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Da educação escolar à formação de professores: o problema

A atual organização política, econômica e social da nossa sociedade tem colocado em xeque a educação escolar e, conseqüentemente, todo o projeto pedagógico inerente à formação dos seus membros. Este fato não é de se estranhar, já que no final do século XX presenciamos uma nova reestruturação das bases materiais caracterizadoras da produção, da economia e da política (KUENZER, 1998). Esse novo contexto gerou um sentimento de insatisfação com o modelo de escolarização, marcadamente caracterizado pela pedagogia tradicional, que já não é mais capaz de atender as demandas insurgentes. Estas, por suas vez,

− exigem a criação de áreas de conhecimento que envolvam várias disciplinas;

− impõem um caráter dinâmico aos conteúdos escolares;

− põem em xeque quais os conteúdos básicos dos diversos campos do conhecimento humano;

− substituem a memorização pela habilidade de localizar e produzir informações;

− exigem novos processos de aprendizagem capazes de articular o mundo da escola ao mundo do trabalho;

− substituem a capacidade de aprender determinado conteúdo pela competência para continuar aprendendo; e

− estabelecem novos procedimentos avaliativos capazes de verificar a capacidade de resolução de problemas.

Essas novas demandas caracterizam uma transformação no cenário social, influenciada principalmente pelos avanços tecnológicos decorrentes do desenvolvimento das tecnologias de informação. Esta situação deu início a um processo de remodelação da base material da sociedade. Nesse novo contexto, a sociedade caracteriza-se primordialmente por uma reestruturação do sistema produtivo, pela economia globalizada e pelo domínio do ideário neoliberal.

Todas essas mudanças são decorrentes da atual revolução tecnológica, fundamentada por uma descentralização dos conhecimentos e informações, bem como a “aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e o seu uso” (CASTELS, 1999, p.69).

Esse novo paradigma tecnológico possui cinco atributos essenciais para a sua compreensão (CASTELS, 1999):

− a informação é a matéria-prima. Isto implica que a tecnologia é criada para agir sobre a própria informação, e não somente informação que age sobre a tecnologia;

− a grande penetrabilidade das novas tecnologias, já que a informação é uma parte imprescindível da atividade humana;

− domínio da lógica de redes, que se caracteriza pela complexidade das interações e pelos modelos imprevisíveis que derivam dessas interações;

− a flexibilidade dos processos, das organizações e das instituições; e − tendência de integração das tecnologias em um sistema único e integrado.

Sob a influência desse novo paradigma tecnológico, emerge uma nova economia “informacional, global e em rede” (CASTELS, 1999, p. 118). Em outras palavras, esse novo cenário econômico está baseado na capacidade dos seus agentes em gerar, processar e aplicar eficientemente a informação baseada em conhecimentos; a circulação e o consumo dessa informação estão organizados globalmente, de forma direta ou indireta; e a produtividade e a concorrência surgem em redes globais de interação. Deste modo, a unidade básica de organização da economia deixa de ser o sujeito individual, por exemplo: o operário, o empresário ou o coletivo, como a empresa, o Estado e passa a ser “a rede, formada de vários indivíduos e organizações, que se modificam conforme as redes adaptam-se aos ambientes de apoio e às estruturas do mercado” (CASTELS, 1999, p. 258, grifo do autor).

neoliberal, que se apresenta como uma alternativa teórica à crise do capitalismo. Para Frigotto (1995), as idéias neoliberais baseiam-se nas seguintes categorias: formação abstrata e polivalente, autonomia, qualidade total, produtividade, participação, competitividade, flexibilidade, eqüidade, descentralização, eficiência e eficácia.

Esse cenário impõe uma dimensão cultural própria que, para Castels (1999, p. 258), “é uma cultura do efêmero, uma cultura de cada decisão estratégica, uma colcha de retalhos de experiências e interesses, em vez de uma carta de direitos e obrigações”. Essa conjectura leva, de acordo com Evangelista (1997), a uma valorização

− do fragmentário; − do macroscópico; − do singular; − do efêmero; − do imaginário; e − do imediatismo.

A educação não foge desse quadro de novas exigências e os elementos característicos da pedagogia tradicional são questionados, pois estes já não são capazes de atender as novas demandas. Portanto, aquela pedagogia pautada nos conteúdos escolares cristalizados, na valorização da memória, nos procedimentos de avaliação fragmentados e que considera o professor o ator principal não se adequa mais a essa nova realidade dinâmica que surge. Em outras palavras, “a velha e ainda não superada escola, com sua centralização e excessiva regulamentação, já não é adequada para o novo princípio educativo” (KUENZER, 1998).

Há que se considerar também que temos uma Educação escolar permeada pelo discurso do “aprender a aprender” (DUARTE, 2000; 2003), mas ainda dominada pelas práticas e procedimentos determinados pelos meios de produção característicos do fordismo e do toyotismo.

A pedagogia do “aprender a aprender” que domina o discurso pedagógico vigente caracteriza-se, de acordo com Duarte (2000, 2003), pelos seguintes pontos:

− a aprendizagem passa pela ação e escolha dos conhecimentos, pois são mais

desejáveis os processos de aprendizagem realizados pelo próprio indivíduo;

− ênfase na utilização direta dos conhecimentos na vida cotidiana do indivíduo, pois há

necessidade de preparar os indivíduos para acompanharem a sociedade que se encontra em processo constante de transformação;

− a funcionalidade e o pragmatismo assumem um papel essencial, pois o importante é desenvolver um método de aquisição, elaboração, descoberta e construção de conhecimentos.

Apesar desse ideário dominante, o que percebemos é a insuficiência deste modelo de Educação escolar que não é capaz de mobilizar os indivíduos rumo ao conhecimento; não consegue fazer com que o conhecimento escolar deixe de ser irrelevante para os indivíduos; e, finalmente, tem um pequeno impacto na formação do indivíduo. Esses elementos tornam a atividade do indivíduo alienante, pois carece totalmente de significado e sentido. Portanto, nesse contexto, podemos compreender a Educação escolar como um problema.

Assumir que a Educação escolar constitui um problema implica defender que o conhecimento, como produto das relações sociais (que são dinâmicas por excelência), exige a todo o momento uma postura de investigador por parte daqueles que têm como atividade a educação formal.

Neste sentido, ao questionarmos a Educação escolar, também estamos questionando a escola e, conseqüentemente, as atividades de ensino, ou seja, “as ações que têm por objetivo a unidade formadora do aluno” (MOURA, 1996, p.29). Ao conceber a atividade de ensino como uma unidade, entendemos que ela reúne os objetivos de ensino, os conteúdos e, principalmente, uma visão de como ocorre o processo de aprendizagem. Essa função essencial da atividade na formação do estudante acaba por exigir do professor um novo significado para o que é ensinar e o que é aprender nas relações dinâmicas estabelecidas na classe.

Ao analisar a atividade do professor, percebemos que o seu significado está na ação de ensinar. De certa forma, o trabalho docente possui uma autonomia inerente a ele, porém esta autonomia não é suficiente para impedir um processo de alienação do trabalho. A nosso ver, está nas condições subjetivas deste trabalho o fator de alienação. Uma das condições subjetivas do trabalho docente é o processo de formação. Esse processo de formação é incapaz de propiciar ao indivíduo a compreensão do significado da atividade docente. Ele simplesmente reduz o professor a um mero prático ou aquele que faz uso da reflexão, mas totalmente esvaziada de sentido.

Uma vasta literatura científica tem sido produzida sobre a formação de professores no Brasil e no mundo. Essa produção intensificou-se a partir dos anos 80 do século passado e constitui hoje, sem sombra de dúvida, a questão mais investigada no campo educacional. Para comprovar esta afirmação, basta fazer uma consulta rápida em qualquer base de dados, por termos gerais, tais como: formação de professores ou aprendizagem

docente para encontrar milhares de trabalhos com uma diversidade de enfoques, metodologias e concepções teóricas.

No âmbito internacional, um número extraordinário de obras e artigos sobre esse tema é publicado a cada ano. Autores como Wittrock (1986); Houston, Haberman e Sikula (1990); Sikula, Buttery e Guyton (1996); Cochran-smith e Zeichner (2005) e Cochran-smith et al. (2008) têm apresentado em seus trabalhos imensas sínteses de algumas centenas de milhares de investigações relacionadas à formação docente.

Ao olhar a produção nacional, percebemos a clara influência da literatura internacional no âmbito da formação de professores. Entre os principais autores que referenciam estas investigações, podemos citar Alarcão (2005), Carr e Kemmis (1988), Contreras (2002), Elliot (1990), Enguita (1991), Garcia (1994), Giroux (1986), Kincheloe (1997), Nóvoa (1995), Pérez Gómez (1998), Perrenoud (1992), Popkewitz (1984), Schön (1983), Shulman (1986), Stenhouse (1987), Tardiff (2002), Tavares (1997) e Zeichner (1993).

Levando em conta a relevância que essas investigações internacionais têm para o debate em torno da formação do professor, mas, sobretudo, focando especificamente a produção científica brasileira sobre este tema, constatamos que uma quantidade significativa dessa produção converge suas análises para um amplo quadro referencial que abrange desde os fatores que compõem a formação inicial e continuada até aqueles vinculados à identidade, aos saberes e à profissionalização dos docentes.

Para ajudar-nos a conhecer esta vasta e diversificada produção, autores como Warde (1993), André (2002), Ventorim (2005) e Brzezinski (2006) têm se dedicado a realizar levantamentos bibliográficos da produção acadêmica nacional vinculada à formação de professores. Se focarmos o nosso olhar na formação inicial realizada nos cursos de licenciatura, temos autores como Romanowski (2002) que se dedicou a fazer um balanço da produção científica relacionada aos cursos de licenciatura, Brown, Cooney e Jones (1990), Brown e Borko (1992), Fiorentini (1994; 2002), Xavier et al. (1996), Nacarato et al. (2002), Ferreira (2003), Miskulin et al. (2005) e Melo et al. (2006) que abordaram em seus trabalhos a produção vinculada à formação dos professores que ensinam Matemática.

De forma geral, estes trabalhos indicam uma ênfase nos estudos que priorizam os seguintes aspectos: a avaliação dos cursos ou de determinadas disciplinas do curso; as concepções, representações e práticas do professor e dos licenciados; a busca pela articulação entre a teoria e a prática ou a busca da unidade no processo de formação inicial; a construção de uma competência profissional aliada a compromisso social do professor; o caráter contínuo da formação do professor; o papel da interdisciplinaridade; a discussão da relação entre a

formação específica e a formação pedagógica; experiências curriculares inovadoras e experiências que articulam os eixos da pesquisa, ensino e extensão.

Nesse grande contingente de trabalho, poucos se dedicaram a tratar especificamente da formação do sentido e do significado da atividade do professor de Matemática. Nesse contexto surge, então, a necessidade de uma investigação acerca do sentido do trabalho docente, ou seja, investigação que aborde os motivos que direcionam a atividade do professor.

Consideramos importante destacar que foi o surgimento dessa necessidade que constituiu o problema desta pesquisa, qual seja: a transformação e/ou criação dos motivos na atividade de aprendizagem do professor de Matemática no processo de formação profissional inicial. Este problema produziu a seguinte pergunta:

Quais são as ações no processo de formação profissional inicial dos professores de Matemática que indicam a transformação e/ou criação dos motivos na atividade de aprendizagem?

Portanto, com o objetivo de identificar as ações de aprendizagem que indicam a transformação e/ou criação dos motivos no processo de formação profissional inicial do professor de Matemática, procuramos analisar como os indivíduos realizam suas aprendizagens docentes. Além disso, tentaremos compreender como o professor se mobiliza em torno de uma necessidade contínua de aperfeiçoamento dos seus meios, dos seus instrumentos de produção do seu objeto.

Assim, partindo da hipótese de que a constituição da condição humana dos indivíduos exige a superação dos motivos hegemonicamente presentes na sua atividade, buscamos subsídios no enfoque histórico-cultural da psicologia e na teoria da atividade que nos permitissem compreender a transformação e/ou criação dos motivos na atividade de aprendizagem do professor de Matemática durante o seu processo de formação acadêmico- científica.

Para a comprovação desta hipótese, organizamos um experimento formativo, caracterizado por uma perspectiva humanizadora da educação, com estagiários do curso de licenciatura em Matemática. Este experimento será detalhado no próximo capítulo.