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Capítulo 1 – Da etnografia na Criação das Identidades Nacionais

1.2. Da formação das nações na Europa

As primeiras nações, na aceção moderna da palavra, ou seja, política, datam do século XVIII. Na sua génese esteve uma revolução ideológica – que teve uma forte expressão na Revolução Francesa de 1789 –, que concebeu a nação como uma grande comunidade. Contudo, de que valores estamos a falar? Em 1882, Ernest Renan comentaria que “L’existence d’une nation est (pardonnez-moi cette métaphore) un plébiscite de tous les jours […]”118. O objeto deste plebiscito é constituído por um

legado de recordações, um “culto” aos nossos antepassados e ao património legado por eles119. O processo da formação identitária começou assim por determinar o património material e imaterial de cada nação e difundir o seu culto. Contudo, este processo de construção identitária não aconteceu do mesmo modo para todas as nações, nem em simultâneo.

Em 1815, a batalha de Waterloo encerrou um longo período de conflitos na Europa, precipitados pela Revolução Francesa. Conquanto o Congresso de Viena tenha reestabelecido as fronteiras da Europa e se tenham reestabelecido ou consolidado as ordens imperiais, as ideologias que conduziram as revoluções francesa e americana continuavam a exercer uma força de oposição aos governos baseados no privilégio aristocrático. Nas palavras de Anne-Marie Thiesse, “a construção nacional não esteve associada a um tipo de governação específico”120. Se a Revolução Francesa deu ao

118 RENAN, Ernest – “Qu’est-ce qu’une nation?” Conférence faite en Sorbonne, le 11 Mars 1882. In

Oeuvres Complétes d’Ernest Renan. Paris: Calmann Lévy, 1882, p. 28.

119 Cf. op. supra cit., p. 26.

Estado uma soberania e fez da República a sua expressão política, na maioria dos restantes casos, as nações emergiram num contexto monárquico121.

A esta conjuntura política e social, junta-se a revolução industrial, que conheceu na Inglaterra um período de maior e mais rápido desenvolvimento, sobretudo pelo facto do país ter sobrevivido às guerras sem ocupação e sem graves derrotas militares122. Ao interesse pelo moderno e pelo avanço tecnológico, aparelha-se, numa expressão oposta, o interesse pela paisagem, pelo rural e pelo artesanal, fomentado por circunstâncias várias. As paisagens reproduzidas pelos primeiros pintores franceses na floresta de Fontainebleau a partir de 1830 tornam-se “locais a ver”, a tal ponto de Napoléon III decretar, a 13 de Abril de 1861, uma zona de reserva artística com 1097 hectares123. A profusão que as representações paisagistas vão conhecer, a par com as descrições literárias do clima, das plantações, das cores das terras, dos costumes e das gentes, vão despertar o interesse para as diferenças paisagistas de cada nação. Nas palavras de Anne Marie-Thiesse, a paisagem torna-se portanto num elemento diferenciador, num emblema da nação. Atente-se, por exemplo, que o símbolo paisagístico nacional norueguês não é o vale, nem a floresta, mas o fiorde, “cuja cor e verticalidade contrastam fortemente com as verdes pradarias do antigo possessor dinamarquês e as não menos verdes florestas do novo possessor sueco”124. A Noruega também compreende florestas e vales nos seus territórios. Contudo, o fiorde constitui um elemento diferenciador geográfico e, simultaneamente, político. Outro exemplo: a Hungria contém, como a Áustria, grandes montanhas e colinas. Contudo, é a Puszta que os poetas e os pintores húngaros perpetuaram como “paisagem típica” húngara. Na Suíça, apesar do alargamento do território no início do século XIX, foi a paisagem alpina que predominou. Percebem-se, portanto, reivindicações políticas e territoriais e até mesmo modas na génese do interesse que as paisagens despertaram. Contudo, seria

121 Cf. THIESSE, Anne Marie – A criação […], p. 19. Sobre este assunto e a título de exemplo, lembre-se

que a unificação da Alemanha como Estado-nação ocorreu em 1871, com a criação do Império Alemão sob o governo do Imperador Guilherme I (r. 1861-1888). A instituição de uma república só viria a acontecer em 1918. Ainda sobre a França, após revolução de 1830, veio a ser constituída a monarquia constitucional com Louis Philippe.

122 Cf. HARRISON, Charles; WOOD, Paul J.; GAIGER, Jason [ed.] – Art in Theory 1815-1900 An Anthology of Changing Ideas. United Kingdom: Blackwell Publishing, [s. d.], p. 11.

123 NAPOLÉON – “N.º11-764 – Décret impérial relatif à l’aménagement de la Forêt de Fontainebleau.”

In Bulletin des lois de la République française. Paris: Imprimerie nationale des lois, 1861, p. 577-578. Disponível em: http://foret-de-fontainebleau.blogspot.pt/1970/01/decret-imperial-relatif-lamenagement- de.html

interessante refletir, numa análise de conjunto, se há uma procura consciente de uma paisagem nacional, com que objetivos e como se processa esta procura. Embora ultrapasse os objetivos da nossa investigação, não pudemos deixar de trazer algumas reflexões sobre o caso português. Baseando-nos nos estudos de Paulo Batista, entendemos que não existiu tentativa de definição de um arquétipo de paisagem portuguesa, mas o registo das múltiplas paisagens portuguesas. Neste sentido, saliente- se que o primeiro fotógrafo paisagista em Portugal foi Frederick Flower, um inglês que se sediou no Porto, na década de 1850 e que fotografou diversas vistas da cidade e arredores. Entre 1861 e 1863 é publicada, sob a direção de Joaquim Possidónio Narciso da Silva, a Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal, um conjunto de fotografias e textos de 24 monumentos de Lisboa, Santarém, Porto, Coimbra e Sintra. A esta publicação seguiram-se Monumentos Nacionais de Henrique Nunes, Panorama

Photographico de Portugal que contou com a colaboração de Carlos Relvas e o Álbum Lisbonense de Augusto Xavier Moreira, referindo apenas alguns exemplos125.

Simultaneamente às edições, vários fotógrafos conceituados tinham coleções de vistas que comercializavam nos seus ateliers e nas livrarias e papelarias do Porto e Lisboa126.

Já na década de 80 do mesmo século, a publicação da revista Occidente (1877-1899) originou uma sistemática divulgação de imagens, nomeadamente de vistas do norte do país e das novas vias de caminho de ferro “que totalizaram mais de 100 fotografias referenciadas durante os 22 anos de edição.”127 Juntamente com a revista Occidente, as

publicações Archivo Pittoresco (1856-1868) e Panorama (1837-1868) “terão sido os mais importantes veículos de divulgação iconográfica que a grande tiragem das publicações permitia chegar a um público alargado.”128 Estas publicações e projetos

desde logo revelaram aspetos muito importantes no panorama fotográfico português, nomeadamente a realização de expedições. Destas resultaram diversos trabalhos como:

O Soajo, um álbum dedicado à Serra do Soajo, que ficou pelo prospeco introdutório; o

projeto Portugal Antigo e Moderno (1883), um conjunto de 800 fototípias de monumentos e outras obras de arte nacionais, que não chegou a ser realizado, mas terá

125 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza. A Paisagem na Obra fotográfica da Casa Biel.” In

ACCIAIUOLI, Margarida; LEAL, Joana Cunha; MAIA, Maria Helena – Arte e Paisagem. [s. l.]: Instituto de História da Arte Estudos de Arte Contemporânea, 2006, p. 132-133.

126 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 133. 127 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 14. 128 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 134-135.

servido como um ensaio para a futura obra Arte e Natureza em Portugal; os álbuns

Portugal-Gerez (1887) e Portugal-Espinho (1898), uma colaboração entre a Casa Bïel e

Joaquim de Vasconcelos, nos quais foram publicadas algumas das fototípias que viriam a integrar a obra A Arte e Natureza em Portugal; os álbuns Caminhos de Ferro e

Caminhos de Ferro do Douro, que:

“representaram uma autêntica ruptura na fotografia portuguesa do século XIX. Grande parte das fotografias revelam uma abordagem fotográfica totalmente nova, […] pelo enquadramento cenográfico e monumental da panorâmica traduzindo toda a beleza rude e inóspita do vale do Douro com o seu leito profundamente cavado por entre vertentes abruptas, com uma discreta presença humana que se revela insignificante perante a força da natureza que, agora, uma nova mão humana procura dominar. […] Essa perspectiva era totalmente nova na fotografia portuguesa da época e constituirá uma das linhas estéticas exploradas em A Arte e a Natureza em Portugal.”129

Relembre-se ainda o contacto que Emílio Bïel tinha com os artistas da primeira geração naturalista130, e portanto, com a Escola de Barbizon. Certamente que este contacto terá sido importante para o fomento do gosto naturalista de Emílio Bïel e que estará na origem da obra A Arte e Natureza em Portugal. Nas imagens publicadas neste álbum, predomina um “fundo de ruralidade […] numa visão que, de facto, ainda tem muito de garrettiano”131, como se verifica nas vistas de vilas e cidades predominantemente rurais como Mafra, Monção, Vila Viçosa, Lagos, Amarante, Caminha, Montalegre, Chaves, Valença, Barcelos, entre muitas outras. Ao domínio do rural, aliam-se os monumentos nacionais, as ruínas e os costumes regionais. Usando as palavras de Paulo Baptista, a obra A Arte e Natureza em Portugal “é o primeiro projeto português de grande fôlego que assume o registo e divulgação de património traduzindo a consciência da necessidade de um levantamento do património […].”132 A natureza é

registada em aliança com o património, quer artístico, quer arquitetónico, quer folclórico, quer industrial, realçando-se, portanto, uma nova consciência para o registo de costumes, de monumentos e da vida rural.

Ao interesse pela paisagem junta-se, como já dissemos, o interesse pela vida rural. A saída dos pintores do atelier para os ambientes naturais traz novos temas à pintura, nomeadamente a representação do pitoresco. Atente-se, contudo, que na obra do grupo de artistas que trabalham em Fontainebleau, a representação do homem e do

129 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 137. 130 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 137-138. 131 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 139. 132 Cf. BAPTISTA, Paulo – “A arte da Natureza […]”, p. 136.

trabalho rural não tinha como objectivo a crítica social. O elemento humano surge integrado na natureza, mesmo quando é representado em primeiro plano, como se verifica nas telas de Jean-François Millet. A saída dos artistas do atelier e as viagens para as florestas de Fontainebleu justificavam-se precisamente por a natureza ser entendida como um espaço de liberdade de expressão, onde o indivíduo entra em contato consigo mesmo. A natureza proporcionava aos artistas um estilo de vida calmo, distante dos problemas sociais, económicos e urbanos que se faziam sentir em Paris.

Simultaneamente, a sobreprodução das indústrias vai influenciar a forma das cidades e a vida dos seus habitantes. Os centros das cidades têm de acolher novas formas de atividades de direção, públicas e privadas. O aumento da população e o funcionamento do sistema económico, originaram o aumento do uso dos espaços da cidade e a uma dificuldade crescente de circulação e de habitação133. No conjunto das ideologias e soluções que estão na base das novas formas urbanas, interessa-nos destacar as cidades-jardim, conceito fundado por Ebenezer Howard (1850-1928) em

Garden Cities of To-morrow, obra publicada em 1898. A ideia fundamental da cidade-

jardim de Howard resume-se a uma conceção social nova que alia a evolução industrial com um reencontro com a natureza. Na ideia de Howard, a coletividade seria proprietária dos solos, mas nunca o seria das casas ou das fábricas, os serviços gerais nunca seriam submetidos a nenhum monopólio e a liberdade individual nunca seria posta em causa. O esquema de Howard não procurava ser um organismo urbano completo, mas simplesmente um modo de habitação comunitário, em contato com a natureza134.

O rápido desenvolvimento tecnológico e a consequente substituição das indústrias manufacturadas pelas máquinas, deram igualmente origem a uma consciência de preservação da cultura popular. Cerca de uma década antes da publicação de Ebenezer Howard, o movimento Arts and Crafts nascia como uma tomada de consciência sobre os efeitos da industrialização no design dos produtos, no trabalho manufacturado e no modo de viver das pessoas. Em resposta à industrialização, o Arts and Crafts definiu princípios para viver e trabalhar e valorizou a qualidade dos materiais e do design dos produtos. Com este fim deu-se início às recolhas da literatura e da

133 Cf. DELFANTE, Charles – A grande história da cidade: da Mesopotâmia aos Estados Unidos. Lisboa:

Instituto Piaget, 2000, p. 286-287.

poesia popular, bem como a passagem para notação das músicas populares. Há uma difusão dos estudos das línguas nacionais e a institucionalização dos trajes folclóricos regionais e nacionais135. O uso destes trajes estava condicionado às épocas festivas, surgindo como peças de um museu vivo. Museu vivo esse que conheceu, com a criação das exposições internacionais e nacionais a partir de 1851, um dos seus melhores meios de expressão identitária, sempre sob o signo da “tradição”136.

1.3. Da circulação de modelos: as exposições universais e os museus