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Os contos de Os da minha rua (2007) narram, sobretudo, pessoas e afetos. Neles Ndalu registra experiências pessoais marcantes com “os” da sua rua, condensando um sentido de infância como tempo extraordinário e cronologicamente efêmero: a vida é “um jogo brincado na rua” (ONDJAKI, 2007, p. 59), que, quando menos se espera, termina com um “chamado” inesperado de um mais velho, o adulto. Feita de gestos simbólicos e espontâneos, como na primeira vez em que se vê uma TV a cores, a infância é desenhada no lirismo de imagens e sentimentos que se conservam na memória e na invenção literária. Munido dessa paleta, o autor engendra formulações de caráter poético que sintetizam a relevância da etapa inicial da existência na literatura (e na vida) de Ondjaki.

independentes e autônomas, mantêm entre si um fio temático que une os enredos em torno do mesmo narrador protagonista e dos mesmos espaços. Além de estarem interligadas pela focalização do período, as estórias, como Ondjaki as denomina, encadeiam-se numa unidade que vai da infância à adolescência de Ndalu, culminando com o texto “Palavras para o velho abacateiro”, conto representativo da ruptura entre a vida inconsequente do menino e as primeiras decisões do jovem adulto.

Diferentemente de Bom dia camaradas, em que o nome do narrador só aparece ao final da narrativa, Ndalu é nomeado já no primeiro conto, “O voo do Jika”. As estórias não apresentam um conflito central de grande tensão, prevalecendo, na maioria delas, a espontaneidade da linguagem infantil já conhecida do romance anterior, no registro de episódios do cotidiano. Comparecem o lirismo e a coloquialidade, que, pontuados pelo humor singelo, fazem do narrador também uma espécie de cronista, mas, desta vez, mais voltado ao seu mundo de criança, metaforizado na imagem agregadora da rua, quase um prolongamento da casa. Nesse espaço ambíguo, coletivo demais para ser íntimo e familiar demais para ser público, o menino experimenta plenamente a meninice, à medida que constrói simbologias dessa fase, como a definição que se lê na estória de abertura:

Subimos ao primeiro andar, fomos até ao quarto da minha irmã Tchi, e saltamos da varanda para uma espécie de telhado. Aproximamo-nos da berma. Lá embaixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu um muito, muito pequenino guarda- chuva azul.

Põe a mão aqui – ensinou-me. – Agora podemos saltar. – Tens a certeza? – Olhei para baixo.

– Vamos só. Saltamos.

A infância é uma coisa assim bonita: caímos juntos na relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudo rimos. (ONDJAKI, 2007)

Como aquele de Bom dia camaradas, este Ndalu é ainda ingênuo a ponto de confiar na duvidosa “certeza” do colega sobre a possibilidade de serem protegidos de um tombo por um “muito pequenino guarda-chuva”. Contudo, esse episódio tão pueril ganha significação mais profunda ao sintetizar o sentido da infância, “uma coisa assim bonita”, cuja face divertida e transcendente compensa os machucados.

Componentes fundamentais na arquitetura memorialística construída pelo narrador, as personagens de Os da minha rua, com algumas exceções, já se encontram no primeiro livro da trilogia. No círculo familiar, destacam-se a avó Agnette, a tia Rosa e o tio Chico; no círculo da vizinhança, a menina Charlita, por quem Ndalu demonstra carinho e afeição especiais,

participa como personagem em dois contos; no ambiente escolar, os professores cubanos são, mais uma vez, descritos como responsáveis por proporcionar uma formação humanizada, baseada em valores de igualdade social e de protagonismo revolucionário.

As referências autobiográficas também estão presentes nos paratextos, tal como a dedicatória a “pessoas do antigamente”. No entanto, apesar de o nome próprio do narrador ser mencionado já no primeiro conto, esse detalhe deixa de ser relevante na medida em que as estórias valem por sua ficcionalidade. A carta à poetisa angolana Ana Paula Tavares, anexada ao livro, pode funcionar como um indicativo de que se trata de um texto memorialístico, no entanto, caso o leitor siga uma ordem linear de leitura do livro, os contos podem ser lidos como pura ficção25, pois, em seu decorrer, não há referências que possam despertar qualquer suspeita quanto à relação real/ficção.

As estórias erguem-se a partir do que, com Bachelard (2006, p. 2), pode-se denominar “imagens fielmente amadas” e cada uma delas consiste em uma espécie de “devaneio voltado para a infância”, seja pelo próprio feitio imaginativo da criação literária, seja pela tendência do narrador a estetizar a realidade pelo recurso a elementos sinestésicos que se traduzem como o sentido mesmo da infância. Além disso, a rarefação da ação narrativa permite que as estórias sejam sintetizadas e lidas como sequências mais de sensações do que de fatos.

Quanto às observações críticas do narrador, tal qual Bom dia camaradas, as estórias mantêm a ambiguidade como estratégia para conciliar a imaturidade do menino Ndalu e a maturidade do adulto Ondjaki, porém o traço lírico da linguagem torna-se mais relevante, graças à dicção pessoal e afetiva com que o autor reporta-se à imagem de si mesmo no passado como ensaio para a vida adulta, porque “a vida, afinal acontece muito de repente”, “como se nós, as crianças, vivêssemos numa vida distraída ao sabor da escola e da casa da avó Agnette.” (ONDJAKI, 2007, p. 59).

Dada a predominância desse caráter mais íntimo dos contos, a complexidade do ambiente político de Angola no decorrer da década de 80 está ainda menos presente do que no primeiro romance, resumindo-se a breves menções à guerra e a comentários sobre o distanciamento entre o governo e o povo.

O abacateiro do quintal, o muro que separa (ou une?) a casa da Avó e a casa da Charlita, o portão da casa da tia Rosa, a janela na qual a Avó Catarina costuma “aparecer”

25

No sentido proposto por Costa Lima (1986, p. 306), ao teorizar comparativamente sobre o estatuto da autobiografia e da ficção (como “documento puro”).

meio misteriosamente, o mar, as obras do mausoléu, o pátio da escola, dentre outros elementos, ganham valor simbólico da relação do menino com os outros. Nessas paisagens, que são suas, a infância congrega pessoas e lugares dos primeiros anos da existência.