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PARTE I DENTRO

2. CAPÍTULO II CONSTRUÇÃO DA METODOLOGIA PRAXEOLÓGICA:

2.9. DA GUILHOTINA DE HUME

Um dos principais problemas das teses e pesquisas no ramo do direito é a presunção de verdade de teses não justificadas racionalmente, ignorando os pressupostos da guilhotina de Hume. Tal postulado descreve uma impossibilidade lógica que é ignorada por muitos juristas, estudiosos e agentes políticos.

Em suma, a guilhotina trata da relação entre premissas ontológicas - relativas ao “ser - e premissas ou conclusões deontológicas, relativas ao dever ser (is-ought), descrevendo de que forma uma pode (ou não) derivar da outra.

Em tese, a validade de um raciocínio depende de como é estruturado e em que conclusão chega, o exemplo clássico de raciocínio é aquele demonstrado por meio de um silogismo, da forma mais simples possível: juízo A, juízo B e Conclusão C com base na ligação dos sujeitos e predicados de A com B. De todo modo, não se pode simplesmente deduzir que a conclusão será verdadeira por si só, a validade das premissas seria o fator fulcral para garantir a validade da conclusão.

Eis o problema que a vasta maioria das teses de direito enfrenta: as conclusões pressupõem que a estrutura (Estado, leis etc.) por “serem”, ou seja, existirem, implicam em consequências do

tipo “dever ser”, portanto, normativas, porém sem qualquer tipo de demonstração lógica. E as implicações destes raciocínios são diversas e preocupantes.

Em todo sistema moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo- me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é (is) e não é (is not), não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve (ought) ou não deve (ought not). Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida (can be a deduction) de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores; estou persuadido que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão114.

Ayn Rand complementa a ausência de demonstração de um código de valores que levaria a uma impossibilidade de configuração deste:

Nenhum filósofo deu uma resposta científica racional e objetivamente demonstrável à questão de porque o homem precisa de um código de valores. Enquanto essa pergunta permanecer sem resposta, nenhum código de ética racional, científico e objetivo poderia ser descoberto ou definido115.

Um exemplo muito simples para visualizar este raciocínio é o seguinte: imagine um reinado feudal em que todas as paredes das casas possuem cor acinzentada por conta do concreto utilizado para revestir as madeiras e blocos de pedra que estruturam o imóvel. O rei, grande apreciador das florestas locais acredita que o progresso urbano é demasiado e promulga uma lei obrigando todos a pintar as paredes de suas casas com tons e matizes da cor verde.

Questiona-se, qual a base racional transcendental para a decidir tal norma? De que forma isto poderia ser considerado normativo? Em termos simples: faz sentido ou é uma mera vontade do governante?

114 HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio

nos assuntos morais. Trad. D. Danowski. São Paulo: Editora da Unesp, 2000. p. 509; e GIAROLO, Kariel Antônio. É

possível derivar dever ser de ser? Universidade Federal de Santa Maria. Controvérsia, v. 9, n. 1, p. 01-12. São

Leopoldo, 2013.

115 Tradução livre e adaptada de: “No philosopher has given a rational, objectively demonstrable, scientific answer to

the question of why man needs a code of values. So long as that question remained unanswered, no rational, scientific, objective code of ethics could be discovered or defined”. RAND, Ayn. The Virtue of Selfishness: a new concept of egoism. New York: New American Library, 1979, p. 3.

A guilhotina de Hume traça uma linha entre o que seria uma vontade pessoal (ainda que tenha aparência de norma) e o que poderia, de fato, ser considerado norma.

Pautando a explicação em um único exemplo extremo fica fácil observar a inexistência de base racional para uma decisão normativa, entretanto, somos expostos constantemente a regulações que parecem insignificantes ou que, individualmente, não impactam significativamente, somente ao longo do tempo e, por isso, são relevadas, mas que não são normas de fato, são vontades de terceiros (governantes).

No Brasil, diversas regulações absurdas já foram passadas com a premissa de “bem comum”, o que, novamente, é absurdo. O problema não são as leis e normas extraordinárias, que pouco interferem na vida cotidiana, dizendo respeito apenas a situações atípicas e patológicas, o grande problema são as regulações consideradas “normais”, que não há qualquer manifestação sobre e passam despercebidas, mas que influenciam – e muito – na liberdade dos indivíduos e, novamente, não possuem qualquer base racional, são apenas decisões de uma pessoa ou grupo decidindo unilateralmente o que acham mais conveniente para os demais.

O que acontece, portanto é a suplementação de premissas incompletas ou incapazes de derivar um “dever ser” moral ou de ação com a força e coerção física da estrutura de poder estatal. Em uma situação prática: um político ou jurista acredita que um raciocínio seja verdadeiro (apenas por crença), não necessariamente demonstrando-o em um modelo lógico racional. Por exemplo, um legislador ou jurista, aparelhado por uma estrutura de poder, acredita piamente que plásticos fazem mal às pessoas, para tanto, utiliza-se da lei, promulgando ou alterando as existentes no sentido de impedir que indivíduos realizem comercialização de plásticos em alimentos.

Pode parecer, à primeira vista, que o bem e a justiça estão sendo feitos e que as pessoas estarão protegidas de substâncias químicas tóxicas, mas o grande problema é o que não é visível neste exemplo.

A liberdade das pessoas para decidir sobre suas próprias vidas é mitigada e não, não é demonstrável (logicamente) que uma pessoa tenha condições de dizer o que é melhor efetivamente para outra, pois o conceito de “melhor” é um critério puramente subjetivo em que a própria definição de parâmetros objetivos é decisão subjetiva (e.g. “melhor” é o que faz bem para a saúde. A definição deste critério não tem base objetiva, é impossível de se demonstrar a universalidade de tal conclusão, embora provável, modal de possibilidade não é modal de necessidade). Ou seja, o

político que retira objetos plásticos não está retirando apenas plásticos, mas está retirando a liberdade das pessoas em escolherem os objetos e critérios que irão reger a própria vida.

Fazendo um experimento mental, traçar-se-á um eixo em que em uma extremidade estão as decisões que consideramos básicas para um indivíduo, como o que comer, o que vestir, etc., de outro lado as decisões que consideramos “necessárias” ao Estado, como políticas regulatórias e econômicas, sanções criminais, entre outras, resolvidas por terceiros para outros terceiros.

Eis o problema: tendo, de um lado, decisões individuais e, de outro, decisões de terceiros, em que momento traçamos a linha que separa um lado do outro?

Melhorando o questionamento: em que parte desta linha releva-se automaticamente a autonomia de um terceiro, quando toma as decisões por si próprio? Existe base lógica racional justificável para fazer isso?

A pretensão não é questionar se existem ou não decisões tomadas por terceiros ou decisões coletivas, mas qual a validade de uma norma que decide, automaticamente, para uma pessoa, sem seu consentimento direto sobre o mérito.

Ou seja, existe uma supressão da vontade por estes grupos de poder, que controlam a força física (coerção) para que os indivíduos não tomem decisões por si próprios, apostando em sua incapacidade técnica ou em um direito positivo não demonstrável (X possui direto de Y, pelo motivo W), o que é um completo absurdo em termos lógicos proposicionais deônticos.

Direitos positivos (direito a algo, uma prestação), diferente dos direitos negativos (direitos de abstenção de terceiros), implicam no “dever” de ação de terceiro: SEMPRE. Por exemplo, se uma constituição de um país prevê o amplo “direito à saúde” a seus cidadãos, fica oculto e, portanto, passa despercebido pelos cidadãos que seu “direito” implica na obrigação para outrem, da forma que os detentores da força encontrarem para realizar este “direito” (muitas pessoas acreditam que o SUS é gratuito, por exemplo). É possível coletar tributos de toda a coletividade para custear as despesas coletivas, como também é possível obter prestações compulsórias dos profissionais médicos. Os agentes políticos são especialistas e particularmente criativos quando o assunto é “garantir direitos”.

Não se pretende, de modo algum, negar a possibilidade da existência de uma moral racional estruturada em premissas lógicas, pelo contrário, a ideia é assegurar que sistemas normativos ou

éticos só existam quando racionalmente justificados, tendo sempre em mente a impossibilidade de obrigação à terceiro com base no binômio “ser-dever ser”, anteriormente exposto.

A noção de "dever", isto é, de uma obrigação ou norma ética, respectivamente, está obviamente relacionada à noção de um valor ético. Todos os sistemas éticos pressupõem alguma conexão analiticamente verdadeira entre essas duas noções no sentido de que, falando grosso modo, o que é eticamente bom (em si mesmo, bem como em suas consequências) deve ser feito, e vice-versa. Assim, o problema é-ou-deve-tem um irmão gêmeo óbvio na questão de saber se as declarações de valor ético podem ser logicamente inferidas a partir de declarações de fatos. Para esclarecer a terminologia, chamamos uma declaração sobre o que é - ou seja, uma declaração sobre os fatos, sejam eles singulares ou gerais, acidentais ou necessários - uma declaração descritiva; uma declaração sobre o que deve ser uma declaração normativa, uma declaração sobre o que é valioso uma declaração de valor e, finalmente, uma declaração que é normativa ou valorativa uma declaração ética. Embora nos concentremos a seguir no problema é-ou-dever, é claro que todos os nossos resultados se aplicam simultaneamente ao problema de Hume em sua formulação mais geral, a saber, se quaisquer declarações éticas podem ser logicamente inferidas de declarações descritivas.116

Em suma, a proposta da tese é desenvolver um raciocínio com base em premissas meramente descritivas, de modo que, ao final, não implique em um dever moral ou prático por si só, sendo apenas forma de descrever um sistema, que em consonância com a natureza do mundo e dos seres humanos, seja essencial para a atividade argumentativa e com base na contradição performativa justifique deveres básicos que constituem a própria possibilidade da linguagem, sem a qual não seria possível sequer negar uma norma.

De forma análoga, se um engenheiro deseja construir uma ponte, deve entender a física, a matemática, a química e demais fatores ambientais que influenciam sua construção. Ele pode optar por assumir que não precisa fazer contas matemáticas, que não existe dilatação dos materiais ou qualquer outra consideração e simplesmente ir amontoando materiais até formar uma ponte. O que acontecerá será ou (i) um desperdício de material escasso; ou (ii) a ponte não será firme e sólida. Queira ele seguir ou ignorar os fatores envolvidos na construção de uma ponte, a realidade estará lá, queira ele ou não.

116 “The notion of "ought", that is, of an ethical obligation or norm, respectively, is obviously related to the notion of

an ethical value. All ethical systems assume some analytically true connection between these two notions to the effect that, roughly speaking, what is ethically good (in itself as well as in its consequences) ought to be done, and vice versa. So, the is-ought-problem has an obvious twin brother in the question whether ethical value statements can be logically inferred from fact statements. To clarify the terminology, we call a statement about what is - i.e. a statement about the facts, may they be singular or general, accidental or necessary - a descriptive statement; a statement about what ought to be a normative statement, a statement about what is valuable a valuative statement, and finally a statement which is either normative or valuative an ethical statement. Although we will focus in the following on the is-ought problem, it is clear that all our results simultaneously apply to Hume's problem in its more general formulation, namely, whether any ethical statements can logically be inferred from descriptive statements.” SCHURZ, op. cit., p. 19. Tradução nossa.

Da mesma forma, o jurista (ou o regulador) pode escolher ignorar os aspectos objetivos da realidade, mas eles não ignorarão o jurista.