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CARTOGRAFIAS DEMASIADO OSCILATÓRIAS

2.1. A PLASTICIDADE DAS IMAGENS CONTEMPORÂNEAS 1 A inquietante história das imagens

2.1.3. Da fragmentação das imagens à sua «alucinação» generalizada

«A investigação do leitor de fragmentos orienta-se no sentido de uma qualquer origem perdida (que em Novalis, paradoxalmente, parece estar no futuro). O leitor de fragmentos (…), tal como aquele que os escreve, sente-se atraído pelos começos, e tende a multiplicá-los, adiando sine

linea, qualquer género de conclusão».

(João Barrento)

«O fragmento implica um desfrute imediato: é um fantasma do discurso. Um bocejo do desejo, um traço do prazer (algo semelhante a um orgasmo poético». (Roland Barthes)

A linguagem fragmentária1 sempre foi considerada, independentemente dos

géneros ou das funções que lhe tenham sido atribuídas historicamente, pelo menos desde o romantismo alemão, como um complexo jogo de espelhos amplamente capaz de construir as mais variadas ligações entre as pessoas e o mundo, de tal forma que ela continua a funcionar precisamente como uma espécie de ponto de partida, e não como qualquer ponto de chegada em relação ao que quer que seja (daí a existência dos tais «efeitos indirectos» de que tanto falava Italo Calvino a propósito, por exemplo, da arte e da literatura). Aliás, desde o período da pedra lascada em que os homens começaram por desenhar «figuras» (principalmente de animais) dentro e fora do corpo das cavernas até chegarmos a alguns dos mais complexos sistemas de informação digital, o que a linguagem parece ter andado a fazer (se bem que estas afirmações sejam sempre demasiado redutoras), talvez não tenha sido outra coisa senão o de funcionar como uma espécie de transporte simbólico da verdadeira libertação dos humanos em relação a tudo

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1 A linguagem fragmentária será aqui considerada como uma espécie de estrutura móvel ou de

“transporte” amplamente capaz de produzir, reproduzir e simular os mais variados efeitos simbólicos (poéticos, plásticos, fotográficos, cinematográficos, digitais), sendo assim percepcionada como uma linguagem criativa que se encontra em constante mutação, tal como é próprio da plasticidade de qualquer linguagem dos media (sejam estes quais forem), ou seja, iremos referir-nos a esta expressão sempre que pretendermos falar de uma imagem móvel, dinâmica, interactiva, ou que se apresente constantemente em trânsito entre as coisas, nomeadamente devido ao modo livre, dispersivo, transitório, subversivo, descontínuo e cinético de que ela tende a fazer uso sempre que falamos de algo que se possa situar no âmbito alargado da sua reflexão e da sua prática criativa, muitas vezes só comparável a uma espécie de estrutura interactiva, tal como esta tende a ser trabalhada durante o processo de construção (work in progress) de uma pequena narrativa hipertextual (produzida e disponibilizada nos mais variados contextos digitais).

180 aquilo que mais os oprimia, pois, a verdade é que durante séculos e séculos de história, eles mais não terão feito do que estar submetidos, tanto ao impiedoso jugo da natureza, como ao inquietante domínio de outros tantos homens. Por isso, nesta perspectiva, uma das grandes conquistas da chamada linguagem fragmentária, considerada aqui do ponto de vista da sua verdadeira condição de transporte capaz de «produzir um efeito» criativo (seja este apresentado sob a forma de pontos, linhas, letras, palavras, frases, poemas, ideias, cores, imagens, corpos, ou objectos híbridos), terá sido não só o da tal libertação do humano em relação ao jugo dessa velha e complexa dialéctica de que tanto falava Hegel a propósito do «senhor e do escravo», mas também o de ter conseguido alargar os horizontes criativos, e o quadro mental daqueles que a foram usando como verdadeiro instrumento de trabalho. Talvez seja precisamente por isso que todos nós tanto prezamos a liberdade que nos é conferida pelo facto de podermos escolher a nossa própria linguagem (o nosso próprio jogo de palavras, ou de imagens), ou ainda a nossa própria grelha de interpretação conceptual, sempre que pretendemos dar forma e sentido àquilo em que acreditamos.

Assim sendo, basta olharmos atentamente à nossa volta para percebermos imediatamente que são de facto os fragmentos provenientes dessa tal linguagem que constituem a estrutura da plasticidade essencial das coisas e dos seres que nos rodeiam (sejam estes ainda quais forem). É óbvio que também podemos argumentar que esses mesmos fragmentos podem ser percepcionados apenas como uma espécie de pequenas unidades atómicas ou moleculares (do ponto de vista da ciência), ou pequenas totalidades poéticas «tocadas pelo sopro das origens»2 (do ponto de vista da composição

literária), ou ainda como uma espécie de marca deixada no corpo, mas também no corpo da pedra, da madeira, do ferro, da tela, da película, do ecrã (tal como aconteceu em toda a arte moderna e contemporânea), ou seja, uma série de fragmentos que podem fazer parte de uma imagem maior ou mais pequena consoante estivermos a falar, por exemplo, de raízes, folhas, ramos, troncos, árvores ou floresta, mas todos eles, de qualquer forma, amplamente povoados por outros tantos elementos, e assim sucessivamente, quase até ao infinito das nossas próprias capacidades de percepção, isto se quisermos recorrer à imagem intuitivamente atraente do «cálculo infinitesimal»3 que

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2 Quignard, Pascal – Rhétorique speculative, Paris, Calmann-Lévy (1995), p.15.

3 Expressão habitualmente usada pela matemática, e por outros ramos da ciência, como por exemplo, a

biotecnologia, sempre que estas pretendem avaliar determinadas partículas (nano-partículas), cuja dimensão seja tão reduzida que se torna “impossível” percepcioná-las, ou medi-las senão através deste processo de avaliação.

181 nos permitiria assim prolongar indefinidamente a ideia da existência dos tais elementos (fragmentos) que constituem a plasticidade e a diversidade da matéria de que serão feitas todas as coisas que existem à nossa volta. Aliás, esta é uma imagem de tal forma atractiva que nos permitiria expandir essa possibilidade criativa quase até ao infinito, pois, tal como diria Schlegel, na revista Athenaum (1798), «os fragmentos montados em cima das asas do desejo poético são capazes de potenciar incessantemente as coisas, multiplicando-as como uma série infinita de espelhos». Ora, pegando nesta ideia algo romântica do «fragmento»4 que, aliás, pode não ser assim tão romântica quanto isso,

principalmente se a percepcionarmos do ponto de vista do dinamismo, da descontinuidade, da simulação e da efervescência da actualidade, já que hoje em dia todos nós somos mais ou menos contaminados por uma multiplicidade tão alargada e variada de fragmentos (todos eles portadores de tantos significados possíveis) que tudo isso depois, na prática, pode vir a constituir, em muitos casos, uma ideia muito pouco romântica da vida contemporânea.

Mas tentando esquecer, pelo menos por enquanto, alguns desses aspectos provavelmente mais negativos, e pegando na ideia considerada romântica à época em foi escrita (1789), isto é, «nos primórdios do romantismo alemão» (segundo as palavras de Arlette Camion), nós diríamos então que a ideia de fragmento terá surgido no âmbito de um quadro mental alargado que entretanto se viria a caracterizar pela defesa e propagação exacerbada de uma visão individualista, subjectiva, e de constante afirmação e idealização estética do mundo, preconizando assim determinados ideais utópicos, e desejos de autêntico escapismo poético, ou seja, uma série de propostas criativas que se pretendiam contrárias à linearidade do progresso histórico, e do racionalismo amplamente defendidos durante todo o século XVIII («o século da Razão, __________________________

4 Segundo Arlette Camion, «a ideia de fragmento terá nascido no seio do primeiro romantismo alemão»

(Camion, 1999: 16). Já Philippe Lacoue-Labarthe, e Jean-Luc Nancy (1978) tendem a afirmar que os românticos terão sido apenas os grandes herdeiros de uma velha tradição histórica, toda ela também bastante fragmentária. Seja como for, o certo é que nos trabalhos dos românticos de Jena (especialmente de Friedrich Schlegel), parece não se ter encontrado qualquer “definição” de fragmento que o possa justificar enquanto género do que quer que seja. Aliás, outra coisa não seria de esperar, principalmente se tivermos em consideração alguns dos principais traços normalmente associados ao fragmento ou à linguagem fragmentária, toda ela completamente avessa a qualquer tipo de regra ou de definição que seja. Já no século XX, o fragmento parece apresentar-se não só como uma estrutura privilegiada de reflexão, mas também como uma espécie de plataforma interactiva de afirmação e questionamento de todas as formas de liberdade criativa, ou seja, questionamento da linguagem, questionamento do mundo, e acima de tudo, um feroz questionamento de todas as normas literárias e artísticas verdadeiramente instituídas durante séculos e séculos de história. Lacoue-Labarthe, Philippe, e Jean-Luc, Nancy – L`Absolu littérair. Théorie de la littérature du romantisme allemande, Paris, Éditions du Seuil (1978). Camion, Arlette – Uber Das Fragment (Du fragment), Heidelberg, Universite d`Orleans and Universitat-Gesamthochschule- Siegen (1999), p.16.

182 e das Luzes», tal como nós aprendíamos logo nos “primeiros anos” de escola). Ora, todos estes aspectos parecem-nos absolutamente pertinentes, não só porque viriam a contaminar toda a literatura e arte modernas, também elas amplamente associadas a um longo processo de descontinuidade, transitoriedade e fragmentação literária e estética das suas próprias narrativas, mas também porque serão precisamente alguns destes ideais que estarão na base dalguns dos mais interessantes, variados e interventivos movimentos de luta e resistência (poética, política, artística, científica, cultural e humana) empreendidos contra todas as formas de totalitarismo da razão, do progresso e da história da tão famigerada cultura ocidental. Basta para isso pensarmos, por exemplo, em Schlegel, e Novalis, mas também em Rimbaud, Baudelaire, Nietzsche, Burroughs, ou ainda em Valéry, Michaux, Benjamin, Deleuze, Enzensberger, entre tantos outros autores possíveis, salvaguardando, naturalmente, todas as grandes diferenças existentes entre cada um deles, mas cujo traço comum parece ter sido indubitavelmente o de todos eles terem lutado contra a ditadura da razão e da história, e a favor da conquista e da afirmação continuada das mais variadas formas de liberdade criativa.

Mas retomando a ideia anterior sobre a linguagem fragmentária e a sua capacidade de produção, reprodução e simulação da imagem das coisas (Schlegel/Novalis), nós diríamos que o grande trabalho desta linguagem, desde as suas origens pouco estabilizadas até hoje, terá sido sempre o de ter operado no sentido de tentar combater a rigidez das tais grandes imagens da história do mundo de que já falámos nos textos anteriores, ou seja, terá sido sempre o de ter procurado resistir e combater contra uma qualquer totalidade mítica das formas (que tantos estragos terão causado à tão famigerada cultura ocidental), mas também o de continuar a lutar contra um possível reaparecimento dessas velhas formas de totalitarismo que, aliás, nalguns casos, parecem querer começar a reaparecer, aqui e ali, um pouco por todo o lado, na europa e no mundo, e que se poderão vir a transformar em autênticas tragédias humanitárias, semelhantes ou muito piores ainda do que algumas daquelas que “ainda há bem pouco tempo” dizimaram alguns dos principais países da velha europa, estilhaçando assim, uma vez mais, o coração da humanidade inteira, toda ela já demasiado fragmentada e ferida, pelo menos desde a triste e revoltante barbaridade de Auschwitz, isto já para não recuarmos muito mais atrás na maldita escala dos acontecimentos temporais. Ou seja, a linguagem fragmentária tem servido justamente para levantar uma série de questões altamente preocupantes sobre a vida. Aliás, questões de tal maneira preocupantes que terão levado Adorno, por exemplo, a