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“O tempo só se torna tempo humano na medida em que é tempo contado (narrado)... o real só atinge sua plena significação quando se torna uma condição da existência temporal”14

Paul Ricoeur

Aproveitando esta discussão sobre cultura e narrativa, introduzida pelas idéias de Walter Benjamin, quero me aproximar um pouco da perspectiva oferecida por Paul Ricoeur (1994) que nos permite uma melhor compreensão sobre alguns aspectos da narrativa na sua condição de mediação entre a cultura e seus membros.

Para uma melhor compreensão do percurso oferecido por Paul Ricoeur, seria necessário um estudo sobre a semiótica de base estruturalista, como lembra Girardello (1998). Ricoeur realiza seu trabalho na forma de um diálogo crítico com esta tradição, que tem entre seus representantes Vladimir Propp, Ferdinand de Saussure e Algirdas-J. Greimas. Como não é nosso objetivo aqui destrinchar o léxico narrativo em toda sua extensão, sugiro que o leitor mais cuidadoso consulte a obra citada15. No entanto, é válido observar pelo menos que nela estão presentes alguns recursos para a efetivação de uma “análise narrativa da realidade”, como aprofundaremos em Bruner no próximo capítulo. Propp, por exemplo, nas análises sobre estruturas de histórias populares (morfologia do conto russo), dá ao conceito de função o papel principal como instrumento de análise das

14 O texto original desta citação está em Tempo e Narrativa - Tomo I, 1994. Neste caso a primeira parte, sutilmente reescrita, foi retirada de Biblioterapia de Marc-Alain Ouaknin (1996).

ações dos personagens de uma fábula; a partir disto, define como sendo uma seqüência o encadeamento das diversas funções que compreendem as ações das personagens. Greimas, ao tratar das narrativas folclóricas, míticas e literárias, compreende o conceito de narrativa “como um princípio organizador generalizado” (Girardello, 1998: 48). Esta última observação, particularmente, tem uma importância para este trabalho, pois podemos aproximá-la da proposta de Bruner de ter na narrativa um modo por excelência de organização da experiência humana, como veremos mais adiante.

A partir destes comentários temos um bom ponto de partida para nos alçarmos à compreensão das narrativas enquanto estruturas presentes também na cultura, a partir das referências do trabalho de Paul Ricoeur.

Ricoeur concorda com o modelo estrutural de Greimas mas critica a ausência nele de temporalidade. Como lembra Girardello, para Ricoeur, “é impossível reduzir a temporalidade a um mero resíduo da análise narrativa” (idem: 50). Sua grande contribuição à compreensão da narrativa diz respeito à importância dada ao tempo na sua caracterização da ordem do significado. É clássica sua definição de “tempo humanamente relevante”.

“...existe entre a atividade de narrar e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental, mas que apresenta uma forma de necessidade transcultural: o tempo se torna tempo humano na medida em que é articulado de modo narrativo, e o real atinge sua plena significação quando se torna uma condição da existência temporal” (1984: 85)

O ato de narrar evoca a temporalidade inerente à configuração das ações (intriga), trazendo a percepção do tempo para a ordem do significado da experiência humana. Neste sentido é que a narrativa tem no “caráter temporal da experiência humana” (id.: 15) o grande desafio, tanto à sua identidade estrutural como à exigência de verdade de toda obra narrativa. Como dirá Ricoeur, “a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (ibid.).

É fundamental esta compreensão da relação existente entre o caráter temporal da experiência humana e o ato narrativo. A compreensão da ordem do significado, que para nós é um dos objetivos principais, se dá justamente pela apreensão da função que o tempo tem na compreensão dos eventos humanos. Como diz Ricoeur, “a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal” (id.: 85). Tanto no tempo da “abstrata” organização do pensamento, como na “concreta” experiência empírica, a ordem do significado se remete diretamente à ordem do enlace dos eventos, que se

articula no narrar. Podemos melhor desenvolver esta problemática a partir do que Ricoeur chama de inteligência narrativa.

Distinta da esquematização do conto proposta por Propp, a inteligência narrativa se refere ao movimento entre a produção e a recepção do narrar. Partindo das noções de mímeses e de tessitura da intriga, presentes na poética de Aristóteles16, Ricoeur desdobra a “lógica mimética” em três momentos que representam a mediação entre tempo e narrativa. Deste modo, sua definição de inteligência narrativa, caracteriza uma atividade de criação, a mimese é uma imitação criadora. A Mimese I se distingue pelos elementos presentes no imaginário que ainda não se configuraram “narrativamente”. É o momento da pré-figuração, composto pelas histórias “não-ditas” e “não-narradas” ou mesmo reprimidas como se caracteriza o processo psicanalítico. São histórias potenciais, que precedem a criação e podem emergir a qualquer momento numa nova trama. Mimese II é a efetivação do processo do narrar; quando os elementos buscados na subjetividade se configuram na criação da obra e são transmitidos ao outro e ao mundo. Neste momento é que se tramam os elementos que compõem a narrativa. A própria inteligibilidade deste momento está no seu poder de mediação em conduzir os elementos narráveis de seus “autores” aos “leitores”. Deste modo, para Ricoeur, Mimese II tem uma função hermenêutica. Para o interesse deste estudo, podemos compreendê-la como o momento em que a cultura publicamente “negocia” seus saberes, como veremos com mais detalhes quando examinarmos os “universais” de Bruner (capítulo II). Por fim, a Mimese III é o momento da recepção da atividade de narrar, no nível portanto do “leitor”. É o ato de leitura que efetuamos ao ouvir as histórias. Caracteriza-se por ser um momento de “atualização” da trama em uma outra subjetividade que a recebe. É a refiguração dos elementos da narrativa, atualizados numa nova leitura, onde a subjetividade se efetiva ao receber “novos dados” do mundo.

A inteligência narrativa é portanto uma atividade. Ela deflagra a existência de um poder criador na imaginação humana e na capacidade de estabelecer uma ordem aos eventos narráveis. Como lembra Girardello, Ricoeur “atribui essa ordem à imaginação produtora; como ordem do imaginário, teria uma dimensão temporal irredutível” (Girardello: 53). A compreensão da ordem do significado inerente ao processo narrativo se

16 A grosso modo, Tempo e Narrativa trata do “abismo” existente entre as análises de tempo presentes em Santo Agostinho e Aristóteles. Ricoeur busca, com “seus próprios riscos”, articular a análise agostiniana sobre o tempo e a análise da intriga empreendida por Aristóteles na Poética. Na Poética, lembra Ricoeur, as lógicas mimética e mítica já são definidas como uma inteligência. A discussão empreendida nos dois

dá pela apreensão da dimensão temporal presente na organização dos eventos que compõem as tramas das histórias. Embora as análises de Ricoeur se dêem sobretudo em torno das narrativas de ficção, podemos entender que a própria narrativa ficcional é imbuída de uma condição humana. Aquele que narra e que atribui a experiência temporal à narrativa traz consigo a carga da temporalidade humana (relevante) para a coesão de uma história. Em outras palavras, o tempo humano é a base exemplar com que configuramos a tessitura de nossas intrigas com suas próprias temporalidades.

Ricoeur se refere ainda às histórias que não são ditas mas que de alguma forma existem, seja no imaginário humano, ou na cultura, em algum “lugar de segredo”, que alimentam nossas possibilidades narrativas. Como lembra Girardello, “para Ricoeur, existe uma relação entre esse tipo de narrativa e as histórias não ditas de nossas vidas” (1998: 56). São as “histórias potenciais” que Ricoeur define como existentes nesse “espaço de segredo” da vida humana. Ele se pergunta se não existiria "uma afinidade oculta entre o segredo de onde a história emerge e o segredo ao qual a história retorna" (1994: 117). Penso que esta afinidade oculta remete diretamente ao aspecto criativo que a atividade mimética nos ensina. Mimese I é a pré-elaboração da narrativa ainda não contada, que se concluirá em mimese III, numa reconfiguração (o segredo) aonde a história retorna.

O livro de Marc-Alain Ouaknin, Biblioterapia (1996), apoiando-se em Ricoeur, traz uma belíssima apresentação da importância das histórias de vida compreendidas como narrativas. O livro trabalha o aspecto terapêutico gerado pela atividade de contar, seja uma ficção ou mesmo a história pessoal. Ouaknin compreende que Mimeses I refere-se diretamente à vida pessoal. Seus eventos e sua história ainda não contada precisam ser narrados para efetivar seu lugar no mundo, permitindo à pessoa que se perceba como autora de sua própria história. Para ele toda biografia é um produto existencial, é uma “escrita da vida (...) é uma vida (bio) que precisa de uma escrita (grafia) (...) que precisa da narrativa para tornar-se tempo de vida” (1996: 236). A consecução da narrativa pessoal como representação de uma vida promove à vida uma textualização, traz um algo mais para a vida. Ouaknin lembra que Ricoeur tem esta preocupação da identificação com a experiência cotidiana na qual não percebemos “o encadeamento dos episódios de nossa vida, das histórias (ainda) não contadas” (Apud Ouaknin, 236). Para Ricoeur, é incoerente falar em “histórias não contadas”, visto que há na própria experiência cotidiana, “uma narratividade (...) que constitui um pedido de narrativa” (id.). Como complementa primeiros capítulos do Tomo I de “Tempo e Narrativa” traz melhor esta definição.

Ouaknin, “a dialética da vida e da narrativa está funcionando constantemente... a vida é apenas uma pré-história, uma narrativa potencial, um conjunto de gestos e de fatos que esperam uma “textualização” (id.). Há assim, além de uma necessidade da vida em contar- se, trata-se também de um direito inerente à existência, o de ter a vida transformada em uma história coerente. Toda vida “possui suficientemente importância e interesse para se tornar narrativa. Toda vida é uma história potencial. O direito à narrativa é um direito elementar do humano” (id.: 237). Na sua proposta, a biblioterapia se estende até mimeses III, onde o objetivo mesmo da terapia ocorre. É o encontro do leitor com a história e com a reconfiguração que lhe é possibilitada, reconfiguração de sua própria vida.

Creio que temos até aqui elementos suficientes para compreender a narrativa, seu lugar e sua necessidade para a existência humana, e assim sua inteligência em promover os entendimentos possíveis ao humano. A inteligência narrativa nos mostra que a ordem da vida e a ordem do significado dependem uma da outra. Ouaknin, lembrando Ricoeur, diz que a mímese é uma dialética onde “um arco hermenêutico se eleva da vida, atravessa a obra literária e retorna à vida” (Apud Ouaknin, 246).

Vamos acompanhar agora uma discussão que estende a preocupação com a narrativa para além dos estudos de literatura e linguagem, definindo melhor sua aplicação no trabalho em torno da ordem do significado, nas humanidades como um todo.