando os membros da família tentam extrair um sentido conjunto do

que aconteceu durante aquele dia, ou quando as crianças tentam se ajudar para extrair sentido do mundo adulto, ou quando um mestre e um aprendiz interagem no trabalho. Portanto, não há nada mais apropriado do que a prática educacional para se testar a psicologia cultural.” (Bruner, 2001, IX)

Sendo a educação uma prática que extrapola os limites do muro da escola - para Bruner inclusive isto é uma condição fundamental ao ato educativo -, estando presente perenemente em nossas trocas sociais, numa “partilha mútua de conhecimentos e idéias” (idem), há que se buscar uma melhor compreensão do modo como essa cultura é transmitida cotidianamente. Esse modo, como ele sugere, é o conhecimento narrativo como “um modo de pensamento e uma expressão da visão de mundo de uma cultura” (ibid).

Nossa interação social se expressa em partilha de significados, seja em gestos, hábitos ou palavras, que são modos de narrar nossa atividade mental “não só ativa por natureza, mas também na busca pelo diálogo e discurso com outras mentes, também ativas (...) é por meio deste diálogo que passamos a conhecer o outro e seus pontos de vistas, suas histórias” (id.: 94).

Ainda para ilustrar este elo narrativo, quanto ao ato de construir histórias Bruner lembra que as fazemos de modo muito parecido tanto no chamado mundo real como nas histórias fictícias:

“Simplesmente não sabemos, e nunca saberemos, se aprendemos sobre a narrativa a partir da vida ou sobre a vida a partir da narrativa: provavelmente ambos. Mas ninguém questiona que aprender as sutilezas da narrativa é uma das principais maneiras de se pensar sobre a vida...” (2001: 95)

A atividade narrativa é assim um modo de aproximação à vida, não um modo de estabelecer a verdade sobre ela, mas uma verossimilhança e “uma preocupação com a condição humana”, como diz Bruner, lembrando Paul Ricoeur (1997: 15).

7.1) Educação como foro de cultura

Chegamos finalmente à temática educativa. Meu percurso partiu da apresentação de uma discussão sobre como as mentes funcionam e possibilitam uma aprendizagem significativa, para chegar ao papel que a narrativa ocupa em uma cultura, enquanto forma de produzir a vida e organizar a experiência humana com o mundo e consigo mesmo. Em todo esse percurso a temática cultural se fez presente enquanto o lugar onde a negociação

de significados possíveis à leituras de mundo podem se efetivar. Como lembra Stuart Hall24, “uma cultura é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (2003: 50). A cultura é eminentemente dialógica, discursiva e narrativa portanto, o que dá a ela um caráter de foro perpétuo de reelaboração dos significados e valores simbólicos do mundo. A cultura está sempre “posta na mesa” de discussões na própria cultura; mesmo que não seja o tema em evidência, é inerente a ela o fato de ser negociável. E como lembra Bruner, a cultura “... se encontra em um constante processo de ser recriada à medida que é interpretada e renegociada por seus membros...” (1998: 129).

Se a educação que pensamos aqui é um “ato de significação” ocorrendo na e através da cultura, que tem em vista a onipresença de uma psicologia cultural “popular” como palco das negociações e construções de significado para si mesmos, tal educação só pode se dar enquanto um foro da própria cultura para com seus significados. E não é outra coisa o que se sucede, entendendo-se que a educação está presente em várias instâncias culturais, além mesmo da esfera institucional. No tocante à instituição, o maior problema ainda é o conflito com antigas tradições da pedagogia, que consideravam a educação como um processo de transmissão de conhecimentos; neste sentido Bruner nos lembra que “a pedagogia resultante foi uma visão de ensino como cirurgia, supressão, substituição, preenchimento de deficiência ou uma mistura de todos” (id.: 130). Dessa visão da cultura como foro decorre, que introduzir a cultura pela educação, “se é para preparar o jovem para a vida como ela é, também deveria compartilhar do espírito de um foro, da negociação, da recriação de significado” (idem). Assim, a cultura, sendo troca e comunicação, sugere que uma educação que se viabilize para lidar com suas questões, se dê de modo inerentemente cultural, ou seja, de modo negociável e dialógico.

Bruner pretende uma concepção de educação que se estenda além da escola, sendo mesmo um valor inerente que perpassa toda a cultura em suas várias instâncias: família, grupos, comunidades, momentos de troca, etc. Ou seja, a educação é um valor que permeia toda a cultura, indo-se buscar nas pessoas esses valores e leituras nela presentes; o que se constituiria assim numa pedagogia popular cultural, a partir de uma psicologia popular cultural. “A cultura, ao mesmo tempo, forma e possibilita o funcionamento de uma mente indistintamente humana (...) estando a aprendizagem e o pensamento sempre situados em um contexto cultural e dependentes de recursos culturais” (ibid: 17).

Bruner traça então as diretrizes à compreensão do que seria uma Pedagogia Popular a partir da Psicologia Popular. Ele propõe que haja uma correlação entre os problemas de que lida a educação como “campo de provas” para a psicologia cultural e desta para com a educação; exatamente porque é na educação que se gestam as questões relativas à psicologia da cultura. O que está em questão é a existência de uma pedagogia popular intrínseca à própria cultura; há um aprender que é inerente ao processo cultural enquanto um foro de saberes próprios aos membros da cultura. Esta pedagogia popular cultural é um conjunto de recursos presentes na cultura, necessários ao entendimento do que e como as mentes pensam e elaboram seus significados. Esta pedagogia popular seria responsável mesmo não só pelo modo como a psicologia popular elabora sua aprendizagem, mas também pelo modo como os indivíduos na cultura aprendem dela, e como se relacionam com estes saberes em si mesmos. “Só é possível entender uma atividade mental quando se leva em consideração o ambiente cultural e seus recursos, que são as coisas que dão à mente sua forma e sua abrangência” (id.: X). Deste modo, sendo a mente forjada nos termos da cultura, é próprio ao modo de pensar a existência de um modo pedagógico apropriado à aprendizagem; como que definindo uma forma epistêmica própria à cultura e ao indivíduo. A idéia de uma “cultura da educação”, em Bruner, surge justamente por existir um processo de correlação entre a prática educativa e a psicologia cultural, que se dá “por ser a mente humana constituída e realizada a partir da cultura” (id.:15).

Gostaria de apresentar o conjunto de preceitos que Bruner sugere para que compreendamos o fenômeno educativo a partir de uma perspectiva “psicocultural”. Se o fenômeno educativo emerge da cultura como sendo seu aspecto formativo, compreender como a psicologia cultural gera estes saberes é proporcionar à pedagogia um contexto mais amplo.