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3. SOLIDARIEDADE AMBIENTAL: uma releitura interdisciplinar e intergeracional

3.2 Riscos e compartilhamento

A qualidade do ambiente influencia diretamente nas condições de desenvolvimento e sobrevivência das espécies. A vida inserida em um contexto ambiental degradado, bem como a inserção dos elementos constituintes, fatores abióticos, tornando-os degenerados ou alterados de forma a modificar suas estruturas e padrões; consubstancia os riscos a que estão à mercê a espécie humana e as demais espécies.

Os efeitos da degradação ambiental estão diretamente relacionados com a potencialidade da existência das futuras gerações onde, segundo Ost (1999), há uma preocupação na construção de pontes existenciais entre as gerações humanas, como forma de debelar o risco de discronia.

A discronia é a perspectiva observada quando há uma defasagem entre as mudanças e o desenvolvimento linguístico em um certo período de tempo. Essa é característica das sociedades pouco solidárias, as quais condizem, por exemplo, com as situações onde o tempo de regeneração da natureza é muito lento e há um descompasso entre as gerações, desde a concepção até a transmissão de valores por meio da linguagem.

O futuro, complementando Ost (1999), não pode ser engajado em atitudes irreversíveis, deve-se preocupar com o presente, pois não se pode comprometê-lo de maneira que se bloquei o futuro, como também sua relação reflexiva com o passado. Ost (1999)

destaca que a proteção ambiental revela uma situação de “destemporalização” na qual se deve buscar uma sincronia entre o humano e a natureza, entre as gerações presentes e futuras.

No entanto, há a conotação neste estudo de que o aspecto sincrônico precisa residir nos deveres das gerações presentes para com a herança ambiental legada pelas gerações passadas a serem projetadas sob a perspectiva de compartilhamento, responsabilidades e precaução frente aos riscos.

O compartilhamento que aqui se delineia é distinto, uma vez que no âmbito do Estado Socioambiental de Direito, o conceito de outro é alargado para além do Estado Social, protegendo a memória e a herança advindas de uma geração ancestral e a manutenção e proteção para uma geração vindoura. O meio também deve ser propício ao desenvolvimento e manutenção mínima existencial ecológica.

Um acordo tácito é formado pela coletividade e pelo Estado, com vistas a cumprir de forma eficaz e efetiva o mandamento legitimado e inscrito no art. 22531 da Constituição Federal em que:

há a necessidade de transcender de um pacto social para um pacto socioambiental em vista de contemplar o novo papel que o Estado e a sociedade desempenham no âmbito do Estado Socioambiental de Direito. Deve-se projetar uma nova postura política (e também jurídica) para a sociedade civil, que, especialmente sob o marco normativo da solidariedade, deverá compartilhar com o Estado (não obstante em menos intensidade) a carga de responsabilidades e deveres de tutela do meio ambiente para as gerações presentes e futuras. (SARLET; FENSTESEIFER, 2008, p. 44)

O acordo estabelecido tende a caracterizar o compartilhamento como meio de prever e tratar os riscos. Contudo, os riscos não identificados ou identificáveis, mediante processos de introjeção (consensos impositivo e persuasivo), trazem a lume uma distinção tida por Beck (2010) como solidariedade da carência e solidariedade do medo.

A solidariedade da carência é caracterizada como um elo de necessidade presente nas diversas sociedades (BECK, 2010). Os passivos ambientais, danos e a dinâmica exploratória da natureza conduzem à insuficiência compartilhada. Entretanto, o que diferencia aquela solidariedade da solidariedade do medo é a insegurança presente nesta.

A modernidade como fenômeno conduziu e conduz a uma gama de dicotomias. Nessa conjuntura, a dicotomia latente é entre a segurança e o risco (medo). A solidariedade por

medo surge como uma força política, imersa nas imprevisibilidades decorrentes da modernidade. A modernidade faz crer que há sempre um novo, “[...] pois quando as reivindicações da razão substituíram as da tradição, elas pareciam oferecer uma sensação de certeza maior do que a que era propiciada pelo dogma anterior [...]” (GIDDENS, 1991, p.40).

Giddens (1991) acentua que os riscos são individuais e coletivos, especialmente, ao se referir aos ambientes de risco. Os riscos são estruturas dicotômicas e desencadeadoras de uma construção dialética, a qual instiga a importância social e política do conhecimento. Surge o conceito trazido por Beck (2010), imbricado de novas fontes de conflito e consenso: as consequências futuras imprevisíveis oriundas dos caracteres da modernidade constituem a sociedade de risco. Desse modo,

Riscos não se esgotam, contudo, já em efeitos e danos já ocorridos. Neles exprime-se, sobretudo, um componente futuro. Este baseia-se em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda geral da confiança ou num suposto ‘amplificador do risco’. Riscos têm, portanto, fundamentalmente que ver com antecipação, com destruições que ainda não ocorreram, mas que são iminentes e que justamente, nesse sentido, já são reais hoje [...] (BECK, 2010, p. 39).

A crise ambiental é também resultado da falta de compreensão dos riscos ambientais existentes, desde a esfera local até a global, uma vez que, os problemas ambientais não são problemas do meio ambiente, mas problemas que se dirigem completamente, em sua origem e nos resultados sociais, aos problemas e relações do ser humano com o mundo (BECK, 2010).

A visão utilitarista desagrega os valores sociais e ambientais, especificamente os ligados ao meio ambiente cultural. Há a clara tentativa de se afastar a sensibilização perante os riscos, por meio de uma homogeneização cultural e consequente perda de sua variedade. Não se devem negligenciar as culturas locais na gestão dos riscos, pois como lembra a Encíclica Laudato Si’:

As soluções meramente técnicas correm o risco de levar em consideração sintomas que não correspondem às problemáticas mais profundas. É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento de um grupo social supõe um processo histórico no âmbito de um contexto cultural e requer

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Art. 225 da CF: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir de sua própria cultura (FRANCISCO, 2015, p. 119).

O grau de legitimidade conferido ao alerta de risco ou do seu grau de abrangência está diretamente ligado ao nível de introjeção e sensibilização. A certeza dos efeitos confirma a força do alerta32. Caso uma comunidade não comungue com a perspectiva e repute pouca compreensão acerca do tipo de risco a ser enfrentado, não há de se falar em perda de compartilhamento. A não assunção do risco não caracteriza negligência, ao contrário, demonstra que nem a ciência e a política33 conseguiram suscitar uma mínima sensibilização.

Beck (2010) retrata que os riscos implicam em situações reais e irreais. As situações reais são os resultados concretos das ameaças, tais como: novas doenças, poluição, perda da biodiversidade, dentre outros. As irreais são as ameaças projetadas no futuro, onde as ações, frente à destruição a que se pode conduzir, são inócuas frente aos resultados potenciais e latentes. É necessária uma convergência temporal e espacial, como também a avocação da coletividade, como passível de representação essa convergência.

É nessa linha de entendimento que “[...] os riscos da modernização são ‘reconhecidos’ – e isto quer dizer muito, não apenas o reconhecimento a respeito deles, mas o conhecimento coletivo a respeito deles, a crença neles e a exposição política [...]” (BECK, 2010, p. 94).

A equalização de um processo político, de uma dinâmica nova onde os atores sociais se tornam protagonistas em meio à crise ambiental, faz transparecer que não há tão somente o reconhecimento dos riscos, mas a internalização daqueles de que são sujeitos integrantes.

Esse processo denota os efeitos colaterais dos riscos eminentes sobre a saúde, a flora, a fauna e os seres humanos. A sensibilização alcança efeitos sociais, econômicos e políticos desde quando os efeitos ecológicos são além de críveis, eles são causas diretas daqueles.

A política governamental tende a instaurar o que Beck (2010) chama de estado de exceção, onde se justificam formas de intervenção que transformam em fenômeno cultural o perigo, dando-lhe o aspecto de normalidade. Essa pode ser compreendida como a normose

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Frise-se que, quando se tem a necessidade de levar o alerta a uma comunidade tradicional ou ainda àquelas comunidades tidas como aborígenes, deve-se observar qual o valor relevante e primordial a ser considerado. Para essas comunidades, a terra não é um bem econômico, mas um dom divino e que os antepassados nela descansam; um espaço sagrado. A Constituição Equatoriana de 2008 perquiriu valores ao apelar à sabedoria das culturas ancestrais. Nela há a reverencia e celebração ao Pacha Mama, Terra Mãe e provedora.

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Latour (2004) faz essa discussão acerca do papel da Ciência e da Política e qual o papel da Ecologia Política para buscar uma conciliação. A seguir, essa questão será desenvolvida no contexto da participação solidária.

anteriormente definida. A sociedade de risco é uma sociedade catastrofal onde as ameaças se tornam rotineiras e cotidianas.

A sociedade de risco tem seus perigos ampliados, os quais condizem a desafios novos à democracia. Corrobora-se a defesa diante dos perigos através da instauração do estado de exceção, de um totalitarismo que provoca efeitos mais perniciosos e põe em severa crise o sistema político-democrático. Isso se torna transparente desde o reconhecimento do compartilhamento dos efeitos da crise ambiental, em suas vertentes; dando como pseudo- solução a revogação do poder de polícia do Estado (BECK, 2010).

Natureza e sociedade se vêem entremeadas na rede sistêmica de relações e interdependências. O compartilhamento vai desde o individual ao coletivo. Para Beck:

Problemas ambientais não são problemas do meio ambiente, mas problemas completamente – na origem e nos resultados – sociais, problemas do ser humano, de sua história, de suas condições de vida, de sua relação com o mundo e com a realidade, de sua constituição econômica, cultural e política. [...] No final do século XX, vale dizer: natureza é sociedade, sociedade (também) é “natureza”. Quem quer que hoje em dia fale da natureza como negação da sociedade, discorre em categorias de um outro século, incapazes de abarcar a nossa realidade (BECK, 2010, p.99).

Na esteira de seu reconhecimento público e coletivo, pode-se perceber que a introjeção por intermédio de um consenso impositivo é eficaz e pode obter a efetividade, pois nesse ínterim, não houve a sensibilização pelo conteúdo axiológico do que se pretende proteger, na sua manifestação persuasiva. Ao contrário, o processo de compartilhamento se dará pela incursão da força coercitiva que pauta e regulamenta toda a sociedade, o poder do Estado.

O Estado por ser a reunião de elementos essenciais como: povo, território e soberania (sem olvidar da finalidade) tende a regulamentar os valores que anseia proteger, ainda que esses não sejam corporificados por cada um dos integrantes da sociedade, mas delibera e ordena o respeito e a relevância por meio de sua força coercitiva.

Rosseau (2007) define que os associados que compõem a sociedade e o Estado recebem coletivamente o nome de povo. Para Dallari, “[...] o povo é o elemento que dá condições ao Estado para formar e externar sua vontade” (2007, p.99).

Ao seguir essa diretriz, a participação ou o exercício democrático tem forte inter- relação com a solidariedade, pois há um elo epistemológico entre elas. A participação, seu caráter deliberativo exercido no espaço político democrático, estabelece condições que legitimam cada integrante no processo de escolha ou decisão.

A solidariedade, tomada pelo seu viés socioambiental, se torna via de inclusão, ao trazer ideais de pertença (pertencimento), compartilhamento, reciprocidade e responsabilidade. Ela pode se configurar como estado sui generis que credencia todos que tem ligação direta e indireta com o ambiente em que estão inseridos. Há a conjugação das diferenças, cujo liame se atribui pela colocação de todos os seres de maneira “ecossistemicocêntrica34”.