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4. NAS PAISAGENS DE LUANDA, A MISSÃO E O SEGREDO DAS CRIANÇAS

4.4 Um largo da PraiaDoBispo

4.4.2 Uma paisagem azul

O acolhimento que o mar encontra em AvóDezanove e o segredo do soviético alinha o romance a uma tendência do discurso literário no universo da língua portuguesa, sobretudo no que tange ao contato entre culturas por meio da expansão colonial. Macêdo (1999, p. 49) salienta que “por se constituir na via líquida por onde singraram as caravelas chegando aos mais distantes portos, ele [o mar] se tornou símbolo do alargamento dos domínios portugueses”.

Se, por um lado, o domínio marítimo representa a “dilatação da fé e do império” português, como registrara Camões, por outro, não se pode negar que guarda a memória dolorosa da colonização, para cuja superação foi fundamental o papel da literatura, a exemplo da produção de Agostinho Neto, em quem Macêdo aponta certa prevalência do ambiente marinho. Nesse sentido, na produção inicial da literatura angolana, as representações do mar tendem a simbolizar a subjugação colonial, como se verifica ainda na poesia de Maurício Gomes, Alexandre Dáskalos e Geraldo Bessa, para quem o tema marítimo está vinculado à escravização (FERREIRA, 1997).

Após a negação da imagética das caravelas, o mar angolano torna-se fonte de memórias da tradição para referendar valores nacionais (SECCO, 1996), possibilitando o surgimento de uma nova relação com o elemento marítimo, em que os escritores parecem superar o trauma da dominação colonial e seus desdobramentos. De acordo com Tiago Aires (2011, p. 3), surge então “uma relação descomplexada com o mar, reconhecendo nele uma realidade simbólica própria, angolana e universal.” É o caso de Manuel Rui, para quem “o mar está normalmente associado ao amor, à observação do ser amado”. (AIRES, 2011, p. 3)59

Em Ondjaki, o mar aparece não somente como parte importante da paisagem identitária de Luanda, guardião de memórias dos que já se foram e ponto de contato com a cultura colonizadora: “(...) o mar está cheio de águas salgadas (...). São as lágrimas dos que já

59 Dentre as obras de Manuel Rui, referências ao mar podem ser localizadas em A onda (1973), Memória de mar

(1980), Quem me dera ser onda (1982), Um anel na areia (2002), e Conchas e búzios (2003), fato que leva Muraro (2011, p. 278) a afirmar que Rui “tem um currículo ‘azul’ invejável como precursor da temática do mar na literatura angolana do pós-independência.”

morreram recentemente”60 (ONDJAKI, 2008, p. 14). Mas, sobretudo, comparece como um dos ícones da infância do narrador: “(...) do lado de lá do nosso largo, ali onde a poeira não conseguia nunca aterrar, ficava essa coisa linda que todos os dias me ensinava a cor azul (...)” (ONDJAKI, 2008, p. 9-10).

Portanto, na mesma linha de buscar uma reconciliação com o mar está a prosa de Ondjaki, muito embora, no romance em análise, essa fonte de vida e de mistérios seja ainda parcialmente interditada aos habitantes da PraiaDoBispo, que não podem banhar-se no trecho apelidado de “a praia dos soviéticos”. O embargo é motivo do questionamento da tia Dada e de Ndalu em Bom dia camaradas: “(...) – Mas porquê (sic) essa praia é dos soviéticos? – agora sim ela estava mesmo espantada. – Não sei, não sei mesmo. Se calhar nós também devíamos ter uma praia só de angolanos lá na União Soviética...” (ONDJAKI, 2006, p. 57)

Em AvóDezanove, apenas alguns moradores do bairro não são afetados pelas medidas proibitivas de acesso à praia. São os pescadores e o EspumaDoMar:

Há muitos anos que os soviéticos desistiram de proibir os banhos do EspumaDoMar na praia proibida, e os pescadores que já moravam ali há tantos anos, antes dos soviéticos, antes mesmo dos angolanos de agora e dos portugueses, também podiam entrar e sair quando quisessem sem ninguém ir lhes dizer que aquela praia estava “fechada ao público”. (ONDJAKI, 2008, p. 50)

Pela ancestralidade do seu ofício, os pescadores transcendem a mera representação de moradores comuns e passam a simbolizar uma tradição de mútuo pertencimento com o espaço da praia, tornando-se mesmo parte integrante do mar, seu ambiente natural: “Lá estava o VelhoPescador sentado perto da sua canoa BarcoÍris. As mãos antigas dele desfaziam, com toda a paciência do mundo, os nós bem difíceis que as redes tinham.” (ONDJAKI, 2008, p. 16)

Já o EspumaDoMar, cuja loucura traz uma conotação mítico-profética, também goza da liberdade de fruição do espaço da praia. Essa personagem é identificada como um “chanfru”61, que se veste com “panos longos de cores já cansadas, pés descalços ou chinelos simples tipo canoa rasa”, usa rastafári, fala “cubano” e cria um jacaré no quintal de casa. Por meio dessas referências, descobre-se que o Espuma está também em narrativas anteriores, com nomes diferentes: é o Maxando, em Bom dia camaradas, e o Xana, em Os da minha rua,

60 Nota-se a intertextualidade com o conhecido poema “Mar português”, de Fernando Pessoa, em referência às

navegações portuguesas que resultaram na posse de colônias além-mar, uma delas, Angola.

no conto “O último Carnaval da Vitória”, nos quais é visto de forma menos poética: “(...) nós tínhamos muito medo dele.” (ONDJAKI, 2006, p. 53)

Mesmo que seja revelador das “verdades mais simples” que “o mundo ainda não aprendeu”, o discurso do Espuma, assim como o do maluco Sonangol, é desacreditado pelos adultos, recebendo atenção somente da parte de Ndalu, o único que observa e se comove com a existência sonhadora daquele “maluco”. A premissa do tratamento dispensado pelo mundo racionalista ao EspumaDoMar pode ser referenciada pelo pensamento de Foucault:

(...) o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, (...); pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. (FOUCAULT, 1996, p. 10-11)

Ainda que o narrador confesse não “querer parecer maluco tipo o EspumaDoMar” (ONDJAKI, 2008, p. 35), suas visões de mundo não deixam de possuir semelhanças, pois o menino costuma ter pensamentos fantasiosos, que os adultos ditos “normais” poderiam censurar:

(...) às vezes eu acho que, pelo modo de as nuvens voarem, quase fica possível ver de onde vem o vento e sobretudo para onde ele quer ir. O vento não deve gostar de andar sozinho, se repararem bem, porque sempre quer levantar poeira, dobrar as árvores, soprar as folhas e arrastar as nuvens para longe. O vento deve ter uma casa no tão-longe e está sempre a tentar levar as nuvens para a casa dele, mas isso é uma coisa que eu penso sozinho sem contar a ninguém, porque outras crianças podem me chamar de chanfru e os mais-velhos podem querer me dar remédios para ver se eu fico bom da cabeça. (ONDJAKI, 2008, p. 35)

Divagações semelhantes são frequentes no romance e, além de confirmarem o caráter contestatório que a voz dos loucos (e dos artistas) assume, confirmam também a incorporação sinestésica de elementos espaciais na prosa de Ondjaki, que opta por valorizar a face subjetiva, abstrata e etérea desses elementos. Por essa mesma perspectiva, o mar é personificado como um atrativo sedutor que induz as crianças a correrem livres “de braços abertos como os pássaros a levantar voo.” (ONDJAKI, 2008, p. 15)

De natureza imprevisível e indomável, segundo definição de Alain Corbin, o mar representa o “reino do inacabado, vibrante e vago prolongamento do caos, simboliza a desordem anterior à civilização” (1989, p. 12). Entretanto, essa indiferenciada substância azul

constitui, para Ndalu, uma paisagem familiar e serena:

E o mar acordou – primeiro devagarinho como uma andorinha acabada de nascer, depois mais um pouco a imitar as nuvens –, e então todos ficamos só a olhar o azul- escuro dele: na pele bem enorme do mar, com a IlhaDoMussulo lá do outro lado, um vento chegou para empurrar o sol mais para baixo, ali onde ele se adormece todas as noites. (ONDJAKI, 2008, p. 17)

Por meio das imagens antropomórficas, o mar apresenta-se não como paisagem desordenada e caótica, mas como espaço inofensivo e acolhedor, “uma andorinha acabada de nascer”. Dessa forma, coloca-se em concordância com o espaço angolano sonhado repetidamente pelo narrador menino, onde todos possam correr pela praia empinando pipas, numa poética confraternização entre os moradores da Praia e os dos bairros vizinhos:

Esse sonho me acontecia muitas vezes, mas não com tantos miúdos a correrem pela PraiaDoBispo sem os fios dos papagaios a prenderem uns nos outros – como os nós malucos da rede do camarada VelhoPescador –, nem tanto vento eu nunca tinha visto assim a fazer calemas no mar dali tão calmo, (...) o largo da bomba de gasolina com uma multidão de crianças que eu queria saber quem eram, estavam os da PraiaDoBispo e também os do BairroAzul, outros da escola e até alguns adultos, a TiaAdelaide a rir, o camarada VendedorDeGasolina a correr com um papagaio vermelho e amarelo, até o TioRui que era escritor passava numa bicicleta que tinha uns bigodes desenhados e ele fazia as duas coisas, conduzia a bina e dominava o papagaio – que bicicleta bonita! –, o SenhorTuarles tinha uma caneca de cerveja na mão e com a outra fazia o papagaio dar raviengas de esquindiva no vento, até o CamaradaBotardov ria e corria, “dona Nhéte, papagái leva notícia na tão-longe”, mas o que nunca mesmo me tinha acontecido naquele sonho de carnaval e risos também, era ver tantas cores movimentadas numa dança de ventos voados e o céu cheio de mil verdes, amarelos, laranjas, vermelhos com o azul por trás, o céu a imitar uns pássaros que fossem o corpo vivo disso que chamam arco-íris. (ONDJAKI, 2008, p. 72-73)

São diversas as sugestões sinestésicas envolvidas nesse sonho-alegoria, que se materializa ao final da narrativa. Primeiro, a simbologia do próprio sonhar, como forma de idealizar uma realidade pretendida, encaminha a leitura do trecho para outras manifestações metafóricas de Ondjaki que projetam um futuro de renovação para Angola, a saber, a chuva de

Bom dia camaradas e a explosão de AvóDezanove.

A imagem dos papagaios em cores nacionais62, que sugerem uma vida livre, sem opressão, em que se sobressai a festividade do encontro entre os angolanos, estabelece intertextualidade com a imagem dos “sonhos de papel de seda”, presente no conto “A cidade e

62 O vermelho e o amarelo indicados na cor do papagaio do VendedorDeGasolina integram as cores da bandeira

nacional. O vermelho refere-se ao sangue derramado na luta por independência, e o amarelo, presente na engrenagem e na catana e na estrela simboliza a indústria e o trabalho braçal do campo.

a infância”, de Luandino Vieira. O “antigamente” de convivência fraterna das crianças entre si e com os espaços da cidade também é condensado pela fruição das corriqueiras lutas de papagaios de papel, dentre os quais os “roncadores” eram os melhores e as “lanternas” as mais bonitas:

Bem feitos, fortes, rápidos no ataque, sempre com lâminas bem afiadas nas pontas, derrotava todos os lentos “papagaios” de rabo comprido, as grandes “estrelas”, os estáveis “balões” ou os pequenos “bacalhaus”.

[...]

(...) O Gonzaga fazia bonitas “lanternas”, de papel de seda de muitas cores, parecidas com aviões, mas só as deitava à noite, com velas acesas dentro, dando um espetáculo que todos ficavam a olhar das portas das casas. (VIEIRA, 2014, p. 28)

Alguns dos “sonhos de papel de seda que todos tiveram” não foram concretizados, tendo-se rasgado “nos grandes ramos da árvore da vida”, uma vez que, em adultas, algumas crianças defrontaram-se com a marginalidade e a perda da liberdade. (VIEIRA, 2014, p. 29)

A rede de significados construída por Ondjaki no encontro que ocorre após a explosão passa ainda pela rede ancestral do VelhoPescador, símbolo da tradição, e até pela figura pouco amistosa do SenhorTuarles, que acaba por ser arrebatado pela alegria da liberdade. No sonho, também o soviético Bilhardov, representante de outro tipo de opressão imposta aos angolanos, festeja junto aos nacionais, o carnaval de cores e risos (o “carnaval da vitória”) em que se transforma a PraiaDoBispo e vira notícia até no “tão-longe”.

Os elementos espaciais evocados na cena – vento, mar e céu – confraternizam junto com os moradores, configurando uma analogia entre um episódio da mitologia cristã e o contexto político angolano: o vento embala os papagaios e as calemas, culminando com o surgimento do arco-íris, símbolo mnemônico da aliança reconciliatória entre o poder divino e os homens. A aliança é mediada pela natureza, com o objetivo de pôr fim ao flagelo infligido aos habitantes da Terra e garantir-lhes que jamais voltariam a ser oprimidos. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1994).

A representação que o mar recebe no romance, como símbolo integrante da paisagem da infância de Ndalu, encontra fundamentação em A água e os sonhos (1942), de Bachelard, na medida em que, para esse filósofo, no processo de apreensão da realidade pela imaginação, as imagens poéticas primordiais antecipam-se às ideias e aos conceitos. Nesse processo, o animismo marinho mescla

o desejo e a visão, as impulsões íntimas e as imagens naturais, aquelas que a natureza fornece diretamente, aquelas que seguem ao mesmo tempo as forças da natureza e as forças da nossa natureza, aquelas que tornam a matéria e o movimento dos elementos naturais, as imagens que sentimos ativas em nós mesmos, em nossos órgãos. (BACHELARD, 1997, p. 191)

O valor atribuído a essas imagens oníricas provém do sentimento que se nutre por elas, perenizadas pela imaginação poética, essencialmente metafórica. Por isso o mar rememorado por Ndalu pode ainda ser compreendido como uma paisagem afetiva, de acordo com Corbin (1989), que propõe uma leitura dos elementos culturais formadores da mentalidade comunitária sob a ótica da afetividade, em detrimento da visão puramente intelectualizada do historiador, ou do gêometra, como salienta também Bachelard (1993).

Nessa mesma linha, considerando-se ainda os preceitos de Halbwachs (1990), o mar e a praia são um expediente cultural sedimentado não só na memória individual, autobiográfica do protagonista, mas também na memória coletiva do bairro, cuja unidade espacial e social arranja-se em torno da paisagem marinha enquanto “comunidade afetiva”.

A condição agregadora da paisagem, pela multiplicidade do sentir (sinestesia) é, para Collot, “uma manifestação exemplar da multidimensionalidade dos fenômenos humanos e sociais, da interdependência do tempo e do espaço, da interação da natureza e da cultura, do econômico e do simbólico, do indivíduo e da sociedade.” (2013, p. 15, grifo do autor). Sob essa perspectiva, a paisagem proporciona aos indivíduos um campo para se pensar a complexidade do mundo real, em cujo debate a palavra literária exerce um papel fundamental, uma vez que “fornece, frequentemente, a mais forte expressão do ‘espaço vivido’.” (COLLOT, 2013, p. 15)

Constata-se, desse modo, que a narrativa de Ondjaki efetua a remição do ambiente afetado pela guerra e pela carência social, transformando-o em paisagem agregadora, espaço de solicitude e de uma nova aliança entre as pessoas. Nesse mesmo andamento, o prosador luandense recria os espaços da intimidade de Ndalu, representados pela casa dos pais, a casa da avó e a casa da tia Rosa. Nesses cenários afetivos, ele ancora as personagens com quem partilha os momentos mais significativos da infância, pressuposto que se desenvolve na análise proposta no capítulo a seguir.