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DA ESPONTANEIDADE MOTORA À MOTILIDADE: A RAIZ DO IMPULSO

4 AGRESSIVIDADE E CRIATIVIDADE NO DESENVOLVIMENTO

4.1 DA ESPONTANEIDADE MOTORA À MOTILIDADE: A RAIZ DO IMPULSO

Winnicott aprofundou seus estudos sobre a temática da agressividade, construindo um vasto e complexo campo teórico, no qual destaca a existência de um potencial agressivo primitivo, essencial para a construção do Eu e das relações objetais. O autor assinala que para uma melhor compreensão sobre o tema da agressividade é necessário primeiramente debruçar- se sobre o estudo de suas raízes, demarcando a presença deste potencial agressivo primitivo em um período anterior à construção do Eu. Em suas palavras, “A base para o estudo da agressividade real deve ser o estudo das raízes da intenção agressiva.” (Winnicott, 1950- 1955/2000a, p. 288). Winnicott (1950-1955/2000a) nomeou de ‘motilidade’ a raiz da agressividade: “Temos em mãos certos elementos que datam pelo menos dos albores do movimento fetal – ou seja, a motilidade.” (p. 296). À medida que o bebê cresce, essa agressividade se transforma, dos movimentos ao ato de agarrar com as mãos, a atividade de sugar, morder, nos movimentos de alcançar os objetos e, assim, o mundo.

Antes da integração da personalidade, já lá está a agressividade*. O bebê dá pontapés dentro do útero: não se pode dizer que ele esteja abrindo caminho para fora com pontapés. Um bebê de poucas semanas agita os braços: não se pode dizer que esteja querendo golpear. O bebê mastiga os mamilos com suas gengivas: não se pode dizer que ele esteja pretendendo destruir ou machucar. Em suas origens, a agressividade é quase sinônimo de atividade: trata-se de uma função parcial. (Winnicott, 1950- 1955/2000a, p. 289)

*atualmente eu vínculo essa ideia à de motilidade. (cf. Marty et Fain, 1955)

Para Winnicott (1958/2013b) a motilidade é uma característica do feto vivo, referente aos seus movimentos intrauterinos, a um impulso motor que denota estar vivo, “existem boas evidências que os movimentos do corpo na vida intrauterina são significativos.” (Winnicott, 1988/1990, p. 39) A atividade motora do feto no ventre materno, por meio do movimento de expandir, propicia o encontro com algo que é distinto de si, ou seja, as paredes uterinas, demarcando inicialmente uma oposição. O autor considera que a repetição dessa experiência configura a base do encontro do feto com a alteridade, sedimentando o solo para as experiências primitivas de diferenciação Eu-Não/Eu (Pinheiro, 2018). Com base nisso, Winnicott supõe que a partir desse encontro do impulso motriz do feto com a oposição do útero materno, inicia-se uma negociação primitiva entre o feto e o ambiente. “Dessa negociação primitiva, os destinos da erotização e da agressividade já estão sendo jogados de forma a definir um posicionamento

fantasmático do sujeito na trama de sua constituição subjetiva frente à alteridade.” (Pinheiro, 2018, p. 296).

Debruçando-se sobre os estudos da agressividade primária, visando elucidar as interrogações suscitadas pelos distintos modos que a agressividade se manifestava nos indivíduos, Winnicott (1950-1955/2000a) examina e propõe padrões que se desenvolvem ao redor do fenômeno da motilidade, ou seja, padrões alusivos às negociações possíveis entre motilidade e ambiente. No primeiro padrão, a partir da motilidade, o ambiente é constantemente descoberto e redescoberto, “aqui, cada experiência no contexto do narcisismo primário enfatiza o fato de que o indivíduo está se desenvolvendo no centro, e o contato com o ambiente é uma experiência do indivíduo (em seu estado de ego-id indiferenciados, a princípio).” (p. 297, grifo do autor). Assim, podemos compreender que neste primeiro padrão o ambiente permite por meio destes movimentos de expansão, que o feto sinta que ‘encontrou’ que se opôs a ele adequadamente, possibilitando a vivência de uma experiência sentida como real. A partir disto, há uma quota de impulsionalidade que pode ser infusionada nas experiências do amor primitivo, posteriormente, quando o bebê tiver que lidar com os seus instintos (Pinheiro, 2018).

No segundo padrão, o ambiente impõe-se ao feto, e desta forma em vez de ocorrerem uma série de experiências individuais, ocorrem uma série de reações à intrusão (Winnicott, 1950-1955/2000a, p. 297, grifo do autor), neste caso a motilidade se institui como reação à intrusão. “Aqui, portanto, desenvolve-se uma retirada em direção à quietude, única situação em que a existência individual é possível” (p. 297). Diante da necessidade do feto reagir a esta intrusão/invasão do ambiente, o que resta do movimento de expansão para ser infusionado nas experiências eróticas conferindo-lhes vida e realidade será mínimo (Pinheiro, 2018).

No terceiro padrão, considerado extremo por Winnicott, a oposição/invasão do ambiente aos movimentos de expansão fetal, ocorre de maneira tão intensa que não resta nenhum lugar de tranquilidade que permita a existência individual, e o efeito disso “é uma falha na capacidade do estado do narcisismo primário de transforma-se num indivíduo” (Winnicott, 1950- 1955/2000a, p. 297). Neste último padrão, o “indivíduo” se desenvolve como uma extensão do ambiente invasor e distante do núcleo do verdadeiro eu, o qual permanece oculto. Assim, ao feto nada resta de motilidade que possa ser infusionada no amor erótico, e para que a sensação de realidade possa ser encontrada, haverá a necessidade do encontro de oposições cada vez mais fortes, gerando distorcidamente, a erotização do impulso agressivo (Pinheiro, 2018).

Para Winnicott (1950-1955/2000a), o primeiro padrão refere-se ao que ele chama de saúde e isto depende do cuidado ambiental, da mãe suficientemente boa que, conforme abordado no capítulo anterior, identificada com seu bebê, expressa amor inicialmente por meios

físicos, ao “segurá-lo” desde o útero até o colo, adaptando-se às necessidades do bebê. “Nestas condições, e somente nestas condições, o indivíduo pode começar a existir, começar a existir para viver as experiências do id.” (p. 298). O autor faz uma ressalva importante de que, neste período primitivo, o que a fusão entre o potencial de motilidade e o potencial erótico permite não diz respeito a gestos de oposição, no sentido de reações à frustração, mas que a motilidade do feto precisa encontrar uma oposição adequada. Caso isso não ocorra, como descrevemos no segundo e terceiro padrões, esse movimento de expansão do feto permanecerá sem experiências constituindo-se como ameaça a seu bem-estar (sensação de realidade ou de existir). Nesses casos, em que o potencial de motilidade se torna matéria de experiência somente pela intrusão ambiental, Winnicott afirma estar diante do campo da doença.

Quando o primeiro padrão não está estabelecido não pode haver fusão, a não ser de um modo secundário, através da ‘erotização’ de elementos agressivos. Eis aí uma das raízes das tendências sádicas compulsivas, que vez por outra transforma-se em masoquismo. O indivíduo não consegue sentir-se real a não ser quando se comporta de modo destrutivo e impiedoso. . . . Aqui o erótico funde-se à motilidade, enquanto na saúde é mais correto dizer que a motilidade funde-se ao erótico. (Winnicott, 1950- 1955/2000a, p. 299)

Por meio destes padrões de negociação, podemos perceber que o resultado da negociação entre a força-vital de expansão, a motilidade natural do feto e as formas de oposição do ambiente conduzem a inclusão do potencial agressivo no impulso do amor primitivo (Pinheiro, 2018). O estudo da motilidade na teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott (1950-1955/2000a), permite-nos compreender quantos fenômenos importantes, através do movimento corporal fetal no encontro com o ambiente, ocorrem nos primórdios da constituição subjetiva, antes mesmo do nascimento e da primeira mamada teórica, mesmo em um tempo em que a organização do ego ainda é extremamente imatura. A soma das experiências motoras favorece de modo bastante significativo a capacidade do indivíduo de começar a existir, e por meio da identificação primária, “rejeitar a casca e tornar-se o núcleo” (p. 300), a partir de um ambiente suficientemente bom. Somente através de um ambiente suficientemente bom é que poderá ocorrer o processo de diferenciação.