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Capítulo 1 – Da etnografia na Criação das Identidades Nacionais

1.4. Da historiografia da etnografia portuguesa (1875-2016)

1.4.1. Dos valores de identificação nacional do Estado Novo à sua materialização

O percurso da “formatação do gosto moderno pelo popular”156 tem sido

estudado e revisitado por vários investigadores. Primeiramente pela História da Arte, de onde se destacam os contributos de José-Augusto França e os de Margarida Acciaiuoli, passando pela Historiografia, com os trabalhos de Jorge Ramos do Ó, entre outros. Num primeiro momento, debruçaram-se sobre as principais figuras, exibindo sobretudo a de António Ferro. Num segundo momento, destacam-se as instituições criadas pelo Estado Novo. Aos poucos, foi possível surgirem estudos sobre objetos marginais do regime, como a propaganda e o entretenimento157.

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Em 1938 são publicados e divulgados os sete cartazes alusivos à “Lição de Salazar”. Segundo João Medina, esta série compreende uma dupla significação: por um lado, são cartazes didáticos, instrutivos; por outro lado, agregam em si o programa, o timbre, o propósito do regime salazarista158. E chama a atenção para o cartaz intitulado

Trilogia da Educação Nacional: Deus, Pátria, Família, afirmando ser o que melhor

corporiza o ideário estadonovista e que tem como cenário uma “pequenina casa portuguesa”159.

A família é aqui apresentada segundo dois significados: o lar salazarista e a família social. No primeiro, há aqui uma “preponderância por uma tipologia de casas (tidas por rústicas) que além de reproduzirem tipos idealmente portugueses, têm acima de tudo por missão criar uma visão e uma noção portuguesas.”160 Saliente-se a tentativa de definição da “Casa Portuguesa” de Raul Lino à representação de um “Império Português” na Exposição do Mundo Português de 1940. Simultaneamente, o lar

salazarista compreende um modus vivendi que define o papel de cada um dos membros

da família – pai, mãe e filhos. O conceito família social define os seus aspetos sociais,

156 LEAL, João - “Da Arte Popular às Culturas populares Híbridas.” Etnográfica: revista do Centro de

Estudos de Antropologia Social. Lisboa: Celta Editora, Vol. 13, n.º2 (2009), p. 474.

157 Um destes estudos, fundamentais para a nossa investigação: ALVES, Vera Marques - O Estado Novo,

a Etnografia portuguesa e o Museu de Arte Popular. Lisboa: Museu de Arte Popular, 2011.

158 Cf. MEDINA, João – “Deus, Pátria e Família: ideologias e mentalidade do salazarismo.” In MEDINA,

João [dir.] – HISTÓRIA de Portugal dos tempos pré-históricos aos nossos dias. Dir. João Medina. Vol. 12. Amadora: Ediclube, 1998, p. 16.

159 Cf. MEDINA, João – “Deus, Pátria e Família […]”, p. 17.

160 Cf. BOTELHO, Maria Leonor – “Memória e Identidade nacionais. O Portugal dos pequenitos e a

recriação de um Portugal monumental”. In De Viollet-le-Duc à Carta de Veneza. Teoria e prática do restauro no espaço Ibero Americano. Lisboa: LNEC, 2014, p. 65.

aqui representados pelo trabalho, de predominância rural, destacando-se a diferenciação regional, que neste sentido, adquire um duplo significado. Por um lado, aos valores tradições e costumes, entendidos nas práticas laborais de uma dada região, aliava-se um orgulho regional. Por outro lado, esta diversidade regional tinha como elemento unificador, o trabalho e a sua predominância rural, definindo-se um elo comum, portanto, o orgulho pela Pátria.

Neste sentido, Deus e Pátria são os elementos unificadores da diversidade regional, que surgia deste modo, envolvida numa unidade representada pelo trabalho e pela sua natureza rural.

A Trilogia foi materializada através das várias atividades organizadas pelos agentes do Estado Novo, que teve o seu início, como vimos, com uma vasta operação restauradora e de recuperação e valorização patrimonial, com a instituição de celebrações – das festividades populares e as romagens a lugares históricos às grandes exposições ideológicas do Estado Novo – e que atingiu uma forte expressão com a política de “reanimação” da cultura popular de António Ferro (1895-1956)161.

Ainda antes de Salazar assumir formalmente o poder em 1932, já se levava a cabo uma campanha reconstrutiva que se estendera sobre o território nacional. Esta campanha tinha como intenção esconjurar a “desordem” instituída, o “caos” económico e social e a “perda” de uma identidade aglutinadora162. A Direção Geral dos Edifícios e

Monumentos Nacionais (DGMEN) foi fundada em 1929 precisamente para dar corpo à ordem patrimonial que o novo regime instaurara. Contudo, Margarida Acciaiuoli chama a atenção para:

“Num primeiro momento, tentou-se acordar a necessidade de recuperação patrimonial com a vaga patriótica de fundo e identificou-se a sua pulsão com os objectivos do novo regime. Depois, tentou-se desviar a invocação e a vocação patrimoniais para períodos mais precisos da História, desembaraçando o passado das épocas de “decadência” e retomando uma continuidade heróica onde deveria caber o presente.”163

Ainda sobre as realizações do século precedente, e como já foi aqui abordado, estas iniciaram práticas e modelos de exposição que iremos encontrar ainda nas

161 Sobre este assunto é de consulta obrigatória a obra TOMÉ, Miguel – Património e restauro em

Portugal: 1920-1995. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998.

162 Cf. ACCIAIUOLI, Margarida – Exposições do Estado Novo 1934-1940. [s. l.]: Livros Horizonte,

1998, p. 11.

atividades promovidas pelos agentes do Estado Novo, nomeadamente pelo Secretariado de Propaganda Nacional, depois Secretariado Nacional de Informação (SPN/SNI). A título de exemplo, o Verde Gaio surge num modelo semelhante ao da opereta O

Doidivanas da aldeia, apresentada durante a Exposição do Milénio Húngaro de 1896.

Nesta foi pedido aos atores, vindos de comboio de duas aldeias do Sul, que trouxessem os seus verdadeiros trajes e que falassem o seu dialecto em palco164. Como vimos anteriormente, a Exposição do Milénio Húngaro exalta o nacionalismo, criando uma unidade na diversidade – geográfica e cultural – e colocando o moderno em paralelo com o tradicional. Este princípio ideológico nacionalista será o mote para as primeiras realizações do governo de Salazar.

O princípio nacionalista e de salvaguarda da cultura popular do século precedente é usado como ponto de partida pelo regime, mas em pouco tempo é direcionado para um elogio aos “valores morais” da vida rural, que vão encontrar uma das suas maiores expressões com a fundação do Museu de Arte Popular de Lisboa, dos museus das Casas do Povo e dos museus regionais de etnografia.

O Museu de Arte Popular de Lisboa, fundado em 1948 na sequência da Exposição do Mundo Português a partir do Centro Regional/Secção de Vida Popular, surge como uma exaltação da arte popular, desde a sua coleção à própria arquitetura, originária da Exposição do Mundo Português. Cada sala era acompanhada por uma legenda poética que pretendia caracterizar cada região. A sala dedicada à região de Entre Douro e Minho era apresentada pela legenda “Entre Douro e Minho, caixa de brinquedos de Portugal”. Outros exemplos deverão ser referidos, como a sala de “Trás- os-Montes, Cruzeiro de Portugal, Granito e Céu”, a sala de “Beiras, Flancos de Portugal, a montanha e o mar na mesma cintura, a sala da “Estremadura, planície que sonha e que trabalha”, e do “Algarve, colorido rodapé numa terra de lendas.” Este modelo de apresentação regional, juntamente com as reconstituições de ambientes rurais que permaneciam imutáveis e a apresentação classificada de peças das várias regiões são os modelos museográficos que estarão na base da organização expositiva dos vários museus regionais etnográficos e dos museus das Casas do Povo.

Também profundamente submetidos ao ideário estadonovista, os Museus das Casas do Povo – museus dedicados à comunidade, instalados nas Casas do Povo e

ligados à escola primária e à igreja locais – surgem também como um meio de definir as peculiaridades de cada região. Os valores corporativistas das Casas do Povo, assumem- se como uma grande “Família”, que se apoia e instrui. Os valores da religião também se encontram presentes nestes museus pois haveria sempre um espaço dedicado a ela. No meio da diferenciação regional, a religião surgia, portanto, como o elo de união.

Capítulo 2 – Do Museu de Etnografia e História da Província