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5 O GESTO ESPONTÂNEO DE WINNICOTT: REVERBERAÇÕES

5.4 ESCUTAR COM OS OLHOS

A experiência clínica com os pacientes surdos, evidenciou a necessidade de considerar a importância do manejo do setting. Delimitamos o estudo desta pesquisa na temática do gesto, devido ao gesto estar mais próximo das línguas de sinais, por sua similaridade na modalidade de expressão (viso-espacial), e também, por conseguinte, devido aos indícios apresentados com frequência pelos pacientes em questão (especialmente aqueles com alguma restrição linguística), alusivos a uma dependência exacerbada e à intensa exigência da disponibilidade do terapeuta/analista. Supõe-se que, em princípio, isso possa estar relacionado às especificidades sensoriais, linguísticas e sociais, conforme descrito ao longo deste trabalho. Contudo, cabe resguardar o fato de se tratar, evidentemente, de aspectos passíveis de serem manifestados por todas as pessoas, resguardando a relatividade de cada caso e os aspectos transferenciais e contratransferenciais implicados em cada relação.

A proposta do presente estudo alude à clínica psicanalítica com pacientes surdos e os desdobramentos observados na maioria dos casos, provenientes das especificidades da condição surda. Embora seja uma tarefa complexa e delicada, considerando a centralidade da singularidade para a psicanálise, parece-nos possível elencar alguns elementos evidenciados com mais frequência nesta clínica em específico, os quais nos endereçam a tomar o manejo do setting, a presença do analista e o holding como importantes recursos técnicos nesse cenário. À guisa de exemplo, ainda podemos citar o uso de um dos dispositivos clássicos da técnica psicanalítica tradicional: o divã. No caso dos pacientes surdos, o divã é um impeditivo concreto, sendo necessário que o processo analítico ocorra face a face. Esse é um aspecto de extrema importância para o trabalho analítico, sobre o qual vários outros elementos essenciais à psicanálise despontam, tais como: a fala, a associação livre, a atenção flutuante, a inação como modo de endereçamento ao inconsciente. Em vista do que interrogamos ao longo desta pesquisa, a partir da prática clínica com pacientes surdos, compreendemos a necessidade de se pensar em variações do dispositivo analítico, ou seja, de incluir outro instrumento que

endereçasse ao inconsciente e que permitisse a escuta. A escuta face a face, considerando as especificidades em termos linguísticos e sensoriais, como as expressões faciais, corporais, os gestos, os movimentos amplificados neste contexto, tanto do paciente, quanto do analista ao utilizar a língua de sinais. Um outro modo de conceber o processo analítico, metaforicamente, tal como descrevemos no início deste trabalho sobre o processo de desenvolvimento emocional no caso dos bebês surdos, que pode ocorrer distintamente no sentido de encontrar outros organizadores perceptuais psíquicos que exercem papéis distintos ao habitual.

Repensar a clínica psicanalítica contemplando outras dimensões da linguagem, dentre elas o gesto22 foi o ponto nodal que impulsionou a presente pesquisa. Sobre tais manifestações,

Winnicott (1968/1994b, p. 163) profere: “um grande número de detalhes comportamentais que se achava fora do domínio da verbalização”23. Tal dimensão, muitas vezes é negligenciada no

meio psicanalítico, no qual prevalece a ênfase na palavra/fala e na interpretação do inconsciente como principal recurso técnico. Essa dimensão da linguagem nos remete aos primórdios do desenvolvimento emocional no qual a linguagem, como instrumento representacional, ainda não opera, e a interação entre bebê e mãe se processa de forma não-verbal.

Na prática clínica, deparamo-nos com situações inusitadas que nos convocam a repensar o arsenal teórico que nos embasa. Nesse sentido, o manejo do setting, nesses casos, denota ser um recurso fundamental, especialmente no sentido do analista se adaptar às necessidades do paciente, voltando sua atenção e escuta para as possíveis formas de comunicação deste, acolhendo seus movimentos, manifestações, e assim, ao dotá-los de sentido, transformá-los em gestos.

De acordo com minha experiência clínica, oferecemos (isto é, prometemos) algo aos nossos pacientes, a saber, o espaço, o tempo e a oportunidade de dizer o que lhes dói e o que lhes falta, na linguagem que lhes é possível, e ao mesmo tempo lhes fazemos uma demanda no sentido contrário, ou seja, de que se submetam ao regime rigidamente organizado das nossas técnicas e que falem conosco de um modo inteiramente fora do seu alcance. (Khan, 2000, p. 36)

Como vimos, na ótica winnicottiana, o setting analítico fundamenta-se nos aspectos alusivos à mãe/ambiente, dessa forma, por meio da relação transferencial, o analista pode

22 Conforme ressalvas efetuadas no decorrer desta investigação, salientamos aqui que não nos referimos ao gesto

do contexto do Bilinguismo da surdez, e menos ainda à língua de sinais, recordando neste ponto as descrições apresentadas sobre a distinção entre gestos e sinais. A temática deste estudo é o gesto na psicanálise winnicottiana.

23É pertinente endossar que quando nos referimos à verbalização entendemos que pode ser uma fala oral ou uma

fala sinalizada, demarcando o estatuto linguístico da língua de sinais, como abordado no capítulo inicial. Ou seja, a questão desta pesquisa é sobre esta outra dimensão da linguagem, a qual não é manifestada nem pela língua de sinais, nem pelas línguas orais, contudo denota estar mais próximo das línguas de sinais devido à similaridade na sua via de expressão, tornando as fronteiras mais tênues.

oferecer constância, previsibilidade e confiabilidade e assim, promover o desenvolvimento de aspectos da vida psíquica que não puderam avançar em função de falhas no desenvolvimento emocional. A adaptação no setting, para Winnicott, favorece aos pacientes a busca e o encontro de suas necessidades, e isso só poderá ocorrer se alguém estiver ali para escutar, reconhecer e acolher seus gestos. Conforme descrito no decorrer deste trabalho, não é possível estabelecer relação alguma se ninguém vier ao encontro do gesto e o desenvolvimento de um sentimento de self está intrinsecamente ligado à ressonância desse encontro.

Desse modo, podemos fazer uma analogia com os processos primitivos da constituição subjetiva na qual descrevemos como uma ação, aparentemente motora, torna-se gesto e como um gesto se torna criação, fundando operações psíquicas essenciais, principalmente alusivas à diferenciação do eu/não-eu, do encontro com a alteridade, a separação da realidade interna e externa e, assim, a possibilidade de viver criativamente, entre a onipotência e a submissão, entre o público e o privado, na eterna tarefa de transitar entre a realidade interna e externa. Conforme afirma Pinheiro (2009), “nós psicanalistas, somos convocados a intervir no sentido de restituir ao sujeito, essa possibilidade de interagir, criativamente com o mundo e sentir-se feliz com isso.” (p.137). Sendo assim, podemos considerar o manejo no setting clínico, como um espaço de escuta e de olhar diferenciados, que acolhe e promove a criatividade. Recordando aqui os estudos sobre a função especular materna, com base na qual entendemos que para poder olhar criativamente o mundo, o indivíduo primeiro precisa ter sido visto.

Nas palavras de Winnicott (1971/1975):

Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá o seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento. (p. 161)

Khan (2000), refere-se à presença corpórea de Winnicott como clínico, proferindo que ele “prestava atenção com o corpo todo”, podemos, portanto, pensar que a clínica winnicottiana é uma clínica que contempla também a escuta do corpo e com o corpo. A partir dessas considerações, podemos refletir sobre a importância de escutar os pacientes também por outras vias, por outras dimensões da linguagem, tal como propomos no título desta seção: “Escutar com os olhos”, baseado no texto de Khan (1977) “Ouvir com os olhos”, no qual o autor afirma que:

Tirei o título deste capítulo do último verso do 23º Soneto de Shakespeare, que diz: Ouvir com os olhos diz respeito a conhecer o outro amor. Ouvir com os olhos diz respeito a conhecer o outro através da experiência visual que temos dele ou dela. Não creio que este tipo de trabalho clínico seja possível fora de uma simpatia positiva e explícita pela pessoa do paciente e uma grande consideração pela sua presença corporal. Nestas circunstâncias, se não olharmos para um paciente e o, ou a, reconhecermos, falhamos no nosso empreendimento. A iconicidade da presença corporal de um paciente precisa ainda ser apresentada na sua gramática e na sua semântica. Mas a nossa ignorância de tal tema não nos deve desencaminhar, levando- nos a acreditar que ela, ou não existe, ou não é importante. (p. 304)

O percurso trilhado por meio desta pesquisa, parece nos indicar que a clínica psicanalítica com os pacientes surdos, a partir de recursos técnicos, como o manejo do setting e o holding, corresponde, de alguma forma, a adaptar-se às suas necessidades. Obviamente, com relação aos aspectos singulares de cada um, mas também com relação ao que retratamos como frequentemente apresentado e possivelmente decorrente dessa condição. Isso quer dizer da importância de reconhecer tais necessidades peculiares e acolher o paciente com o aparato linguístico e sensorial que possui. A começar pelo uso de um idioma compartilhado, ou seja, no caso dos surdos sinalizadores a necessidade do analista ser usuário da língua de sinais. Assim como, nos casos em que há evidente precariedade linguística, poder considerar a possibilidade de um trabalho com o gesto e seus desdobramentos no processo terapêutico, tal como nos propomos a explorar e descrever na presente dissertação. Podemos arriscar dizer, que adaptar- se às necessidades do paciente surdo é ‘escutar com os olhos’ aqueles que dificilmente são escutados, buscando possibilitar o encontro com suas próprias necessidades e potencialidades, favorecendo o rumo a uma independência relativa e a um viver criativo. Conforme afirmou Winnicott (1971/1975, p. 123) “Sempre esperamos que nossos pacientes terminem a análise e nos esqueçam: e descubram que o próprio viver é a terapia que faz sentido”.