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Da Hermenêutica gadameriana à diatópica: da tradição à cultura

4. A HERMENÊUTICA DO BEM VIVER

4.2 Um novo caminho e abertura socioambientais

4.2.2 Da Hermenêutica gadameriana à diatópica: da tradição à cultura

O aspecto cultural de todas as sociedades carrega em si uma forte carga axiológica, herdada de gerações milenares ou criada mediante as condições materiais que se lhes apresentam. A transmissão dessas características no decorrer das gerações mostra como o universo cultural, suas doutrinas e crenças podem ser percorridos pelo método hermenêutico.

Gadamer (1997) discorre duas tarefas hermenêuticas diferentes, a reconstrução e a integração. Como o objetivo da hermenêutica é compreender a verdade que provém do texto, ela tende a integrar a verdade à vida. Já o intérprete deve, também, recriar o processo criativo do autor compreendendo o significado intentado por esse. Para Gadamer (1997) compreender

um texto do passado deslinda na autocompreensão para futuras possibilidades. Sempre há uma pré-compreensão, pois, qualquer ato de compreensão começa com estruturas prévias.

Registra-se que dificilmente os intérpretes não estarão eivados de preconceitos48, pois para a hermenêutica filosófica o preconceito tem um papel central e neutro. De acordo com Schmidt:

Em qualquer momento particular, nossos preconceitos, como nossas estruturas prévias de compreensão herdadas, incluem tudo que sabemos consciente e inconscientemente. Eles incluem o significado de palavras, nossas preferências, os fatos que aceitamos, nossos valores e juízes estéticos, nossos juízos sobre a natureza humana e o divino, e assim por diante. Na maior parte do tempo não percebemos a maior parte de nossos preconceitos, apesar de podermos trazer alguns deles para a nossa percepção consciente [...]. Toda compreensão parte de nossos preconceitos. O caráter arremessado da compreensão implica que todos os nossos preconceitos são herdados de nosso passado no processo de aculturação. (SCHMIDT, 2006, p.147)

O estabelecimento de um novo método para fundamentar o conhecimento anseia a reconciliação com o cerne da tradição, pois é ela que apresenta e sustenta toda atividade cultural. Eis importante contributo da hermenêutica filosófica de Gadamer: que a tradição é uma força vital inserida na cultura e não pode ser relegada ou diminuída. A tradição não é um processo que a experiência ensina a conhecer e dominar, mas sim a linguagem.

No entender de Gadamer (1997), o ser que é passível de compreensão é a linguagem. O viés universal da hermenêutica reside na confirmação do fato de que qualquer compreensão do ser que os intérpretes vêm a concordar, ocorre na linguagem. A compreensão da linguagem requer interpretação e aplicação, tarefas precípuas da hermenêutica.

A linguagem é que estruturaliza o modo como os seres humanos compreendem reflexivamente, pensam e interpretam. O modo de ser da tradição é a linguagem. Desse modo, todas as relações que se desenvolvem em determinado lugar se manifestam pela linguagem. O diálogo é fruto da linguagem exercida, pois aquele que compreende consecutivamente é levado para um evento através do qual o significado se afirma (GADAMER, 1997).

Para se empreender uma hermenêutica concretista socioambiental, pautada na alternativa do Bem-Viver é necessário revigorar e verificar quais seriam as premissas de um

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Gadamer (1997) emprega a palavra preconceitos (Vorurteile) para denominar coletivamente as estruturas prévias de compreensão de Heidegger. O emprego do termo por Gadamer tende a gerar uma provocação, pois a partir do Iluminismo, o qual valorizava a própria razão em detrimento da autoridade, como uma reação emancipatória, é que o termo preconceito ganhou conotação negativa.

diálogo intercultural que priorize e dê relevância aos fundamentos daquela proposta, como também reverencie o aspecto ontológico da solidariedade ambiental intergeracional.

Ao tratar do diálogo intercultural, Santos (2010) destaca que a troca ocorre entre diferentes saberes provenientes de diferentes culturas ou universos de sentido, os topoi49. Ele elucida que:

Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. Topoi fortes tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando usados numa cultura diferente. O melhor que lhes pode acontecer é serem despromovidos de premissas de argumentação a meros argumentos. (SANTOS, 2010, p.447)

Como proposta para compreensão de culturas e no estabelecer desse diálogo intercultural, Santos (2010) sugere levar a cabo a hermenêutica diatópica. Essa lastreia-se na ideia de que os topoi, apesar da força axiológica que possuam, são tão incompletos quanto a cultura de que fazem parte. A hermenêutica diatópica tende a ampliar a consciência de incompletude, através do diálogo de uma cultura e outra, por isso denominar-se “dia-tópica”.

Caso destaque de aplicação da hermenêutica diatópica é o diálogo entre uma sociedade que reputa à natureza a qualidade de bem de uso e usufruto, apartada do homem e uma sociedade que compreenda que ambos fazem parte de um todo ecossistêmico. Haverá conflito entre a dignidade da pessoa humana e a dignidade da natureza.

Há a possibilidade de se encontrar alguma incompletude em ambas as culturas, como por exemplo, na primeira, de viés estritamente antropocêntrico, o que culturalmente não possuir valor de uso ou usufruto seria descaracterizado como ser ou até mesmo pessoa. Haja vista que se um componente da natureza não tiver valor de mercado ou não servir para a atender alguma demanda que supra as necessidades básicas e existenciais do ser humano seria caracterizada como um “nada” integrante do meio.

Por outro lado, a outra cultura de viés ecocêntrico, proteger um determinado ambiente para que se mantenha fatores abióticos em estado de equilíbrio, sem conseguir conotar qual a interligação daqueles fatores com um todo ecossistêmico, não encontra completude em um juízo dialético, pois a não manutenção daqueles fatores não afetará o ecossistema.

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Para Santos (2010) “[...] A hermenêutica diatópica é um trabalho de colaboração intercultural e não pode ser levado a cabo a partir de uma única cultura ou por uma só pessoa” (2010, p.454). Ele complementa ainda, as dificuldades de hermenêutica diatópica poder realizar trocas e produzir interconhecimento, por conta da necessidade de reciprocidade, haja vista ela privilegiar conhecimento-emancipação à conhecimento-regulação.

Outros doutrinadores empenharam aplicabilidade um pouco distinta à hermenêutica diatópica, a exemplo de Theodor Viehweg. Miranda (2007) apresenta o método por ele empregado como a hermenêutica tópico-problemática. Uma técnica de investigação e resolução prática de problemas concretos, mediante a articulação de pontos de vista argumentativos (topoi), abrangendo premissas ou verdades consensuais do senso comum (doxa50).

Segundo Miranda (2007), Theodor Viehweg propõe uma abordagem de resolução de problemas concretos diferente da visão cartesiana sistemático-dedutiva; enquanto o pensamento sistemático prioriza o fator cognitivo e instrumental no processo lógico-dedutivo, a proposta tópica de Viehweg inclui volitivos, ligados ao problema, trazendo uma contextualização histórica para a resolução prática. Essa converge vários pontos de vista argumentativo, sobre o valor justo em dado problema, com fito a exercer justiça social material.