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Como outros brancos nascidos e criados em África, sou um ser de fronteira. [...] Para melhor sublinhar minha condição periférica, eu deveria acrescentar: sou um escritor africano, branco e de língua portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana.

Mia Couto

Cotidianamente, o termo “espaço” é empregado com acepções diversas, de modo que pode remeter a lugar, a tempo, a opostos como conhecido/desconhecido, presença/ausência, partida/chegada, territorialização/desterritorialização. Logo, “definir [...] espaço, por si só, já é uma tarefa árdua. A amplitude e a abstração do tema conduzem inevitavelmente a uma diversidade de direções e possibilidades interpretativas [...]” (BARBIERI, 2009, p. 106-107). Tal amplidão revela que esse vocábulo denota um vínculo com o social, o cultural, com relações de poder e com características identitárias, à medida que há questões espaciais que exercem influência sobre o homem. Nas palavras de Stuart Hall, “todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos” (HALL, 2003, p.71). Nessa ótica, dada a natureza simbólica do texto literário, bem como sua relação com o tempo e o espaço, torna-se indiscutível a sua relevância para o autoconhecimento e um projeto de nacionalidade, que pressupõe um sentimento de pertença.

No caso da produção literária do moçambicano Mia Couto, por exemplo, é perceptível seu caráter utópico, tendo em vista a etimologia do vocábulo “utopia” como designação de um lugar ideal ou de um não lugar. Couto denuncia uma realidade pungente, porque advinda de guerras, e suscita o sonho com espaços diferentes dos que são focalizados em suas narrativas. Como africano e autor de obras cujos originais são em Língua Portuguesa, esse escritor fala de um lugar de fronteira; demarcado, pois, pela mestiçagem, comum a seu continente e aos espaços fronteiriços de modo geral. Conforme Fonseca e Cury,

da margem, criando condições enunciativas para a voz daqueles ‘da margem’ – os africanos, mas também os que na África são marginalizados–,

Mia Couto produz uma escrita expandida que consegue abrigar as falas de outros espaços marginalizados do mundo (FONSECA; CURY, 2008, p. 16).

Pode-se, então, parafraseando Ki-Zerbo (2010, p.XL), em sua colocação acerca da língua, defender a ideia de que, na condição de escritor, Couto faz da literatura sua morada.

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard defende que “a casa é o nosso canto do mundo. Ela é [...] o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (BACHELARD, 2008, p.24). A essa ideia, ele acrescenta que “sem ela, o homem seria um ser disperso. [...] Antes de ser ‘jogado no mundo’, como o professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa” (Ibid, p.26). Esta é espaço de intimidade, de formação do ser, nascedouro da imaginação. Entrar na casa de outrem é ter acesso a espaços privados, portanto, fazê-lo sem consentimento é invasão. Nesse sentido, observando-se o processo de colonização, nota-se que ocorre um assenhoramento da intimidade alheia e, em decorrência, esta se modifica.

Seguindo-se esse viés semântico, a imposição de uma língua é também o apagamento de uma intimidade – espaço de entranhas – em prol do surgimento de outra. De modo semelhante, apaga-se uma intimidade quando se desrespeita o principal veículo de comunicação de uma cultura e se determina que outro lhe é superior, a exemplo do que ocorreu com a cultura africana subsaariana, pautada na tradição oral e por isso discriminada pelo colonizador europeu. Conforme Fábio Leite salienta, na África negra, “a escrita é considerada um fator externo à pessoa e por essa razão impacta negativamente os processos de comunicação” (LEITE, 1992, p. 87). Ele ressalta que “o conjunto força vital/palavra é [...] elemento primordial da personalidade e da sociedade, desdobrando-se desde as instâncias mais abstratas até as práticas sociais” (Ibid, p. 87-88). É indiscutível, então, que a imposição da língua e da escrita gerou fortes impactos na identidade dos colonizados.

Assim, na perspectiva de relação entre morada, intimidade, imaginação e literatura, é pertinente afirmar-se que, sobretudo para uma cultura centrada na oralidade, a literatura se constitui um lócus que pode suscitar reflexões acerca da nacionalidade. Por meio dela, espaços podem ser re-conhecidos, re-visitados, sonhados, conquistados. O texto romanesco, por exemplo, possibilita que o narrador consubstancie a singularidade do entrelaçamento entre o griô e o escritor, dando

origem a um novo cânone literário, como o faz Mia Couto, ao fundir oralidade e escrita. Com isso, esse moçambicano evidencia que através da literatura podem ser revistos espaços como o do cânone, o do africano contemporâneo, o da passeidade e o das “brincriações”.

No caso da literatura angolana, Rita Chaves destaca que ela está relacionada à história do país, comentário que pode ser ampliado para os outros países africanos colonizados por Portugal. De acordo com a autora, “[...] o processo literário se fez seguindo a linha das lutas para conquistar a independência nos mais diversos níveis” (CHAVES, 2005, p.20). Muitos autores buscaram preencher algumas das lacunas relativas à sua história, utilizando, para isso, o texto literário, significativo recurso para resgatar e conservar memórias, além de contribuir para o re- conhecimento do espaço, principalmente na dimensão de território, haja vista a focalização, em diversas narrativas, de relações de poder.

Assim, assumindo a autoria da palavra sobre seu continente, isto é, assumindo o espaço de autor, retratando seus anseios e seus projetos, falando de si e do seu modo, o africano não só desconstrói a imagem caricatural que conceberam sobre ele, como também colabora para o despertar da consciência nacional, o que implica uma re-visita às tradições. Para Rita Chaves, “voltar ao passado se transforma numa experiência de renovação e é a partir dessa estratégia que são lançadas as bases para uma literatura afinada com o projeto de libertação” (CHAVES, 2005, p.49). Nesse contexto, o vocábulo “libertação” representa mais do que um país deixar de ser colônia, significa ele se livrar das correntes colocadas pela política colonizadora e reconhecer-se como nação.

Ao estudar a historiografia dos países africanos de língua oficial portuguesa, Helder Garmes (2010) assinala que a história desses povos pode ser dividida com base no processo colonial. Isto é, durante o período de colonização, os estudos colocavam o português como aquele que propagava o cristianismo e civilizava comunidades africanas. Finda a era colonialista, buscou-se, e vem-se buscando, a produção de uma historiografia menos lusocêntrica, para o que contribuíram as colocações advindas da Escola dos Annales, a qual propunha outra visão da história. Segundo essa nova concepção, a linearidade adotada pela historiografia tradicional era questionável, assim como a utilização de documentos oficiais como fontes privilegiadas para a realização das pesquisas.

As narrativas literárias também se constituem em documentos, à medida que refletem o contexto de sua produção. De acordo com o pensamento de Maria Nazareth Fonseca, “o romance se mantém como a arte capaz de encenar mundos possíveis que, sendo ilusórios, dizem muito daquele que é vivido pelos homens” (FONSECA, 2010, p.78). Em sendo assim, o romance tem a possibilidade de salvaguardar dados da vida concreta do homem, ao contribuir para o não esquecimento de costumes, comportamentos, conjunturas. Nessa perspectiva, afora a abordagem do espaço do texto literário para a cultura angolana e a moçambicana contemporâneas, é mister comentar-se a relevância da focalização do espaço em narrativas.

Começa-se pelo destaque de que a leitura de um romance15 já denota uma

dimensão espacial, à proporção que o narrador conduz o leitor no percurso de saída de um parágrafo e entrada em outro, guiando-o por entre os espaços presentes na narrativa e que a compõem. Nesse trajeto, surgem espaços geográficos, fictícios, atemporais. Nas palavras de Claudia Barbieri,

o espaço na narrativa, muito além de caracterizar os aspectos físico- geográficos [...], cria também uma cartografia simbólica, em que se cruzam o imaginário, a história, a subjetividade e a interpretação. A construção espacial da narrativa deixa de ser passiva – enquanto um elemento necessário apenas à contextualização e pano de fundo para os acontecimentos – e passa a ser um agente ativo: o espaço, o lugar como um articulador da história (BARBIERI, 2009, p. 105).

Sob essa ótica, o espaço, indubitavelmente, expande as possibilidades de leitura do texto literário.

Segundo registra Henri Bergson, um dos argumentos com os quais Aristóteles estabelece a existência do lugar é o de que

de todas as coisas, quaisquer que sejam, dizemos que estão algures. Embora, pelo uso, conheçamos muitos gêneros de movimento ou mutação, verdadeira e propriamente chamamos movimento o que diz respeito ao lugar (apud BERGSON, 2013, p.15).

Ainda que lugar não seja sinônimo de espaço, os dois vocábulos mantêm entre si um vínculo semântico, de modo que o espaço também pressupõe a existência de movimento e, por conseguinte, uma relação intrínseca com o fluir temporal. Assim,

15 Nesse contexto, a opção por focalizar o romance se justifica por se tratar do gênero textual das obras que são objetos de

no caso do romance, por exemplo, o espaço está atrelado à ação, ao tempo, aos personagens, à perspectiva narrativa.

Sobre essa relação, Osman Lins ressaltou que “não só espaço e tempo [...] são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto e inextricável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros” (LINS, 1976, p. 63). Com esse entrelaçamento, obtém-se a verossimilhança, e o texto ficcional se aproxima do mundo real, inclusive nos casos em que o fantástico é explorado. Em alguns romances, o imbricamento extrapola o âmbito dos elementos da narrativa e chega à fusão entre a ficção e a passeidade, como ocorre em muitas obras africanas, a exemplo dos textos do angolano José Luandino Vieira. Em comentário acerca da produção desse autor, Benjamin Abdala Junior declara que ele inventa uma estória “profundamente histórica, verdadeira – ‘verdadeira, mesmo que os casos nunca tenham passado’” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 29).

No estudo intitulado Luanda, cidade e literatura, Tania Macêdo afirma fazer um esforço e diz que este

concentra-se em procurar encontrar por detrás das imagens que se mostram aquelas que se ocultam e tentar captar uma ‘leitura do intervalo’ [...], ou seja, apreender a tensão criada entre a formalização estética e a história de um lado, e os valores sociais veiculados na obra literária, por outro. Nesse itinerário, buscamos, pois, pensar a literatura como uma possibilidade de leitura do urbano [...] (MACÊDO, 2008, p. 20).

No percurso realizado, a autora almeja “ler” a cidade de Luanda a partir de textos literários que a têm como cenário onde se passam as ações focalizadas. Dessa forma, nas narrativas que servem como objetos de pesquisa para Macêdo, pode-se conhecer a capital angolana não só como paisagem geográfica, mas também como espaço humano que se modifica através do tempo. De acordo com o que Osman Lins defende, ao estudar um romance, o observador se vê “ante um espaço ou um tempo inventados, ficcionais, reflexos criados do mundo e que não raro subvertem – ou enriquecem, ou fazem explodir – nossa visão das coisas” (LINS, 1976, p. 64).

Para um estudo dessa natureza, torna-se necessário analisar o espaço sob diversos âmbitos, como o faz Lins, em sua tese de doutorado. Ele chama atenção para a atmosfera, a qual está vinculada à ideia de espaço, mas não se confunde com este. Como declara o autor, ela

consiste em algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas não decorre necessariamente do espaço, embora surja com frequência como emanação deste elemento, havendo mesmo casos em que o espaço justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca (LINS, 1976, p. 76).

Nesse sentido, romances como Predadores, de Pepetela (2008b), atestam o caráter abstrato advindo do espaço, dada a atmosfera de desencanto que perpassa a narrativa. O texto retrata a sociedade angolana da atualidade, que seguiu um caminho adverso ao que foi almejado pelos guerrilheiros os quais, a exemplo do autor, lutaram por uma sociedade livre e sem predadores.

Afora a atmosfera, Lins também evidencia, entre outros aspectos, a relevância do foco narrativo para a abordagem do espaço no texto literário. Conforme consta em sua pesquisa, tanto narrador quanto personagens são importantes agentes para a espacialidade, inclusive porque há textos em que “o espaço [...] não constitui simplesmente uma moldura para as personagens e os acontecimentos” (LINS, 1976, p.128). No caso de Terra Sonâmbula, de Mia Couto, a terra ultrapassa a função de cenário por onde circulam Muidinga e Tuahir, por exemplo, e ganha a dimensão de personagem, que age e reage em relação ao desrespeito do homem para com ela. Nesse romance, assim como em outros textos africanos, a terra se constitui um espaço de memória, no qual ainda são visíveis registros de guerras e da passagem do colonizador.

Em sua pesquisa sobre Luanda e literatura, Tania Macêdo afirma que

não há como deixar de pensar que grande parte da história da capital angolana foi alheia a seu povo, na medida em que as marcas do período colonial ainda hoje presentes em suas ruas e edifícios apontam para a história do colonizador, de sua ocupação e exploração no território angolano e, portanto, da ‘condição colonial’ (MACÊDO, 2008, p. 12).

Não é à toa, portanto, que narrativas como A Geração da Utopia focalizam o espaço em uma perspectiva que extrapola a dimensão geográfica. Pepetela retrata as relações humanas, de modo que o espaço não é apenas visto, ele diz de si, exala cheiros, o que, em conjunto, não permite ao angolano esquecer sua história.

Segundo afirma Borges Filho, o homem “se relaciona com o espaço circundante através de seus sentidos. Cada um deles estabelece uma relação de distância/proximidade com o espaço. [...] efeitos de sentido importantes são

manifestados nessa relação sensorialidade-espaço” (BORGES FILHO, 2009, p. 169). Sendo assim, a literatura, considerando-se seu vínculo com o sensorial e os elementos da narrativa, possibilita a percepção de como o escritor se relaciona com o espaço no qual está inserido, o que acaba por refletir o contexto de que ele faz parte. O texto literário se constitui, pois, um documento que também contribui para a leitura do espaço circundante do autor.

Em seus estudos sobre espaço e história, Mauricio de Almeida Abreu declara que “a memória individual pode contribuir [...] para a recuperação da memória das cidades”. Ele assegura que “a importância desse resgate para a identidade de um lugar é inquestionável” (ABREU, 2014, p. 35). Por essa ótica, os romances denominados históricos adquirem uma relevância ímpar, haja vista o registro de fatos reais, ainda que permeados pela ficção. Por meio de textos dessa natureza, pode-se conhecer características de um espaço específico, além de perceber as relações sociais que nele são estabelecidas. Ou seja, um romance, sobretudo o histórico, possibilita o re-conhecimento de paisagens, hábitos, costumes, relações sociais. Configura-se, dessa forma, como um instrumento mnemônico.

Segundo Abreu, “coexistem [...] numa cidade, em qualquer momento do tempo, inúmeras memórias coletivas. Ao eternizarem-se em registros permanentes, essas memórias urbanas não perdem [...] sua vinculação ao grupo ou classe que as produziu” (ABREU, 2014, p. 39). Com base nessa colocação, verifica-se que a abordagem do espaço na literatura e na arte, de um modo geral – registros permanentes – sinaliza concomitantemente traços da memória individual e da coletiva, à proporção que revela tanto aspectos físicos quanto a relação do artista com o espaço que o cerca.

Milton Santos (1994) ressalta que a instantaneidade das comunicações vem contribuindo para a homogeneização do espaço global. Entretanto, esse imediatismo também estimula que cada lugar busque se diferenciar dos demais, percebendo e revelando sua singularidade. Essa busca indica um investimento em um projeto de nacionalidade, para o qual, conforme mencionado, a arte literária tem uma indiscutível relevância. O romance, ao focalizar espaços, abre espaço para a difusão de memórias, e o faz de modo a indicar de onde se fala. Nesse gênero textual, o elo com o espaço é múltiplo, visto que este se configura como elemento inerente à

construção do texto, como articulador da história, como representação urbana, em uma dimensão social, econômica, ideológica, histórica.

Compreendem-se, então, as diferentes óticas segundo as quais o espaço vem sendo analisado na Teoria Literária. Ao efetuar uma pesquisa acerca dessa temática, Luiz Alberto Brandão adota uma abordagem diacrônica e mostra que diversos autores reconhecem no espaço um elemento fulcral para o texto literário. De acordo com ele, esses estudiosos elegem seus prismas. Por exemplo, “para Henri Lefebvre, o espaço é concebido como produção social; para Roland Barthes, como sistema de linguagem; para Michel Foucault, segundo a diferença em relação aos espaços instituídos” (BRANDÃO, 2013, p. 78). Cada uma das perspectivas expostas por Brandão contribui, de alguma forma, para uma leitura crítica da narrativa literária. No dizer desse autor, “discutir o espaço na literatura é expor a presença, no plano textual, do elemento extratextual” (Ibid, p.160). Nesse viés semântico, defende-se a pertinência de um estudo de romances a partir do qual sejam observados, no âmbito da textualidade, elementos extratextuais, não apenas na perspectiva de percepção do empírico, e sim do registro desses elementos em prol da re-construção da identidade e da reterritorialização.