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4 A GERAÇÃO DA UTOPIA: O REGISTRO DA HISTÓRIA COMO RECURSO

4.3 O POLVO (ABRIL DE 1982)

Hoje não és um monstro, mas sim o cadáver dum polvinho, certamente o maior destas águas. Não deixas de ser um polvinho. Tantos anos, tantos anos...

Pepetela

Essa parte da obra inicia-se com foco no espaço marítimo, onde um homem estava e um polvo domiciliava-se, em uma gruta. Na apresentação do cenário, faz- se referência ao período do ano – abril, “tempo ainda das calemas” (Ibid, p.229) –, haja vista a relação intrínseca entre o histórico e o geográfico. O narrador situa o leitor em relação à temperatura da água, ao barulho das vagas contra os rochedos, à diversidade de peixes encontrados. No mar, fartura de espécies; na terra, “o kimbo dos deslocados crescia a olhos vistos na Caota, entre esta e a Baía Azul” (Ibid, p.231). Como o cultivo da agricultura não era possível na área, devido à falta de água potável, essas pessoas sobreviviam da pesca e da ajuda que algumas organizações prestavam, de forma escassa. Os peixes representavam “uma migalha para aquelas bocas esfomeadas, fugidas duma guerra que ainda não tinham entendido” (Ibid, p.231).

O homem que mergulhava fora Aníbal, na infância e na juventude; fora o guerrilheiro Sábio, na guerra pela independência; na Caotinha,“era dono do seu tempo, a única liberdade válida” (Ibid, p.231). “Caçava” seu almoço no mar, espaço que ofertava riqueza natural, mas, simultaneamente, abrigava o polvo, o mesmo que lhe assustara quando ele era criança, por lhe parecer gigante, com todos os tentáculos virados para ele. Em uma conversa com Sara, na Casa, Aníbal dissera: “uns sonham que estão a cair, outros sonham com mortos, eu sonho com esse bicho” (Ibid, p.23), que veio a se tornar a razão dos “pesadelos noturnos de toda a vida” (Ibid, p.231). O mar, que fora presente na sua infância e ficara ausente na sua

juventude e durante a atuação como guerrilheiro, foi o lócus escolhido por ele para viver o período pós-independência.

Os peixes desse espaço tornaram-se objetos de observação desse homem e de comparação com os indivíduos no âmbito social. Os dourados, por exemplo, “só gostam de andar no meio dos lixos, sobretudo dos restos de caniços arrastados pelos rios. Isso podia ser em Luanda. Na sua baía, já encontrara dourados no meio das pedras mais limpas” (Ibid, p.232). Ou seja, os dourados se adaptam ao espaço em que estão inseridos. De forma análoga, os indivíduos também se modificam por influência do contexto histórico-social. Ele, Aníbal, era a prova disso. Em uma forma de ação distinta da dos referidos peixes, os chocos fugiam “lançando os seus jactos de tinta escura, como os aviões lançavam os gazes” (Ibid, p.232). Essa cena remetia à chana, à insegurança frente à possível “chegada dos helicópteros portugueses em formação de ataque” (Ibid, p.233).

Isso fazia o homem pensar sobre a enorme diferença cultural entre um caçador e um pescador:

Embora os economistas misturem tudo no mesmo grupo de atividade extrativa, pensou ele, a atitude é outra. O pescador fica fora do meio do peixe, ou numa praia ou num barco. Invade o meio do peixe com uma arma, rede ou anzol, apenas a arma entra nesse meio. O caçador penetra no meio marítimo, arrisca o corpo a corpo, usa a arma contra um adversário-vítima determinado que vê e respeita. Os dois matam, mas o pescador mata sem sequer pensar nisso. O caçador mata, consciente de que o faz. Quem é mais cruel? (Ibid, p.233-234).

Por tal ponto de vista, Aníbal era caçador, pois, como guerrilheiro angolano, para combater, entrava no espaço do soldado português, isto é, no espaço que este havia usurpado e denominado como seu. A ação era realizada conscientemente, assim como era quando ele ficava diante do “adversário-vítima”. No mar, ele revivia esse sentimento: quanto mais mergulhava, mais sentia a presença do polvo; na terra, sobretudo na chana, quanto mais adentrava, mais presumia a invasão das aeronaves tugas. Isso jamais o colonizador conseguiria apagar de sua memória.

Na sequência dessa reflexão, Aníbal pensou outra vez na relação peixe- homem, e acabou por estender a comparação a outros animais. Ao abrir os pargos que havia “caçado” e limpá-los na água,

Peixinhos quase transparentes vinham disputar-se os restos de guelras e intestinos dos parentes assassinados. Ficou a ver a luta silenciosa na água clara. Sempre o combate pela sobrevivência, é a lei da natureza. Só o homem mata por prazer, ou por outro objetivo que não o de comer o adversário vencido. Ainda falam mal da antropofagia, essa ao menos respeita a lei da natureza. Sorriu, no meio dos pensamentos amargos. Também estou a exagerar. Os bichos, dum modo geral, não comem os seus iguais. Só os peixes. Ou alguns insetos. O leão ou a onça não comem os seus parceiros mortos, deixam-nos para as hienas. Mas também não lutam entre si até à morte, como o homem. O homem sim, é o maior predador de si próprio. Para deixar o inimigo vencido apodrecer ao sol (Ibid, p.234-235).

Como se pode constatar, os pensamentos desse quase eremita tornaram-se amargos, bastante diferentes dos que advinham do jovem intelectual que ele foi, admirado por tantos estudantes e invejado por outros. Ele fugiu de Portugal para se integrar ao MPLA e lutar pela independência do seu país, por isso sentia raiva “do passado de quimeras que trouxe este presente absurdo” (Ibid, p.234).

Aníbal vivia com simplicidade, mas usufruía – e partilhava com a única família vizinha – de água, um bem raro na região, “com o deserto que avançava vindo do Namibe” (Ibid, p.236). No terreno onde ficava a casa, ele plantou uma mangueira que vicejou, contrariando o comum para a região seca. Todos os dias ele a regava. Também a acariciava, conversava com ela e lhe lia trechos de livros. Chamava-a de Mussole, em homenagem à jovem por quem havia se apaixonado e pela qual jurou vingar-se do inimigo que a violou e matou. Na maior parte do tempo, a árvore era sua companhia, e isso não o deixava sentir-se sozinho, pois ele plantou-a com o objetivo de que a mangueira servisse de casa onde o espírito de Mussole pudesse descansar.

Por ficar isolada do resto do mundo e estar localizada na praia onde vivia o polvo que o atormentou no passado e se fincou na sua memória, a casa da Caotinha foi escolhida pelo Sábio, em meados de 1975, no retorno de uma estada na União Soviética, aonde fora “fazer um curso militar, mais um, este para o Estado-Maior” (Ibid, p.238). Nesse ano, ocorria a guerra entre os partidos angolanos, e ele era membro do MPLA, o que já pode ser inferido em virtude do local em que fora “estudar nova organização e estratégias” (Ibid, p.239), afinal, era preciso que o futuro país dispusesse de um exército regular, haja vista a convicção de que a independência iria ocorrer. Em 11 de novembro do mesmo ano, Angola oficialmente

deixou de ser colônia de Portugal e teve como primeiro presidente o líder do referido Movimento.

Em 1977, o Sábio, “procurando esquecer o passado, desligado de todos os compromissos, decidiu viver naquela casa e caçar o polvo da sua infância” (Ibid, p.239). Nos arredores, morava apenas Ximbulo, a esposa e a filha, que constituíam a família de Paulino, combatente voluntário que, aos dezoito anos, “acabou por morrer estupidamente, pisando uma mina, quando voltaram a ocupar Benguela e os sul-africanos retiraram para os seus aprazíveis santuários” (Ibid, p.239). A casa do ex-guerrilheiro comandante tinha o que era básico para o seu cotidiano: apetrechos de caça; a casa de banho; um quarto bem pequeno ao lado do banheiro; a cozinha, com um fogão a gás; o quarto de dormir, com uma cama e um armário; alguns livros; uma AKA e dois carregadores – equipamentos utilizados quando da atuação na guerra. Afora isso, a casa tinha a sala, que era denominada como uma preciosidade, porque, de qualquer ângulo, se via o mar.

Nesse lugar, Aníbal passava o resto de sua vida, saindo apenas para ir à casa do vizinho, ao kimbo dos deslocados ou a Benguela, buscar as provisões – única coisa de que ainda usufruía por conta da atuação na guerra. Na Caotinha, “os dias de semana tinham há muito perdido sentido” (Ibid, p.241). As visitas que recebia eram poucas e praticamente as mesmas. Um dia, porém, no mês de abril – ele sabia disso porque seu corpo lhe dizia quando se estava nesse mês –, um jipe parou ao lado da mangueira. Era Sara, a antiga amiga da Casa, com quem ele conversava sem receio sobre política e que o ajudara na fuga do exército português. Para ela, ele contou que, “resolvida a situação militar, ele teve a ideia de vir ocupar a casa inacabada. A pressa foi tanta, com o medo que outros se lembrassem dele, que esqueceu tudo. Ou fez por esquecer” (Ibid, p.242).

No reencontro, Sara o questionava sobre a desaparição que ele teve da cena política: “Ofereceram-te vários cargos, ao que constou. O Vítor disse-me que até para ministro. E tu vieste para aqui, longe de tudo, sem contactar ninguém. É pelo menos um comportamento especial. Depois de uma vida inteira de luta...” (Ibid, p.243). Aníbal demonstrava que não esquecera as experiências bélicas, apesar de desejar que isso ocorresse. O vivido estaria sempre em sua memória, ainda que, por vezes, ocupasse um espaço “reservado” para o que não era lembrado. O diálogo seguiu por um caminho que revelou a amargura do ex-guerrilheiro.

[...] puxaste a conversa para a minha desaparição da cena e vens com o argumento de autoridade do Vítor, um sacana que me prometeu enviar café e umas meias para o interior, meteu-se nas confusões de fronteira, e até hoje estou à espera das meias... Aqui para nós, nunca entendi como o Mundial no derradeiro segundo se desviou da Revolta do Leste.

– Não gostas dele.

– Talvez por ter demasiado gostado dele. Sabes, a desilusão é o pior que há. Era o meu mais novo, tratado com todo o carinho. Desculpava-lhe todas as pequenas falhas, defendia-o quando precisava, confiando nele. Afinal, não passa dum oportunista.

– Estás a exagerar. É um dirigente capaz...

– Como todos, enquanto são dirigentes. São todos capazes e honestos, sem exceção. Quando um deixa de ser dirigente, então é que se sabe que afinal era um incompetente e um corrupto. A mitologia do poder, ou a mitificação dos homens do poder. Passa-se em qualquer religião ou seita. [...] Tudo isso é tão antigo e repete-se sempre em todos os regimes. Mas as pessoas não veem, porque acham que a sua experiência é única e melhor que as outras. Uma fé, como a religiosa [...].

– Fazes-me lembrar a Marta. [...] disse-me que tu só tinhas dois caminhos, ou morrer na guerra, o que seria o melhor para ti, ou desencantares-te. Adivinhou. Porque perseguias um sonho utópico de revolução. Afinal desiludiste-te mesmo.

[...]

– Enganou-se numa coisa, colocou a questão numa alternativa. Eu morri e desencantei-me. Os dois caminhos num só.

– O desencanto é sempre uma morte, não é? [...]

– Isso de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. [...] todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois... tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder. Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio (Ibid, p.244-246).

As colocações de Aníbal evidenciam que os anos de envolvimento ativo com a guerra não só mataram a utopia que o levou à revolução, também o desencantaram, a ponto de ele desacreditar na transparência do ser humano, especialmente daqueles que se tornaram dirigentes do país. A comparação entre a crença nesses homens e a fé religiosa intensifica o ceticismo que ocupou o espaço que, dantes, era da utopia. Aníbal fez uma crítica severa ao oportunismo de quem chegou ao poder, a exemplo de Vítor – o guerrilheiro Mundial –, por ter ludibriado o povo, tal qual um líder religioso conduz seu rebanho, sem que este questione para onde está sendo levado. Pior, sem que este sequer se perceba sendo guiado.

Assim, do passado vivido na Casa e dos sonhos de outrora, ficaram apenas registros na memória.

Outro aspecto relevante no diálogo de Sara com o Sábio é a associação entre a falta de apetite dele e sua falta de ambição por fazer parte dos privilegiados. Enquanto ele não queria comer em abundância nem usufruir de mulheres ou de bens materiais, muitos se fartavam com os excessos de quem tem uma fome voraz, sobretudo de comando. Ocorria uma espécie de canibalismo, no qual os mais fortes devoravam os mais fracos, denunciando um apetite insaciável. Eram muitos os que se empanturravam, e a comida era tanto no sentido metafórico quanto no corriqueiro, ao passo que o povo enfrentava a privação, de comida, de vestimenta, de esperança e de líderes que considerassem sua existência. Por isso, Aníbal se retirou desse cenário, poupando os outros do que ele mesmo denominou como sua incômoda presença.

Em O Polvo (Abril de 1982), o reencontro entre Sara e Aníbal tem um valor simbólico, por representar um encontro entre a juventude e a maturidade, a pureza e a desvirtuação, a utopia e a amargura, o negro e a branca, a “loucura” dele e a sensatez dela. Representa o diálogo entre a Angola colônia e a Angola país, explicitando o elo entre as partes um e três da obra, as quais retratam as décadas de 1960 e 1980, respectivamente. Assim, não é aleatório o fato de a interação ocorrer em um espaço marítimo, onde a vida pulsa, na superfície e na profundidade. O mar é espaço da fase áurea de conquistas e de expansão territorial, sob o ponto de vista do colonizador europeu; é lócus de perda, de banzo e de desterritorialização, segundo a ótica do africano subjugado. Sob uma perspectiva ou outra, o mar se constitui um espaço mnemônico, de influência na identidade, portanto.

Nesse sentido, na conversa do casal, surgiram assuntos acerca das vivências de cada um, como a distância da família, situação enfrentada por muitos africanos, principalmente a partir da década de 1960. Sara, por exemplo, não via os pais fazia mais de vinte anos. Ficar sozinho foi outro tema falado, sobre o qual Aníbal, depois de algum tempo como guerrilheiro, passou a considerar que “a pior solidão é estar numa multidão de gente com quem já não tens mais nada em comum” (Ibid, p.250). Inevitavelmente, abordaram a carga semântica com que, em alguns contextos, a palavra ‘negro’ era empregada. Conforme o Sábio,

Os brancos chamavam-nos negros para nos humilhar, nos diminuir. Quando começámos a luta e passámos a utilizar a palavra como reivindicação duma identidade, tratando-nos a nós próprios por negros, os brancos ficaram à rasca, até mesmo os progressistas, já não sabiam como nos chamar. E passaram a chamar-nos negros, não como uma ofensa, mas como uma palavra neutra, um reconhecimento quase de emancipação. Nem sei se eles se aperceberam disso, mas foi o primeiro gesto que anunciava a aceitação inconsciente da independência... (Ibid, p.251).

Essa reflexão revela, à época, a legitimação de que a negritude tem suas especificidades, e isso contribuía para a apreensão de características identitárias do angolano.

A conversa do casal também foi permeada por questões acerca de como se encontrava o país após a independência, ao menos nos primeiros anos da década de 1980. Faltava água e alimentação adequada para muitos, o que gerava desnutrição; sobravam doenças; havia diversos problemas com transporte, haja vista a maior parte das estradas estarem ainda inviáveis para um trânsito diário; as escolas funcionavam aos soluços; “inventaram um sistema em que tudo funciona por esquemas” (Ibid, p.253). No caso de Aníbal, aceitava receber uma pensão ilegal, embora a contragosto, porque não havia leis voltadas às reformas militares, e sem ela não conseguiria sobreviver. Nas palavras dele,

Não há lugar para os marginalizados. Podia vender o peixe ao restaurante mais próximo e com isso sobreviver. Mas o restaurante é do Estado e não me pode comprar, tem de comprar o peixe ao Estado. E não tenho uma loja onde comprar os produtos de que necessito, as lojas estão vazias e exigem um cartão de abastecimento. Como fazer então? Não fui eu que inventei este sistema, nem me pediram opinião, e se o tivessem feito, não lhe ligariam puto (Ibid, p.253).

Fica nítida a insatisfação com o Estado, em especial com a falta de encaminhamentos para uma reforma.

Constata-se também uma frustração quanto ao descaso com os ex- guerrilheiros, os quais dedicaram anos da vida à luta em prol da independência de Angola. O Sábio defendia que deveria existir “tratamento especial para os que ficaram sem pernas ou estropiados de qualquer forma, ou viúvas ou órfãos” (Ibid, p.253). Além disso, para ele, os analfabetos que estavam no poder precisavam de

tratamento especial, pois já não sabiam como contribuir com o Estado e transformavam-se em “peso morto” (Ibid, p.253). Por fim, Aníbal desvelou sua desesperança em uma mudança de cenário:

Não há lugar para sentimentos, relações humanas, apenas relações de poder. Os homens deixaram de ser homens, com as suas virtudes e defeitos, são apenas cadeiras cómodas, são máquinas, parafusos, bens que se utilizam. Ou máquinas mais complexas que se servem desses bens. Essas pessoas de que falas, não são pessoas, Sara, são o Estado, o sistema (Ibid, p.254).

Com a metamorfose dessas pessoas em máquinas, a utopia sucumbiu e foi substituída pela burocracia, esta que levou Sara a deixar a direção de um hospital, atitude que, em si, já representa uma forma de degredo.

Na visita ao antigo amigo, Sara teve a oportunidade de ir à Baía Farta, lugar que fora a capital do peixe, porém, na ocasião, estava com as “lojas fechadas, muitas com vidros partidos [...]. Alguma gente nas ruas, muitos com farrapos a indicar a sua condição de deslocados de guerra, que engrossavam os kimbos à volta” (Ibid, p.255). Poucas cervejarias continuavam funcionando, mas com pouca atividade. “Sim, a Baía Farta lembrava uma cidade-fantasma, embora ainda tivesse alguma vida. Ainda?” (Ibid, p.256). Esse questionamento do narrador revela-se ambíguo. Por um lado, traduz uma melancolia diante da constatação de que aquele espaço, no qual outrora a vida fervilhava, havia se tornado praticamente vazio, com uma povoação parca, de modo que, em comparação com o passado, obtinha-se um oxímoro. Por outro lado, a pergunta suscita a leitura de que, apesar de todas as adversidades inerentes a uma guerra, a vida persistia, mesmo mirrada.

A médica também visitou um kimbo de deslocados, onde se deparou com fome e doença. Nesse local, “Todos estavam magros, mas as crianças tinham barrigas enormes, efeito da falta de proteínas e dos vermes” (Ibid, p.258). Sara se consternou com o cenário encontrado: elevada desnutrição, pois a comida não chegava regularmente e médicos só apareciam de vez em quando. “O peixe é a ração de proteínas deles” (Ibid, p.258). Diante do desconsolo da amiga, Aníbal acrescentou: “Vai te parecer estranho, mas estavam em estado muito pior aqui há uns tempos atrás. Comem peixe, sim, pelo menos um mínimo, não têm é fubá para o pirão” (Ibid, p.258). Havia deslocados de várias partes da Província, mas a terra não

era boa, tampouco havia água para o cultivo. “As línguas eram diferentes, mas os olhares os mesmos, com luar de guerra a persegui-los” (Ibid, p.259). O ex- guerrilheiro fazia o que estava ao seu alcance, contudo, faltava a ação dos organismos responsáveis por esse fim.

Na verdade, desde que decidiu se distanciar do poderio de Angola, o Sábio havia se tornado tão marginalizado quanto aquelas pessoas. Ele tinha consciência disso, tanto que se considerava um vencido, embora tivesse perdido poucas batalhas. Esse sentimento de que ele foi sobrepujado associava-se à sua relação com o tempo. Para ele,

Não temos futuro, nem representamos o futuro. Já somos o passado. A nossa geração consumiu-se. Fez o que tinha a fazer a dado momento, lutou, ganhou a independência. Depois consumiu-se. É preciso saber retirar, quando se não tem mais nada para dar. Muitos não sabem, agarram-se ao