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Da cumplicidade entre as crianças: segunda lição de afeto

4. NAS PAISAGENS DE LUANDA, A MISSÃO E O SEGREDO DAS CRIANÇAS

4.3 O espaço escolar e a construção do futuro

4.3.3 Da cumplicidade entre as crianças: segunda lição de afeto

Se em Bom dia camaradas ganham relevo os episódios que envolvem a coletividade do grupo de crianças frente à ameaça do Caixão Vazio e a outros mujimbos relacionados ao cotidiano da escola, em Os da minha rua, o enfoque dado ao espaço–tempo das aulas e das frequências recai sobre a individualidade do próprio narrador e de alguns colegas mais próximos, como o Bruno, cuja existência real na infância de Ondjaki recebe mais de uma homenagem na trilogia anos 80.

“Os calções verdes do Bruno” é um conto extremamente singelo, como são em sua maioria, as estórias da coletânea. Em sua leitura, vale atentar para a leveza com que o narrador constrói simbologias das relações de amizade que se estabelecem na escola, demonstrando uma aguçada sensibilidade para a dor do outro. Por meio de sua linguagem bem humorada e poética, Ndalu descreve a transformação do amigo Bruno, que havia trocado a “antiga blusa vermelha” por “uma camisa de manga curta esverdeada e flores brancas tipo Hawai”, substituído os calções “verdes justos com duas barras brancas de lado” e estava extraordinariamente limpo: “as orelhas não tinham cera, as unhas cortadas e limpas, o cabelo lavado e cheio de gel” e os óculos “tortos mas limpos”. Além disso, “estava mais sério e mais triste.” (ONDJAKI, 2007, p. 101).

A razão para a mudança, de acordo com o mujimbo que já circulava nos corredores da escola é que ele estava apaixonado pela Ró (Romina) e havia escrito uma carta para ela, “secretamente” mostrada a Ndalu, enquanto o Bruno “tinha a cara afundada nos braços”: “Romina: nos últimos dias já não consigo lanchar pão com marmelada e manteiga, e mesmo

que a minha mãe faça batatas fritas nunca tenho apetite de comer. Ainda por cima de noite só sonho com os caracóis dos teus cabelos tipo cacho de uva...” (ONDJAKI, 2007, p. 102).

Surpreso pela beleza da carta, e solidário ao Bruno, por sua vez, o narrador anota que era “uma das cartas de amor mais bonitas” que leria em sua vida. Entretanto, os dois sofrem com a insensibilidade da professora diante do conhecimento da correspondência:

A camarada professora era muito má. Veio a correr e riu-se porque eu tinha lágrimas nos olhos. Pegou na carta e rasgou tudo em pedacinhos tão pequenos como as minhas lágrimas e as do Bruno. A Romina desconfiou de alguma coisa, porque também tinha os olhos molhados. (ONDJAKI, 2007, p. 103)

No dia seguinte, “com um riso que era também de tristeza e uma espécie de saudade” o Bruno volta com as roupas e o comportamento de sempre. O conto termina com a imagem de “uma contraluz amarela do meio-dia” iluminando “a cara bonita da Romina e os olhos dela molhados com lágrimas de ternura. E o Bruno também.” (ONDJAKI, 2007, p. 103)

Muito semelhante ao que se passa com o Bruno, ocorre ao próprio Ndalu, no breve “Bilhete com foguetão”. O narrador relata o sentimento especial que surge “muito de repente” pela Petra, “no tempo da terceira classe”, e tira sua capacidade de prestar atenção à aula:

A Petra tinha o tom da pele escuro, bem bronzeado, e vinha com umas roupas bem bonitas que se fosse a minha mãe não me deixava vestir assim num dia normal de aulas. Uma mochila toda colorida como quase ninguém tinha naquela época. Então eu acho que tudo aconteceu em poucos minutos, assim muito de repente. (ONDJAKI, 2007, p. 85)

Movido por esse repentino interesse, ele recusa o convite dos amigos para jogar futebol, mesmo quando lhe prometem “posição de avançado”, e passa o intervalo inteiro tentando escrever um bilhete para a Petra. Mesmo hesitante, ele o envia pela Marisa, mas esta, num gesto de deslealdade, entrega-o à delegada de turma: “De repente me deu uma tristeza enorme quando a vi passar além da Petra e entregar o papel já meio aberto à delegada de turma” (ONDJAKI, 2007, p. 86-87), que lê a mensagem diante de toda a classe.

Com a cabeça escondida entre os braços, o menino aflige-se pensando em como enfrentará os rapazes após ouvirem o que ele havia escrito à Petra: que ela tinha “pele tipo mousse de chocolate e uns olhos que, de longe, pareciam duas borboletas quietas e brilhantes”. (ONDJAKI, 2007, p. 87) A delicadeza e o lirismo da declaração contrastam com a insensibilidade da delegada, que ri alto depois de ler e amarrotar o bilhete, ilustrado com o desenho de “um pequeno foguetão desajeitado” porque “fazer flores também já era de mais (sic).” (ONDJAKI, 2007, p. 87). Para alívio da personagem, o desfecho dá-se sem complicações, pois os rapazes “foram bem simpáticos” e não fizeram estigas.

Essas duas estórias ilustram a habilidade de Ondjaki em construir enredos poéticos a partir de fatos corriqueiros, à maneira de um cronista. A prevalência das imagens – os calções verdes, a roupa limpa, a cara escondida nos braços, as lágrimas nos olhos dos três colegas e a

contraluz – cria uma atmosfera que se sobrepõe à ação, resumida à percepção da mudança do garoto, enquanto que a subjetividade das personagens, seu universo interior, é posta em primeiro plano, numa linguagem que não se preocupa em dar movimento, mas sentimento ao texto. Como diz Candido (1992, p. 13), uma linguagem que, “na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado (...)”, que, no caso de Ndalu, pode corresponder ao altruísmo e à amizade.

É também de forma despretensiosa que o narrador revela, nesses contos, princípios morais e ideológicos em que se fundamenta a escola angolana do seu tempo de criança, denunciando as interdições impostas pela instituição escolar, guardiã de uma ordem que ignora a subjetividade e a espontaneidade das trocas afetivas em nome de uma normatização hierárquica capaz de colocar em posições antagônicas as próprias crianças entre si.

O comportamento da delegada, que reproduz o sistema hierárquico e disciplinar da instituição, estabelece uma espécie de “violência simbólica” (BOURDIEU, 2002) por parte da cultura escolar, que desestimula a livre expressão de afetos. Não só os corpos e o comportamento, mas também os sentimentos dos alunos são controlados por um disciplinamento centrado na obediência e na punição. E, como constata Foucault (1996), uma autêntica forma de repressão ocorre pela censura a qualquer manifestação de sexualidade.

Em consequência disso, o Ndalu de Os da minha rua, em relação ao de Bom dia

camaradas, mostra-se mais reflexivo, logo, mais sensível ao significado afetivo da

camaradagem desenvolvida durante a partilha do espaço escolar.

Nesse mesmo espaço, ele vivencia momentos de separação de alguns colegas da “sétima classe”. Enquanto espera a chegada dos colegas para a reunião de despedida, ele olha a escola vazia e imagina, como num filme, a vivacidade característica do lugar:

Como num filme, sempre me acontecia isso: eu olhava as coisas e imaginava uma música triste; depois quase conseguia ver os espaços vazios encherem-se de pessoas que fizeram parte da minha infância. De repente um jogo de futebol podia iniciar ali, a bola e tudo em câmara lenta, um dia eu vou a um médico porque eu devo ter esse problema de sempre imaginar as coisas em câmara lenta e ter vergonha de me dar uma vontade de lágrimas ali ao pé dos meus amigos. A escola enchia-se de crianças e até de professores, pessoas que tinham sido da minha segunda classe, da terceira, até lembrava de repente o exame da quarta classe com o texto “Oriana e o peixe”. Quando alguém me tocava no ombro, as imagens todas desapareciam, o mundo ganhava cores reais, sons fortes e a poeira também.

– Tás a ouvir?! – alguém dizia.

vazia e, sem ninguém dizer nada, todos tínhamos medo daquela sensação. O fim da sétima classe: a incerteza sobre quem ainda íamos encontrar no ano seguinte. (ONDJAKI, 2007, p. 119-120)

A cena indica as inclinações do narrador para a ficcionalização de fatos e experiências pessoais, algo que, dentro do caráter autobiográfico do texto ondjakiano, encontra equivalência no próprio estilo narrativo de Os da minha rua: imagético, com prevalência da sensorialidade, sobretudo visual, na composição de cenários e da contemplação que se associa ao traço reflexivo-psicológico da escrita de gêneros memorialísticos.

Ademais, a representação de um narrador com tendências à recriação estética do mundo fortalece o vínculo estabelecido entre o menino Ndalu e o mundo vivido. Nessa rememoração, os espaços e as pessoas são os elementos centrais do universo imaginado. Porquanto a cena não seja passível de ocorrer de forma real, pode-se imaginar o texto literário como esse espaço vazio que o autor preenche com pessoas da sua infância.

Precisamente por esse aspecto – a imaginação poética – tornam-se pertinentes as asserções de Gaston Bachelard a respeito do onirismo que envolve a percepção infantil do mundo, a qual, semelhante à do artista da palavra, vale-se de uma memória inventada. Mesmo estando acompanhando de amigos, o narrador afasta-se do momento presente e passa a habitar um momento outro, de recordação solitária, vivenciando o que Bachelard (2006) denomina “devaneio”, essa espécie de sonho acordado que proporciona aos indivíduos um mergulho em si mesmo. Por meio da imaginação criadora, a escola deixa de ser o lugar das temidas separações e passa a ser novamente um lugar povoado, onde o menino reencontra uma parcela de sua infância feliz, pois “temos a possibilidade de reencontrá-la ao na própria vida dos nossos devaneios”. (BACHELARD, 2006, p. 94)

O penúltimo conto do livro, “Nós choramos pelo Cão Tinhoso”, é um conto- depoimento que narra a leitura realizada pela turma da “oitava classe, na aula de português” de “um texto muito conhecido em Luanda” (ONDJAKI, 2007, p. 131). Trata-se de “Nós matamos o Cão Tinhoso”, integrante do livro homônimo do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana, publicado em 1964. Além de um retrato sensível da emoção coletiva que arrebata as crianças, a estória é uma homenagem ao colega escritor, constante entre as leituras favoritas de Ondjaki desde a adolescência.

Em virtude da correspondência entre os elementos espaciais e os sentimentos experimentados pelo protagonista durante a leitura realizada na sala de aula, convém recordar- se aqui um dos conceitos utilizados por Lins na classificação dos tipos de ambientação. Ao

efetuar distinções entre termos que se inter-relacionam com o campo semântico do espaço, o crítico brasileiro define a atmosfera da seguinte forma:

(...) invariavelmente de caráter abstrato – de angústia, de alegria, de exaltação, de violência etc. –, consiste em algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas não decorre necessariamente do espaço, embora surja com frequência como emanação deste elemento, havendo mesmo casos em que o espaço justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca. (LINS, 1976, p. 76)

A definição esclarecedora de Lins converge para o tipo de atmosfera que toma conta do enredo de “Nós choramos pelo Cão Tinhoso”, no qual Ondjaki consegue, ao mesmo tempo em que planta no leitor o sentimento de angústia pela experiência dramática que o narrador vivencia, recuperar o drama equivalente da leitura da estória de Honwana.

A atmosfera angustiante que paira sobre a classe é simbolizada pela paisagem externa à sala de aula, que funciona como ponto de fuga para o olhar do narrador, receoso de não conter as lágrimas: “O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meia-hora. Mas nada.” (ONDJAKI, 2007, p. 134) Nessa imagem alegórica de um céu opressor, pode-se identificar, no peso e na escuridão das nuvens, o sentimento das crianças, especialmente o do narrador, enquanto que o desejo de libertação da chuva denota o desejo de libertar as lágrimas.

Antes de se adentrar na análise, porém, a intertextualidade explícita entre as duas estórias requer, para melhor apreciação da narrativa de Ondjaki, o conhecimento do conto de Honwana, tido como uma das mais significativas obras da prosa africana de língua portuguesa. Isso se dá tanto pela poeticidade da linguagem, ponto em que também dialoga com a escrita ondjakiana, quanto pelos simbolismos que cifram a problemática da colonização e da descolonização em Moçambique e, por extensão, de toda a África ocupada por Portugal.

O conto centra-se na figura de um cão, cujos olhos estavam “sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho”. (HONWANA, 1985, p. 147) Habitualmente o animal vagava pelo pátio da escola onde estudavam Isaura e Ginho, personagens centrais no enredo. Quem conta a trajetória do animal é o próprio Ginho, que o apresenta como um ser de fisionomia asquerosa e triste, enjeitado por todos, inclusive por outros animais. Apenas a Isaura, que também sofre discriminação dos colegas e mesmo da professora, por entenderem que ela “não regulava lá muito bem” (HONWANA, 1985, p. 150), costuma aproximar-se dele e tocá-lo:

O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando andava, as moscas iam com ele a voar em volta e a pousar nas crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães. Bem, a Isaura era a única que fazia isso.

[...]

A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo todo com ele, a dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe festinhas (...) (HONWANA, 1985, p. 150-151)

Certo dia, o Doutor da Veterinária determina ao grupo de crianças de que Ginho participa – a “malta” – que sacrifiquem o Cão, considerado um incômodo pelo Senhor Administrador. Mas, aos poucos, Ginho vai-se afeiçoando ao bicho e, no momento em que o grupo se prepara para a execução, o menino confessa seu medo e sua solidariedade a ele, mesmo sofrendo a recriminação dos colegas, eufóricos pela oportunidade de atirar com as armas de seus pais, apanhadas às escondidas.

A tensão da iminência da morte é condensada na expressão dos olhos do animal e dos da Isaura, elementos que enfatizam a dramaticidade também no conto de Ondjaki. Enquanto leitor do medo das personagens e protagonista do próprio medo, Ndalu identifica-se e experimenta os mesmos sentimentos do Ginho forçado pelos colegas a atirar no cão, fato que torna o texto “duro de ler”:

Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais, (...). se calhar é isso, eu estava mais crescido na maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressão de ar era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto. (ONDJAKI, 2007, p. 132-133)

A pesada tarefa jogada sobre o pequeno Ginho é, dessa forma, compartilhada com Ndalu, cujo encargo é ler o texto sem deixar cair as lágrimas diante de toda a turma, principalmente porque um dos alunos, o Olavo, havia avisado: “Quem chorar é maricas então!” (ONDJAKI, 2007, p. 134). Entrecruzam-se, assim, planos narrativos do âmbito da ficção, representada pelo seu próprio texto e pelo de Honwana, e da realidade autobiográfica rememorada por ele, leitor do escritor moçambicano, agora com olhos mais amadurecidos para as questões subentendidas na trágica existência do Cão.

dores do Cão Tinhoso e as da Isaura, presentificados pela leitura, e reavivar também a sua própria dor:

Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas foi isso que pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa professora nos manda ler este texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho, que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso. (ONDJAKI, 2007, p. 133)

Ele não se identifica com a “malta”, que fica contente ao receber a trágica incumbência do assassínio, ao contrário, solidariza-se com o pobre bicho e sofre junto com Ginho e Isaura, como se a ficção de Honwana passasse a ser a sua realidade, pois, recorrendo ao que observa Maria Esther Maciel acerca da alteridade animal, se este “é o estranho que nós, humanos, tentamos agarrar e que quase sempre nos escapa, ele também é o nosso duplo, o que está aqui, com sua presença inquietante e por vezes assustadora.” (2016, p. 101)

No jogo de equivalências entre as personagens – humanas e não humanas – e entre as duas estórias, a ordem dada pelo veterinário equivale à ordem repassada pela professora, que seleciona “uns tantos para a leitura integral do texto”, cuja consequência é o receio do narrador, de trazer à tona o sofrimento do Cão. A carga emotiva desencadeada pela estória confirma-se na reação demonstrada pela turma à medida que avançava na leitura, pois

(...) quando a Scubidú leu a segunda parte do texto, os que tinham começado a rir só para estigar os outros começaram a sentir o peso do texto. As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo, escolhia bem a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressão de ar a qualquer momento. (ONDJAKI, 2007, p. 134)

Por meio da ficção, as personagens do texto de Ondjaki podem entrar em contato com as personagens de Honwana e dividir as mesmas emoções perante a morte do animal. O leitor de Ondjaki, por sua vez, é enlevado numa dupla emoção, experimentando a angústia de Ginho e a de Ndalu, além de se solidarizar com o sofrimento da Isaura e o do cachorro: “Os meus olhos nos olhos da Isaura e nos olhos do Cão Tinhoso”. (ONDJAKI, 2007, p. 136)

Consequentemente, a narrativa de Ondjaki estrutura-se como um desdobramento da estória de Honwana, a partir da leitura compartilhada em sala de aula:

que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só a introdução. Os nomes dos personagens, a situação assim no geral, e a maka do cão. Mas depois o texto ficava duro: tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso. Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada Isaura afinal queria dar proteção ao cão. O cão se chamava Tinhoso e tinha feridas penduradas, eu sei que já falei isso, mas eu gosto muito do Cão Tinhoso. (ONDJAKI, 2007, p. 132)

A partir do trabalho poético com a linguagem, que procura manter-se coerente com a sintaxe adolescente do narrador, e do aproveitamento da alegoria estabelecida pelo jogo de olhares das personagens, o escritor luandense, portando-se como leitor, procede a uma interpretação do medo e do papel das demais personagens na execução do plano.

Efetua-se, portanto, uma narrativa em mise en abyme, caracterizada pela sincronicidade entre dois planos narrativos. Assim é que não só os títulos dos dois contos integram-se semanticamente, como a atmosfera densa que envolve Ginho durante a execução do Cão transfere-se para a sala de aula, formada também por uma “malta” de adolescentes confrontados com uma tarefa decisiva e dolorosa.

Como na primeira estória, em que cada um devia disparar um tiro, na segunda, cada aluno deve ler uma parte do texto, aumentando gradualmente a dificuldade das crianças e da professora em conter as lágrimas. Logo, na sua vez de ler o texto, o narrador registra que os olhos da turma estavam “pendurados” nele. Ao final, assim como o olhar do Cão Tinhoso aflige o coração do Ginho, o olhar dos dois e o da Isaura comovem o narrador Ndalu:

Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão de ar nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso. (ONDJAKI, 2007, p. 135-136)

Os olhos, por onde correm as lágrimas, constituem, portanto, o elemento de comunicação entre os dois enredos.

Vale ainda ressaltar que o espaço em que transcorrem as duas estórias, a escola, reafirma a predileção por esse elemento na ambientação das narrativas angolanas que possuem a infância como temática. No conto de Ondjaki, o caráter de coletividade inerente ao espaço escolar valoriza mais o espírito gregário incorporado por esse ambiente nas referidas obras, funcionando, conforme fica patente na cena em “câmera lenta” como um detonador da