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experiência humana que possibilita a compreensão da experiência humana do tempo, bem como da ordem do significado presente na cultura, através da expressão da realidade que se dá pela linguagem. Jobim e Souza (1997), ao tratar das concepções de linguagem em Bakhtin, Vygotsky e Benjamin, observa que as ciências humanas devem se centrar numa concepção de linguagem que seja capaz de ocupar um lugar de destaque na ressignificação do sentido da vida humana. Polkinghorne corrobora esta perspectiva, salientando o papel fundamental da narrativa como ferramenta de trabalho dos profissionais da área de humanas. A narrativa se dá “linguisticamente” e, como observa Jobim e Souza, “a linguagem é o espaço de recuperação do sujeito como ser histórico e social” (1997: 93). A narrativa, neste sentido, permite-nos uma compreensão da pessoa humana como ser temporal e sócio-cultural, mas com a singularidade característica da história pessoal de cada um.

Como veremos a partir de Bruner, a narrativa compreendida como um modo de pensamento possibilita a transmissão cultural de significados entre os membros da cultura. Polkinghorne se aproxima da definição de Bruner quanto à onipresença das histórias em nossas vidas. Elas preenchem nossos ambientes sociais e culturais, estão nos relatos que efetuamos para nós próprios e para outros acerca de nossas ações passadas, estão nas construções imaginativas que realizamos, nos diálogos que realizamos constantemente e mesmo na mídia, na televisão, na escrita, nos contos, no teatro, na escola e em nosso cotidiano de modo geral. Para Polkinghorne, ainda, a narrativa permite que se compreenda a existência humana “tal qual ela é vivida, experienciada, e interpretada pela pessoa humana (...) como uma forma expressiva de existência... multi-estratificada, organizada de

forma hermenêutica, e abundantemente significativa...” (Polkinghorne, 1988: 111).

É importante ainda pontuar a crítica que Polkinghorne faz da experiência humana durante o iluminismo, na qual se considera o mundo como uma realidade separada do homem. A representação do mundo na experiência humana original é dada em termos de uma “expressividade hermenêutica” que inclui a existência humana dentro dela. Diz Polkinghorne:

“a experiência é parte do próprio mundo e é concebida como o mundo dobrando-se (refletindo-se) sobre si mesmo (folding back) provendo uma inteligibilidade por meio da qual ele pode manifestar-se e, assim, tornar-se significativo. O mundo inclui, dentro de sua existência, processos de auto- reflexão por meio dos quais ele pode manifestar-se a si mesmo”. (1988: 119)

Isto nos remete (pelo menos) à compreensão que vimos em Benjamin sobre o papel da linguagem para o homem, é através dela que ele “nomeia” o mundo. O ser humano seria portanto, aquela parte do mundo (que para Benjamin seria a própria natureza) responsável por alcançar uma compreensão do próprio mundo e de si-mesmo nele. De certo modo é isso o que Polkinghorne observa ao dizer que “na experiência humana, as estruturas hermenêutica [narrativa] e linguística são compreendidas como sendo aquele aspecto da realidade que dá significação (meaning) à auto-manifestação da realidade” (id.). Cabe ao ser humano portanto a compreensão de seu meio através da compreensão dos significados que ele (re)produz nas negociações culturais de que participa. O modo para alcançar este entendimento, como estamos vendo, se dá pelo uso e compreensão do papel que a narrativa tem na constituição de nossas próprias formulações sobre o mundo e sobre nós-mesmos.

Para melhor compreendermos esta relação entre compreensão e narrativa, é importante lembrarmos aqui do papel da linguagem sugerido por Bakhtin. Nela, a força propulsora que constitui nossa compreensão se dá justamente na relação do homem com o outro, através daquele “espaço” criativo que surge no limiar entre duas consciências. Através da interação (relação) de duas consciências, o significado surge no intervalo criado entre o dito e o não-dito, numa espécie de “‘fronteira flutuante’, demarcando esse limiar a partir do qual a palavra-potencial emerge em palavra”, como lembra Girardello (1998). Para Bakhtin o não-dito se remete diretamente ao inconsciente, sua força criativa age justamente neste espaço de criação (dialógica) gerado entre duas consciências.

Podemos ainda compreender o não-dito a partir da noção de Ricoeur de mímese I, o local onde se efetua a pré-figuração das histórias ainda não contadas. De qualquer modo, a narrativa trabalha com este limiar, que é também um limiar de criação. Seja promovendo

que uma história ainda não dita ganhe sua significação e seu lugar no mundo e na cultura, seja promovendo que duas consciências permitam que um novo significado surja a partir da interação ocorrida.

No tocante à educação, ficou saliente que abordagens efetuadas no formato de história possibilitam que o significado seja colocado no centro das problemáticas tratadas e que o sujeito, como veremos em Bruner, adquira um comprometimento com sua prática educativa, dada a centralidade que o sentido de self (a noção de si-mesmo) tem para a educação. O formato de histórias, como lembra Egan, “é mais condizente à estrutura psíquica humana (...) a compreensão de cada um se dá de acordo com a sua particularidade” (Egan, op.cit., 47). Isto enfatiza o poder da narrativa no acesso à singularidade de cada indivíduo, o que Egan chama de “bagagem cognitiva”.

Como veremos no próximo capítulo, Bruner enfatiza a centralidade do conceito de self, ou da noção que cada um possuí sobre si-mesmo, para a efetivação dos processos culturais e da própria educação entendida como um foro da cultura. A noção de self nos interessa aqui por possibilitar a compreensão da singularidade de cada pessoa envolvida no processo educativo. A centralidade do conceito de self para a narrativa indica a existência de um comprometimento do sujeito para com a atividade narrativa. Isto também é o que aparece nas implicações que Benjamin e de outro modo Ricoeur nos oferecem quanto a importância do narrar. O primeiro nos mostra a importância do narrar para a comunicação das experiências de uma vida e de uma cultura. Ricoeur, por seu lado, enfatiza que a experiência do narrar é o que possibilita nossa compreensão da experiência de tempo. Tempo, narrativa e a noção de si-mesmo estão tão intimamente referenciados que torna-se difícil distinguir se aprendemos sobre a vida e sobre nós mesmos a partir da história ou aprendemos sobre a história e sobre nós mesmos a partir da vida, lembrando o dilema citado por Bruner. No próximo capítulo vamos ainda definir pontualmente as possibilidades de compreensão do conceito de self e sua relação com a narrativa e a educação.

Ainda no tocante à educação, os exemplos apresentados indicam a gama de possibilidades de interação e aprendizagem que as histórias permitem. Particularmente, o trabalho em torno das narrativas pessoais, como vimos, pode despertar novas leituras a respeito da realidade e também sobre as “narrativas totalizantes” que permeiam nossa vida em uma cultura. Pontualmente, gostaria de enfatizar que além da promoção de “novas leituras” e de “mais histórias”, como alguns autores sugerem, o objetivo aqui neste

trabalho está antes na compreensão das histórias como um espaço de (re)criação do sujeito. Como veremos no capítulo a seguir, a partir das categorias que Bruner nos apresenta para uma análise narrativa da realidade (capítulo 2.6), o comprometimento entre a formulação de uma história, a noção de mundo que se constrói e a centralidade da noção de si-mesmo (self) como autor de uma narrativa, são elementos básicos à compreensão da condição de negociação de significados existentes em uma cultura e do próprio modo como pensamos. Vamos então nos encaminhar para estas discussões.

CAPÍTULO II

O trabalho com narrativas em Jerome Bruner: (referencial teórico)

“Simplesmente não sabemos, e nunca saberemos, se aprendemos sobre a narrativa a partir da vida ou sobre a vida a partir da narrativa: provavelmente ambos. Mas ninguém questiona que aprender as sutilezas da narrativa é uma das principais maneiras de se pensar sobre a vida...”

(Jerome Bruner, 2001: 95)