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Uma compreensão histórico-cultural para a motivação

Os indivíduos vivem e desenvolvem as suas vidas por meio de atividades. São elas que permitem as mudanças sociais e naturais nas interações com o mundo. Desta forma, a

atividade humana é eminentemente caracterizada pela comunicação e pela cooperação entre os indivíduos, ou seja, é parte integral do contexto social, mesmo quando este se vê confrontado com uma tarefa individual. Neste sentido, a atividade é a estrutura que permite que cada um possa transformar partes ou aspectos do mundo, agindo de acordo com os meios e possibilidades que tem para satisfazer as suas necessidades. Além disso, ao modificar os objetos, meios e condições, o indivíduo pode tornar-se consciente da sua atividade, logo, ele é também transformado por ela. Portanto, conforme Lompscher (1999, p. 12, tradução nossa)

o conceito de atividade compreende a interação e inter-relação entre os sujeitos que agem modificando ou produzindo todos os tipos de objetos (incluindo outros sujeitos), de forma a satisfazer as diferentes necessidades humanas, utilizando, de um modo mais ou menos adequado, instrumentos ou ferramentas para transformar objetivamente os aspectos do mundo e antecipar os resultados da atividade. Este processo tem lugar em condições individuais, sociais, naturais, sociais e histórico- culturais concretas.

Deste modo, o conceito de atividade está vinculado diretamente ao conceito de motivo, isto é, a atividade é o processo originado e dirigido por um motivo, dentro do qual a necessidade toma forma de objeto. Logo, o motivo real constitui-se no objeto da atividade. Desta feita, não se pode pensar em uma atividade sem motivo, pois “uma atividade não motivada não leva dentro de si uma atividade privada de motivo, e sim uma atividade com um motivo subjetivo e objetivamente oculto” (LEONTIEV, 1983, p. 83, tradução nossa).

Assim, o que chamamos de motivo compreende “uma série de fenômenos distintos: os impulsos instintivos, os apetites e inclinações biológicas, as vivências emotivas, os interesses e os desejos” (LEONTIEV, 1983, p.155, tradução nossa), os quais nascem de uma necessidade, mas encontram a sua objetivação e orientação na satisfação da atividade.

Esta afirmação implica a importância de compreender as necessidades que estão sempre situadas em um plano anterior ao do objeto da atividade. No nível psicológico, as necessidades sempre surgem mediadas pelo reflexo psíquico e caracterizam-se tanto pela manifestação dos objetos que satisfazem a estas necessidades, como pelos próprios reflexos sensoriais dos estados de necessidade do indivíduo.

Contudo, este objeto que é capaz de satisfazer a necessidade do indivíduo não se encontra plenamente determinado dentro deste estado que surge para o indivíduo. É como se a necessidade não conhecesse o seu objeto e, portanto, precisasse descobri-lo para que passasse a ter o seu caráter objetal. Sendo assim, sucede que, somente após esse processo de descoberta, a necessidade objetiva-se, e o objeto assume o seu papel de ativador, de diretor da atividade, isto é, de motivo. Mesmo, sabendo que os indivíduos nascem dotados de

necessidades, enfatizamos que o caráter motor da necessidade somente pode ser compreendido dentro do contexto da atividade humana. Desta afirmativa, Leontiev (1983, p. 156, tradução nossa) chega à seguinte conclusão:

a necessidade, primeiramente, se manifesta somente como uma condição, como uma premissa para a atividade, porém, tão logo o sujeito começa a atuar, imediatamente se opera nela uma transformação e a necessidade deixa de ser o que era virtualmente 'em si'. Portanto, quanto mais avança o desenvolvimento da atividade, mais sua premissa se transforma em seu resultado.

No homem as necessidades surgem com o desenvolvimento da produção e do consumo (MARX, 1998). Isto implica que a produção e o consumo são mediados pela necessidade do objeto que, por sua vez, também se manifesta como um motivo excitador interno e ideal. Desta afirmação, chegamos à relação entre a atividade e a necessidade numa interpretação marxista. Nessa perspectiva, esse processo é representado pelo ciclo atividade- necessidade-atividade, esquematizado na figura a seguir (figura 4).

Figura 4 – O ciclo atividade-necessidade-atividade

A implicação proveniente desse ciclo é a de que as necessidades humanas podem ser produzidas, todavia, em consonância com Leontiev (1983), esta idéia entra em choque com as explicações dominantes que partem das próprias necessidades as quais geram as atividades. Esta idéia vigente, segundo o autor, explica o porquê de o homem criar novos objetos: “as necessidades podem chegar a ser determinantes de uma atividade concreta somente pelo seu conteúdo objetal; porém, este conteúdo não está dado diretamente nelas e, por conseqüência, não pode ser extraído delas” (LEONTIEV, 1983, p. 159, tradução nossa).

Outra implicação que resulta da concepção sócio-histórica das necessidades é a de que algumas delas podem ser interpretadas como sociais e outras como biológicas, as quais, na maioria das vezes, podem ser comuns tanto aos homens quanto aos animais. Assim, por exemplo, ao falar em fome, temos que compreender que esta é uma das necessidades vitais tanto para o homem quanto para o animal. Contudo, “a fome que se sacia com carne cozida, ingerida com a ajuda de garfo e faca, é uma fome distinta daquela com a qual se traga a carne

Atividade

Atividade

Necessidade Necessidade

crua com a ajuda das mãos, unhas e dentes” (MARX, 2005).

Na situação posta, a carne continua sendo alimento para os indivíduos em ambas as situações. Entretanto, há uma mudança das formas do reflexo psíquico desta necessidade, pois há um enriquecimento e variação do seu conteúdo objetal permitindo, conseqüentemente, a formação de um caráter psicológico. Este processo de desenvolvimento das necessidades ocorre da seguinte maneira: “o desenvolvimento das necessidades humanas tem seu início quando o homem começa a atuar para satisfazer suas necessidades vitais e elementares; mas, posteriormente, esta relação se inverte e o homem satisfaz suas necessidades vitais para poder atuar” (LEONTIEV, 1983, p. 160, tradução nossa).

Consoante com o que mencionamos, as necessidades têm como conteúdo objetal os motivos. Desta forma, quando discutimos sobre o movimento qualitativo das necessidades, inevitavelmente este debate nos conduz à análise dos motivos. Em decorrência disto, põe-se como necessária a superação das interpretações subjetivistas sobre os motivos, como afirma Leontiev (1983, p. 161, tradução nossa)

as vivências subjetivas, desejos, aspirações, etc., não se convertem em motivos, já que por si mesmos não são capazes de gerar uma atividade com uma direção marcada e, conseqüentemente, a interrogação psicológica fundamental consiste em compreender qual é o objeto das vivências, desejos e aspirações manifestas.

Esta matiz emocional constitui o reflexo psíquico dos motivos, isto é, mesmo quando um indivíduo não toma consciência do que o impele a realizar certas ações, os motivos assumem essa forma especial. Contudo, essa matiz, com sua intensidade, signo e características qualitativas não constitui o sentido pessoal para a atividade. Esta não- coincidência somente se dá pelo fato de que a atividade humana responde simultaneamente a vários motivos distintos. Por exemplo, o trabalho é uma atividade socialmente motivada, porém ele também é motivado pela remuneração material, o salário. Em um contexto de produção capitalista, o sentido do trabalho para o trabalhador está no salário. Já os motivos sociais vinculados ao trabalho constituem um possível estímulo à realização das ações. Eles existem, impulsionam a atividade, mas estão privados da sua função principal, que é a de conferir sentido.

Outro exemplo é a atividade de estudo que é socialmente motivada, porém é também regulada por outros motivos, como por exemplo, tirar boas notas nas avaliações. Estes dois motivos simultaneamente coexistentes se encontram sem dúvida em planos distintos. Aos motivos que estimulam a atividade lhe conferindo um sentido pessoal daremos

o nome de “motivos geradores de sentido” (LEONTIEV, 1983, p. 166, tradução nossa). Já aqueles que assumem papel de fatores impulsores (positivos ou negativos), e estão privados da função de conferir sentido, serão denominados de motivos-estímulos.

As contradições presentes na relação entre estes dois gêneros de motivos propiciam ao indivíduo o desenvolvimento de novos tipos de atividade. Isto acontece porque “os motivos apenas compreendidos [os motivos-estímulos] transformam-se, em determinadas condições, em motivos eficientes [motivos geradores de sentido]” (LEONTIEV, 1978, p.318).

Esse processo de transformação implica, portanto, uma distribuição de funções entre os motivos de uma mesma atividade, em outros termos, uma hierarquia entre os motivos. Para Leontiev (1983, p. 166, tradução nossa), somente por meio deste fenômeno podemos “compreender as relações fundamentais que caracterizam a esfera motivacional da personalidade”. A conseqüência desta afirmação é a de que a motivação não pode ser reduzida a aspectos meramente energéticos ou dinâmicos e, mais, “os motivos representam a unidade entre a cognição e a emoção" (LOMPSCHER, 1999, p. 12, tradução nossa). Desta forma, a motivação somente pode ser compreendida nas relações intrínsecas da atividade, porque, como processo, ela compõe a estrutura deste fenômeno.

O exemplo abaixo, encontrado em Leontiev (1978), serve como ilustração deste processo de transformação e criação dos motivos. Consideremos um estudante que não consegue dedicar-se totalmente aos seus deveres como estudante. Ele sempre tenta de todas as formas adiar o momento de realização das suas tarefas e, quando começa a realizá-los, rápida e facilmente se distrai com outras coisas. Podemos nos perguntar: será que esta criança não compreende que, se não fizer as suas lições, terá uma nota baixa na escola, e que isso deixará seus pais tristes e decepcionados? E mais: que o ato de estudar é a sua obrigação, o seu dever dentro da organização social em que ele está inserido? É difícil acreditar que uma criança com um desenvolvimento normal não saiba disso, entretanto, esse fato não é suficiente para fazê-la entregar-se à atividade escolar. Supondo que os pais desta criança a proibissem de brincar, exigindo dela que, primeiro, realizasse suas tarefas, podemos constatar que a criança passa a dedicar-se mais aos estudos.

Neste caso, percebemos que a criança compreende os dois motivos para realizar as suas tarefas escolares: tirar uma boa nota e fazer o que deve como estudante. Contudo, esses motivos (denominados de motivos apenas compreendidos) são ineficientes, pois o que realmente motiva a criança é a possibilidade de ir brincar. Logo, este último constitui o motivo eficiente.

tarefas escolares por sua própria iniciativa e não se preocupa mais com a possibilidade de brincar após a realização das tarefas, ocorre nesta nova situação que o motivo-estímulo criado pelos pais perdeu seu poder mobilizador. Assim, o que a mobiliza é a expectativa de obter uma boa nota na escola. Desta forma, o motivo apenas compreendido, tirar notas boas, passa a ser um motivo eficiente. Leontiev, explica essa mudança da seguinte forma:

[...] em certas condições, o resultado da ação conta mais que o motivo que realmente suscita a ação. A criança começa por fazer conscientemente os seus deveres para poder mais rapidamente ir brincar. Mas o resultado é bem maior: não apenas pode ir brincar, como ainda ter boa nota. Produz-se uma nova objetivação das suas necessidades, isto quer dizer que elas se elevam de grau (LEONTIEV, 1978, p. 318- 319).

Esse processo de transformação dos motivos é possível, pois os motivos compreendidos não estão presentes na esfera de relações que circunda o indivíduo. De fato, eles se localizam na esfera das relações que caracteriza o lugar que o indivíduo pode ocupar no próximo estágio do seu desenvolvimento. Assim, esse processo, em consonância com Leontiev (1978), exige um arranjo para que estas novas relações permitam a tomada de consciência por parte do indivíduo.

Ao enfatizar a diferença e o processo de transformação dos motivos dentro da atividade, Leontiev acaba levantando a importância de compreendermos o desenvolvimento e a formação dos elementos da atividade no processo de aprendizagem.