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ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

1.1. A MODERNIDADE PARA LÁ DE SI PRÓPRIA 1 Esboços de um tempo de crise

1.1.3. Do «fim da arte» à sua disseminação total

«É através da arte que entramos no domínio da liberdade e da criatividade, num espaço onde a sensibilidade é evocada e infinitamente reconhecida, numa zona confusa de tudo e de nada,

onde não há fronteiras, nomes, categorias ou definições». (Klein)

Uma das linhas mais persistentes da teoria da arte moderna, e no sentido mais alargado do termo, da modernidade dita ocidental, tem sido a do anúncio permanente de uma espécie de certidão de óbito geral, ou então uma espécie de morte anunciada em relação a tudo e a mais alguma coisa, ou seja, «morte da arte»(Hegel)1, «morte de deus»

(Nietzsche), «morte do homem, sujeito, autor» (Foucault), mas também de «fim da história» (Fukuyama, Belting), «fim da filosofia» (Heidegger), da cultura, da ciência, da política, da esperança, do presente, do real, do futuro, da utopia. Ou seja, no fundo, tem sido sob «o inquietante signo da morte que a arte e a vida se tem realizado» diria ainda Vergílio Ferreira. No entanto, o que morreu não foi a arte, não foi a história, não foi a política, não foi a filosofia, não foi a cultura, não foi a ciência, não foi a utopia, não foi

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1Tal «como muitos outros conceitos hegelianos, também o da morte da arte», ou melhor, o do fim ou o da

falência de uma certa ideia de arte «se veio a revelar algo profético em relação aos desenvolvimentos efectivamente verificados na modernidade estética, embora não tanto no sentido exacto que tinha em Hegel, mas antes, como constantemente referiu Adorno, num sentido estranhamente pervertido (no quadro da metafísica moderna)». No fundo, «a morte da arte, é um daqueles termos que descrevem, ou melhor, constituem a época final da metafísica como Hegel a profetiza, como Nietzsche a vive, e como Heidegger a regista». Vattimo, Gianni – O Fim da Modernidade; Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, Lisboa, Presença (1987), pp. 45-46. Contudo, convém desde já salientar a propósito desta questão que Hegel não utilizará exactamente o conceito de «morte da arte», mas «a arte como algo que permanece como coisa do passado», tal como ele acabará por referir nas suas Lições sobre Estética, quando escreve que «a arte, do lado do seu destino supremo, é e permanece para nós como uma coisa do passado. Com isso, ela perdeu toda a sua genuína verdade e vitalidade, sendo então mais relegada na nossa representação à medida que for perdendo o valor e a necessidade de antigamente, deixando assim de assumir a sua posição superior na realidade». Hegel, Friedrich – Lições sobre Estética (X, 1, p.16). Ora, a partir daqui o tão anunciado «fim da arte» vaticinado por Hegel, mais não fará do que alimentar, gradualmente, uma multiplicidade de apelos, imagens, leituras e interpretações (desde as mais sérias e rigorosas até às mais criativas, humorísticas e provocatórias) que entretanto se virão a repercutir, directa ou indirectamente, no pensamento e na obra de determinados autores (pensadores e artistas) que, para todos os efeitos, irão conseguir reinventar algumas “ideias fortes”, ou pelo menos relançar alguns apelos mais ou menos dramáticos contra a arte e a sua própria história ou contra uma certa ideia da «historia da arte», sempre a partir dessa ideia algo original de Hegel, ou seja, autores tão diversos como, por exemplo, Hans Belting e o seu célebre «fim da história da arte» (1983), ou Arthur Danto e a sua ideia do «fim de uma determinada narrativa da arte» (1998), ou ainda Thierry de Duve com a perspectiva de que «os artistas são livres de fazer e de trocar n`importe quoi», ou seja, um sinal evidente de originalidade, vitalidade e criatividade dessa velha ideia Hegeliana, que entretanto terá percorrido algumas das mais interessantes e variadas operações e dinâmicas do pensamento e das práticas artísticas do último século.

92 o homem. Aliás, aquilo a que fomos assistindo não foi tanto à morte literal de cada um destes acontecimentos, mas ao «fim» gradual ou à crise generalizada de determinadas perspectivas, visões, leituras, imagens, narrativas e interpretações históricas proclamadas acerca de cada um destes fenómenos, e em particular ao «fim» generalizado de todas aquelas perspectivas que continuavam a defender e a proclamar o lugar destacado que a arte teria ocupado na cultura grega e medieval, mas que entretanto terá deixado de ocupar a partir da modernidade, passando assim a ser considerada apenas como uma «coisa do passado», ou seja, «perdendo assim o valor e a necessidade de antigamente» (Hegel, X, 1, p.16). É óbvio que esta versão do «fim da arte» vaticinada por Hegel, não se limitaria apenas a proclamar o fim da arte grega ou medieval ou tão só a anunciar o fim da chamada arte da antiguidade clássica, encarada aqui ainda como a tal «coisa do passado» referida por Hegel, tal como algumas leituras mais conservadoras ainda nos poderão fazer crer, se bem que a partir daí essa tal arte da antiguidade clássica tivesse de facto começado a abandonar o seu anterior pedestal (esta seria, aliás, uma leitura demasiado literal e redutora que, por isso mesmo, não nos interessa alimentar e desenvolver desde já neste trabalho).

Interessa-nos começar a perceber, isso sim, é que este vaticínio Hegeliano tenderá a ganhar muitos outros sentidos e possibilidade criativas, nomeadamente se for lido e interpretado à luz do contexto alargado de um período histórico que estava precisamente a passar por uma situação de crise, de falência e de colapso generalizado dalgumas das suas principais estruturas conceptuais, desde logo a começar pela «crise da razão», pela «crise da história», e pela «crise da ideia de progresso», ou seja, uma série de traços ou sintomas que no seu conjunto irão contribuir, decisivamente, para desencadear a falência generalizada desse velho «universal moderno» que entretanto seria amplamente criticado pelas chamadas «filosofias da suspeita» (Marx, Nietzsche e Freud)2. Ora, serão precisamente alguns destes traços ou sintomas de «crise» e de

«desilusão» generalizada que irão também contaminar uma grande parte das operações da chamada arte moderna, contribuindo estes assim, uma vez mais decisivamente, para que esta se venha a tornar demasiado incapaz de se dar conta daquilo que efectivamente estaria a acontecer à sua volta ou ainda demasiado incapaz de apreender a maioria dos traços daquilo que estaria efectivamente a acontecer no seu próprio tempo. Ou seja,

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2 Apesar da sua acentuada pertinência, estes serão alguns dos traços que não iremos desenvolver aqui em

pormenor, tão somente pelo facto de já os termos desenvolvido no primeiro ponto deste trabalho onde acabaríamos, aliás, por apresentar os sintomas generalizados dessa tal «crise da modernidade».

93 apesar da questão altamente problemática da «morte daarte» (redigida por Hegel entre 1815 e 1829) ter provocado um forte impacto na sociedade da época, e de ter ficado conhecida como uma das teses principais do seu livro dedicado às «Lições sobre Estética», a verdade é que este impressionante vaticínio do «fim da arte» terá começado precisamente por representar o fim de uma determinada ideia de arte até aí amplamente aceite e defendida por todos os seus principais protagonistas, mas que entretanto passaria a ser percepcionada por Hegel como uma «coisa do passado» (Hegel: X, 1, p.16), acentuando este assim a sua natureza ou dimensão predominantemente histórica, logo demasiado incapaz de corresponder às novas exigências de uma época que se encontrava em constante transformação e aceleração tecnológicas. Assim sendo, esta espécie de utopia teórica da «morte da arte» terá começado por representar a possibilidade altamente criativa do fim de uma certa ideia de arte (de natureza histórica), mas não tanto o fim também ele anunciado da arte em sim mesma, pois se isso tivesse verdadeiramente acontecido jamais nos teríamos continuado a confrontar com o problema decisivo da persistência reiterada das obras que, apesar de tudo, continuariam a pulular um pouco por todo o lado (sinal evidente da sua forte resistência à ideia de mortalidade).

Dito de outra forma, diríamos ainda que esta dimensão do «fim da arte», de carácter amplamente conceptual, não representará, paradoxalmente, o fim das obras de arte, bem pelo contrário, passará a representar precisamente a extensão ou o prolongamento da sua continuada existência, resistência e persistência criativa nos mais variados contextos (museus, colecções, galerias, feiras de arte, academias, etc). Sinal evidente de que não basta tão somente anunciarmos o «fim da arte» para que ela efectivamente desapareça da frente dos nossos olhos. Nesta perspectiva, convém ainda salientar um outro aspecto que consideramos bastante relevante, e que está relacionado com o facto deste anúncio decisivo do «fim da arte» ter coincidido, não só temporalmente, mas também ideologicamente (se é que se pode dizer assim) com o advento da fotografia ou, pelo menos, com a revelação das primeiras experiências fotográficas, o que na prática também passaria a constituir ou a simbolizar uma outra espécie de «morte da arte», agora não tanto de ordem meramente especulativa, mas seguramente de ordem prática ou artística, já que, neste caso, a fotografia, aqui percepcionada no contexto restrito do seu respectivo aparecimento, viria a representar precisamente uma espécie de ameaça contra a própria existência e domínio secular da pintura, da gravura e do desenho. Neste caso, tão só porque esta irá trazer ou arrastar

94 consigo um conjunto variado de técnicas e de leituras altamente inovadoras em relação a alguns dos principais problemas e operações desde sempre relacionados com as tradicionais temáticas do retrato, da paisagem, e da natureza-morta que pertenceram, aliás, durante séculos, ao domínio exclusivo da chamada «arte do passado» (Hegel), passando assim a fotografia, por estas razões, a indiciar os sintomas de uma nova «crise da arte», tal como refere claramente Benjamin quando escreve: «com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário (…), a arte sente a proximidade de uma crise» (Benjamin, 1992: 83). Uma crise que entretanto se viria a acentuar vertiginosamente ou que viria a ganhar outro tipo de contornos, principalmente com o aparecimento do cinema, e com a sua extraordinária capacidade de reprodutibilidade técnica da obra de arte, pois tal como nos dirá ainda Benjamin; «foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cuja satisfação plena ainda não chegou a hora. Aliás, a história de qualquer forma de arte apresenta épocas críticas, em que determinada forma aspira a obter efeitos que só muito mais tarde, perante um novo padrão da técnica, é que podem ser facilmente obtidos» (Benjamin, 1992: 105-106). Ou então como nos diria também André Breton; «a obra de arte só terá valor na medida em que vibrem nela os reflexos do futuro»3.

Por isso, a feliz coincidência destes dois momentos ou acontecimentos fundamentais da história da cultura ocidental, ou seja, o do anúncio da «morte da arte» feito por Hegel (entre 1815 e 1829), e a revelação das primeiras experiências fotográficas feitas pela mão de Niépce e Daguerre (na década de 1830), terão assim contribuído, decisivamente, não só para acentuar a crise dalgumas das principais categorias estéticas da modernidade, neste caso, a saber; da categoria de «belo», de «gosto» e de «forma», anteriormente consideradas como uma espécie de guias demasiado estáveis e seguros para a arte, mas terão contribuído, também decisivamente, para a falência ou crise generalizada da própria estrutura ou processo de autonomização da arte. Processo esse, aliás, que terá começado por ser amplamente redigido por intermédio da pena de Baumegarten (1714-1762) e depois devidamente acentuado pela respectiva conquista, afirmação e circulação generalizada do seu discurso, neste caso, plenamente desenvolvido em torno do domínio alargado da «teoria da sensibilidade», já que, para todos os efeitos, «a palavra estética, nessa altura (século XVIII), significava apenas teoria da sensibilidade, de acordo com a etimologia da palavra grega: aisthesis»

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95 (Bayer, 1978: 13)4. Por isso, na prática, terá sido não só a chamada «morte da arte»

vaticinada por Hegel, mas também o aparecimento das primeiras fotografias (Niépce/Daguerre) que terão contribuído, uma vez mais decisivamente, para desencadear o tal processo de falência generalizada da então recente autonomização da arte, e o processo não menos evidente e inquietante da «perda da aura da obra de arte» de que nos fala claramente Walter Benjamin, no seu ensaio - A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1936), agora aqui devidamente relembrado numa passagem de Gianni Vattimo, quando este escreve que «com o advento da reprodutibilidade técnica da obra de arte, não só as obras do passado perdem a sua aura, o halo que as circunda e isola do resto da existência – isolando também da experiência a esfera estética -, mas nascem também formas de arte em que a reprodutibilidade é constitutiva, como o cinema e a fotografia; já que aqui as obras, não só não tem um original, mas sobretudo tende a desaparecer a diferença entre os produtores e os fruidores (da obra), até porque estas artes se realizam através do uso técnico de máquinas, e por isso liquidam todo o discurso sobre o génio que é, no fundo, a aura vista pelo artista»5.

Ou seja, esta ideia inteiramente «Benjaminiana das modificações decisivas que a experiência» (estética/artística) passará a sofrer na época da sua própria reprodutibilidade técnica, representa bem os traços fundamentais daquilo que irá contribuir, uma vez mais decisivamente, não só para alimentar e acelerar o tal processo alargado de falência, de crise ou de morte anunciada das mais antigas formas de arte (agora sob o efeito de shock do cinema), mas também para acentuar e alargar vertiginosamente o leque de possibilidades criativas, agora ligadas a este mesmo processo de «reprodutibilidade técnica da obra de arte». Processo esse, aliás, que dará origem a uma espécie de estetização generalizada da experiência, tal como parece referir Benjamin quando escreve ao dizer que «o cinema é a forma de arte que correspondente à vida cada vez mais perigosa que levam os contemporâneos. A necessidade de se submeter a efeitos de choque é uma adaptação das pessoas aos perigos que as ameaçam. O cinema corresponde a alterações profundas do aparelho de percepção, alterações como as com que se confronta, na sua existência privada, qualquer transeunte no trânsito de uma grande cidade» (Benjamin, 1992: 107), o que

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4 Bayer, Raymond – História da Estética, Lisboa, Editorial Estampa (1978), p. 13

5 Vattimo, Gianni – La fine della Modernità – Nichilismo ed Ermeneutica nella Cultura Post-Moderna,

96 representa bem a sua enorme capacidade para «intervir profundamente na textura do real - seja este o da arte ou apenas o da vida» (Benjamin, 1992: 100). Em relação a esta questão, Gianni Vattimo diz-nos ainda no seu ensaio - A Arte da oscilação que «parece entender-se aqui, numa forma curiosamente desmistificada e reduzida a dimensões de vida quotidiana (o tráfego e os seus riscos), aquilo que Heidegger terá teorizado no seu ensaio sobre – A Origem da Obra de Arte (1936) com a noção de Stoss (choque). Também para Heidegger, embora num sentido diferente mas talvez profundamente próximo do de Benjamin, a experiência do shoch da arte tem a ver com a experiência da morte; não tanto ou não principalmente com o risco de se ser atropelado por um autocarro na rua, mas a morte como possibilidade constitutiva da existência. Ou seja, aquilo que, na experiência da arte, causa o Stoss (choque) para Heidegger, é mais o próprio facto da obra ser mais do que não ser – apesar de a qualquer momento esta também poder simplesmente desaparecer» (Vattimo, 1992: 55-56).

Ora, este princípio orientador da relação entre a «experiência do shoch da arte», e a própria «experiência da morte» (que é, no fundo, uma das experiências mais dolorosas e traumatizantes da vida de qualquer ser humano), aparece-nos aqui como um vector verdadeiramente crucial, não só porque é precisamente a partir dos princípios constitutivos desta relação estabelecida entre a arte e a morte que a vida se irá efectivamente prolongar (neste caso, através da existência e da persistência reiterada das obras), mas também porque é a partir desta relação que ela ainda irá prolongar a existência dos seus mais variados efeitos criativos, quase como se o anúncio dessa tal morte hegeliana, nada mais tivesse representado senão uma espécie de trampolim criativo ou «dispositivo imaginário» (Mondzain) altamente capaz de provocar os mais variados efeitos criativos, quase como se de um verdadeiro «projéctil» se tratasse.

E não é que na prática terá sido precisamente isso o que veio a acontecer, ou seja, depois desse primeiro grito de revolta hegeliano (de carácter puramente especulativo), a verdade é que não cessaram de ocorrer outras tantas “mortes criativas” (a morte aqui percepcionada ainda como a tal «possibilidade constitutiva de novas existências»), agora no quadro alargado de um novo imaginário tecnológico que começou com o advento da fotografia, do gramofone e do cinema, e que se prolongou aceleradamente com o vídeo, o computador e a internet, ou seja, um conjunto variado de transformações técnicas, também elas altamente capazes de anunciar e de provocar outros tantos «choques» ou gritos de negação e de revolta, tão variados, inquietantes e plurais quanto aqueles que começaram por ocorrer no âmbito alargado do contexto

97 criativo das primeiras vanguardas europeias (dadaísmo, surrealismo, situacionismo, fluxus, acionismo vienense, etc), tal como nos refere ainda Vattimo quando escreve a propósito do efeito de shock ao dizer que «no ensaio de Benjamin, o tal efeito de shock é característico do cinema, que neste aspecto foi antecipado pelas poéticas dadaístas: aliás, a obra de arte dadaísta é de facto concebida como um projéctil lançado contra o espectador, contra qualquer segurança, expectativa de sentido, hábito perceptivo (quase como se o quisesse atordoar ou quem sabe até “matar”). O cinema é feito, também ele, de projécteis, de projecções: logo que uma imagem é formada, esta é logo substituída por uma outra à qual o olho e a mente do espectador se devem readaptar constantemente» (Vattimo, 1992: 55).

Ou seja, vai ser precisamente a passagem do significado dessa tal «profecia- utopia» da morte da arte hegeliana para o interior das mais variadas plataformas criativas e tecnológicas, agora aqui simbolizadas, quer pelas «poéticas dadaístas»6, quer

pelo movimento das primeiras imagens em movimento do cinema, que irão provocar, não só as tais modificações decisivas da experiência (estética/artística), mas também a tal necessidade de readaptação da experiência às novas exigências provocadas agora pelas mais variadas e inquietantes transformações tecnológicas entretanto ocorridas no seio da arte, da cultura e da vida contemporânea em geral, pois, para todos os efeitos, tal como nos diz ainda Vattimo; «esta experiência (seja ela ainda a da arte ou tão somente a da vida), já não pode ser caracterizada por qualquer segurança, garantia ou conciliação: pois ela é essencialmente precária, ou seja, não só ligada aos perigos acidentais a que a vida está sujeita, mas à própria estrutura precária de toda a existência em geral. Por isso, o shock característico das novas formas de arte da reprodutibilidade é apenas o modo em que de facto se realiza, no nosso mundo, o tal Stoss (choque) de que fala Heidegger, ou seja, a oscilação essencial entre o desenraizamento que constitui a experiência da arte - e a sua plena afirmação na vida» (Vattimo, 1992: 60). De facto, vão ser estas «novas formas de arte» próprias da era da reprodutibilidade técnica que irão agora assegurar, não só o processo de realização plena da tal passagem do significado especulativo de

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6 Essas «poéticas dadaístas», tal como no diz Flanagan, funcionavam precisamente «em oposição à

seriedade e à ossificação do antigo objecto de arte. Aliás, os artistas dadaístas, tal como os do movimento fluxus dedicavam-se a uma nova prática artística, aberta ao humor, à intimidade e ao agenciamento lúdico. Para isso adoptavam vários procedimentos performativos (baseados precisamente na temática alargada do jogo poético das mais variadas formas de vida)», e que era, aliás, também uma forma de suavizar esse efeito amplamente traumatizante que a própria «morte de arte» transportava consigo mesma. Flanagan, M., (2009) – Critical Play, Radical Game Design, Cambridge, Mass. MIT Press (2009), p. 94.

98 Hegel para os mais variados dispositivos (tecnológicos), mas também o processo não menos inquietante de disseminação dos sinais evidentes desse preocupante e ambíguo sentimento de «precariedade», «desenraizamento», «crise», insegurança, instabilidade, abandono, impotência, perda, falta, insuficiência e finitude geral da arte e da vida. Ou seja, uma série de traços ou sintomas que também já tinham caracterizado o processo de crisegeneralizada de sentido e de vitalidade de uma certa ideia de arte7 percepcionada

anteriormente por Hegel «como algo do passado», mas também o processo de falência generalizada de um conjunto variado de práticas artísticas consideradas desde então como demasiado rígidas, ultrapassadas e incapazes de corresponder aos verdadeiros anseios, expectativas e esperanças de uma época que se encontrava agora em constante transformação (social, cultural, artística e tecnológica).

Por isso, a materialização desta passagem do significado utópico ou meramente