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ESTADOS TRANSICIONAIS: O TERCEIRO MUNDO

4 AGRESSIVIDADE E CRIATIVIDADE NO DESENVOLVIMENTO

4.4 ESTADOS TRANSICIONAIS: O TERCEIRO MUNDO

Winnicott (1988/1990) postula que, a partir da repetição das vivências primitivas e das impressões sensoriais ocasionadas por estas experiências, memórias são construídas. Conforme vimos, por meio do ato de amamentar, há o encontro com objeto, e com o passar do tempo o bebê começa a ter confiança de que o objeto do desejo pode ser encontrado, conseguindo assim, tolerar a ausência deste. E é por esse viés que o bebê começa a conceber a realidade externa, um lugar onde os objetos aparecem e desaparecem. “Através da magia do desejo, podemos dizer que o bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato, através da sensível adaptação da mãe” (p. 126). A essa dimensão do viver que não depende nem da realidade interna, nem da realidade externa, que é o espaço onde ambas as realidades se encontram e separam o interior do exterior. Para isso, Winnicott emprega diferentes termos: terceira área, terceiro mundo, área intermediária, espaço potencial, local de repouso e localização da experiência cultural (Abram, 2000).

Podemos observar este controle mágico do bebê sobre o mundo quando o mesmo chupa os dedos, mexe no rosto, murmura um som ou agarra um pano, manifestando a onipotência permitida pela adaptação materna. A mãe suficientemente boa, através da adaptação às necessidades do bebê, possibilita a ilusão de que o seio dela faz parte do próprio bebê, e que estaria sob o controle mágico deste. “A onipotência é quase um fato da experiência” (Winnicott, 1971/1975, p. 26). Ao interrogar-se o que se quer dizer com a expressão “suficientemente boa”, nesse contexto, Winnicott (1960/1983e) postula:

A mãe suficientemente boa alimenta a onipotência do lactente e até certo ponto vê sentido nisso. E o faz repetidamente. Um self verdadeiro começa a ter vida, através da força dada ao fraco ego do lactente pela complementação pela mãe das expressões de onipotência do lactente.

A mãe que não é suficientemente boa não é capaz de complementar a onipotência do lactente, e assim falha repetidamente em satisfazer o gesto do lactente; ao invés, ela o substitui por seu próprio gesto, que deve ser validado pela submissão do lactente. Essa submissão por parte do lactente é o estágio inicial do falso self, e resulta da inabilidade da mãe sentir as necessidades do lactente.

É uma parte essencial de minha teoria que o self verdadeiro não se torna uma realidade viva exceto como resultado do êxito repetido da mãe em responder ao gesto espontâneo ou alucinação sensorial do lactente : (Esta ideia está intimamente ligada à de Sechehaye contida na expressão “realização simbólica”. Essa expressão tem tido uma participação importante na teoria psicanalítica moderna, mas não suficientemente acurada, uma vez que é o gesto ou alucinação do lactente que se torna real, sendo a capacidade do lactente de usar símbolos o resultado.) (p. 133)

Nesse processo, a tarefa final da mãe é desiludir gradualmente o bebê, contudo o êxito dessa tarefa depende de a mãe ter possibilitado momentos suficientes para a ilusão. “Não há

nenhuma desilusão (aceitação do princípio da realidade), exceto com base na ilusão” (Winnicott, 1970/2005c, p. 32). Para passar do lugar de aperceber subjetivamente para perceber objetivamente, o bebê precisa ter passado por suficientes experiências de ilusão, caso contrário a elaboração da diferença entre eu e não-eu ficará deturpada (Abram, 2000). Winnicott (1971/1975) denomina os objetos e fenômenos relativos a estas vivências de “transicionais” e, assim, essa área ilusória assume uma forma que dá origem a um dos célebres conceitos da perspectiva winnicottiana: o objeto transicional. O objeto transicional, também chamado pelo autor de primeira possessão, é paradoxalmente um objeto que o bebê criou, embora saiba-se do ponto de vista da mãe ou do observador que o objeto já existia, e que foi apresentado ao bebê pela mãe. “Os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da ilusão, sem os quais não existe para o ser humano, significado na ideia de uma relação com o objeto que é por outros percebido como externo a esse ser” (Winnicott, 1971/1975, p. 26).

É claro que algo mais é importante aqui, além da excitação e da satisfação orais, embora estas possam ser a base de todo o resto. Muitas outras coisas importantes podem ser estudadas, tais como:

1. A natureza do objeto.

2. A capacidade do bebê de reconhecer o objeto como ‘não-eu’. 3. A localização do objeto – fora, dentro, na fronteira.

4. A capacidade do bebê de criar, imaginar, inventar, originar, produzir um objeto. 5. O início de um tipo afetuoso de relação de objeto. (Winnicott, 1971/1975, p. 14)

O objeto transicional não é significativo por ser uma coisa, o que importa não é o objeto em si, mas o uso desse objeto, que é essencial no processo de desenvolvimento emocional, por auxiliar a criança a sustentar uma realidade interna que se amplia e evolui, possibilitando a diferenciação do mundo que não é o eu (Khan, 2000). Deste modo, cabe dizer, que Winnicott (1971/1975) considera até mesmo o balbucio ou a melodia entoada pela criança mais velha ao se preparar para dormir fenômenos transicionais que incidem nessa área intermediária. O autor descreve em síntese as qualidades específicas do relacionamento entre o bebê e o objeto transicional:

1. O bebê assume direitos sobre o objeto e concordamos com esse assumir. Não obstante, uma certa ab-rogação da onipotência desde o início constitui uma das características.

2. O objeto é afetuosamente acariciado, bem como excitadamente amado e mutilado. 3. Ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê.

4. Deve sobreviver ao amar instintual, ao odiar também e à agressividade pura, se esta for uma característica.

5. Contudo, deve parecer ao bebê que lhe dá calor, ou que se move, ou que possui textura, ou, que faz algo que pareça mostrar que tem vitalidade ou realidade próprias. 6. Ele é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o ponto de vista do bebê. Tampouco provém de dentro; não é uma alucinação.

7. Seu destino é permitir que seja gradativamente descatexizado, de maneira que, com o curso dos anos, se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Com isso quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não 'vai para dentro'; tampouco o sentimento a seu respeito necessariamente sofre repressão. Não é esquecido e não é pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato de que os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre a 'realidade psíquica interna' e 'o mundo externo, tal como percebido por duas pessoas em comum', isto é, por todo o campo cultural. (Winnicott, 1971/1975, p. 18)

Deste modo, os termos objetos e fenômenos transicionais dizem respeito a um ‘entre’, à área intermediária da experiência, “entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário da dívida e o reconhecimento desta” (Winnicott, 1971/1975, p. 14). Essa terceira parte da vida de um ser humano existe como um lugar de repouso, no qual o indivíduo pode descansar da contínua e complexa tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, embora inter-relacionadas. Winnicott (1988/1990), destaca a importância destes primeiros objetos e fenômenos transicionais, e o quanto persistem ao longo da vida, ampliando-se posteriormente para o brincar, para a criatividade e apreciação artísticas, para a religião, para o sonhar, dentre outros modos de descanso da perpétua tarefa humana de discriminar fantasia e realidade. “Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita” (p. 127). O conceito de objeto transicional postulado por Winnicott proporcionou reflexões sobre a função da cultura no sentido positivo e construtivo à experiência humana.