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Capítulo IV: Dos Meandros do Contrato Bancário ao Ius Variandi

A. Da Inauguração da Relação Geral Bancária: o Contrato-Quadro de

O contrato bancário que firma e regula toda a actividade jurídica ulterior é o contrato de abertura de conta bancária, ao abrigo do qual o cliente e o banco podem estabelecer uma miríade de relações contratuais posteriores. Com efeito, o contrato de abertura de conta representa o eixo fundamental do comércio bancário, que disciplina e baliza a respectiva relação jurídica bancária. Esta relação que se pauta por uma tendência para o prolongamento natural no tempo é a base dos contratos de depósito, cheque, emissão de cartões bancários, mútuo bancário, crédito ao consumo, etc., daí que a doutrina inglesa o denomine por ‚general ‛, e é a esta luz que se compreende a sua qualificação como contrato-quadro75. Tal como sufraga Maria Raquel Rei, o contrato-quadro

consiste numa técnica contratual capaz de aliar a unidade do contrato duradouro e de execução sucessiva ao aglomerado de contratos autónomos. Em virtude da sua plasticidade, enquanto categoria geral76, passível de imprimir

indícios com diferentes nuances na estrutura de contratos distintos¸ sob diversas configurações, a figura do contrato-quadro reveste-se de uma elasticidade capaz de intensidades variáveis conforme o modelo concreto de contrato em que reentra.

O contrato-quadro é, antes de mais, um verdadeiro contrato, um contrato de contratos, uma vez regerá outros contratos dele decorrentes (contratos de aplicação ou de execução), na estrita medida em que compreende um conjunto

75 REI, Maria Raquel. (1997). Do Contrato-Quadro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso

de Mestrado em Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

76 GUIMARÃES, Maria Raquel. (2011). O contrato-quadro no âmbito da utilização de meios de

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de obrigações que se impõem às partes. Sendo certo que a figura em apreço se pauta essencialmente pela abertura, que radica na necessária indefinição no que tange ao conteúdo dos contratos de execução futuros, e na perspectiva de criar tão-somente uma base para o negócio em curso entre as partes, o contrato- quadro cria uma margem de liberdade que permite beneficiar a continuidade das relações principiadas. Por outro lado, atendendo a que a manutenção de um contrato no tempo acarreta o risco de inconstância77 e insegurança, por força de surpresas e modificações decorrentes da volatilidade de mercado78, um contrato base que supere essa inconstância de uma cadência de contratos sucessivos e independentes, encontra-se, nitidamente, vocacionado para a longevidade contratual, arvorando-se num sistema dual, isto é, faseado: numa primeira fase, fixa-se a moldura dos direitos e obrigações que a relação obrigacional implica para o futuro, e na segunda, projecta-se para momento oportuno os acordos subsequentes que se concretizarão em função das necessidades económicas ocasionais. Esta prática é denominada, pela Doutrina, como «contratação por camadas», revelando-se útil e adequada ao processo dinâmico em que se traduzem as operações de negócios79.

O contrato-quadro vem, pois, desempenhar um papel programático – adstringindo as partes a um conjunto de direitos e deveres80 principais,

77 Em boa verdade, Ian Macneil tem razão quando se refere ao leque limitado de soluções que o

direito neoclássico dos contratos oferece em face de alterações de circunstâncias. O que acontece, via de regra, é que essas soluções visam apenas recolher os bocados dos contratos quebrados e distribuí-los, pelas partes, numa base equitativas.

78 Nomeadamente, a flutuação dos preços em função das variações das taxas de câmbio,

oscilações no preço do barril, no caso do petróleo, os custos tecnológicos, etc.

79 Não dispondo as partes da totalidade da informação necessária no momento da celebração do

contrato, em razão da aludida instabilidade no plano socioeconómico, segundo Ian Macneil, restam dois cenários possíveis: ou o contrato apresenta capacidade de adaptação, ou acaba por quebrar sob a pressão da mudança.

80 Este fenómeno verifica-se, ab initio, no contrato de franquia, que estabelece um núcleo de

deveres e obrigações, bem como pode incluir uma cláusula que obriga o franquiado à celebração de contratos subsequentes (com o franquiador ou terceiros).

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secundários e laterais, expectativas, ónus, deveres de informação e obrigações que nascem imediatamente da relação base –, com vista a aplicar-se continuamente, mediante os sucessivos contratos de execução, que mantêm com o contrato-quadro uma relação de dependência genética e funcional.

Ademais, o contrato-quadro não se reduz a um mero acordo de modo

contrahendi, consagrando um regime que se destina a vigorar imediatamente,

preparando o programa futuro à medida da necessidade. Daí que contratos como o da distribuição comercial, a franquia, a concessão comercial e o contrato de swap beneficiem deste modelo normativo, garantindo-se a previsão de cláusulas de adaptação do conteúdo contratual a que as partes possam lançar mão. Tal como sufraga Maria Raquel Rei, o contrato-quadro consiste numa técnica contratual capaz de aliar a unidade do contrato duradouro e de execução sucessiva ao aglomerado de contratos autónomos. Aprofundando um pouco esta matéria no âmbito dos contratos de swap, dir-se-á que a utilização de um tipo de contrato – o master agreement – que faz apelo à noção de contrato- quadro resultou do facto de os principais bancos intervenientes no mercado dos

swaps se terem apercebido de que grande parte dos contratos era celebrada

entre as mesmas partes, normalmente um banco e uma empresa sua cliente. Daí que se tornasse conveniente, para estas, a definição de um regime jurídico geral para as sucessivas transacções acordadas, impondo-se, por conseguinte, a utilização de uma técnica de documentação global adaptada à necessidade de maior simplicidade e rapidez das negociações.

Este contrato é inominado, em razão de a lei não o reconhecer como categoria jurídica e por força de não se encontrar disciplina jurídica em nenhum preceito legal; socialmente típico, porquanto constitui um modelo de contrato que existe na prática da contratação, nos usos e costumes do tráfego jurídico em que é celebrado, ao abrigo do princípio da autonomia privada; de execução continuada ou duradoura, visto que a prestação principal e típica do

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contrato carece de uma execução continuada, o que implica que o contrato possa ser sujeito a denúncia ad nutum quando não o prazo não tenha sido fixado; não formal dado que a lei não exige a observância de forma escrita, bastando tão-somente o consenso das partes para a sua celebração; gratuito ou oneroso consoante as particularidade que enformam o caso concreto; obrigacional, porquanto adstringe o banco à obrigação de prestar serviços bancários; comutativo, uma vez que as atribuições patrimoniais de ambas as partes se apresentam certas e não aleatórias; e acessório do contrato-quadro de abertura de conta que une as partes. É imperativo que se estabeleça uma relação interbancária prévia que viabilize e regule os serviços que o banco presta ao seu cliente, isto é, que erija a relação de clientela e institua a denominada relação bancária geral.

Por tudo isto, diremos que se pode reconduzir o contrato-quadro ao contrato de prestação de serviços na sua modalidade de mandato, já que configura um negócio jurídico em que uma das partes, o banco, se obriga a praticar uma série de actos jurídicos por conta do cliente, agindo de acordo com as indicações e instruções deste, pelo que estamos perante um mandato especial81, porquanto

que se pauta pela determinação do tipo das operações gestórias programadas.

Acresce que existirá uma coligação, pelo menos uma coligação genética, entre o contrato de abertura de conta e o contrato de crédito, uma vez que um nasce por influência ou sobre a base do outro. Isto é, uma unidade que resulta das conexões jurídicas relevantes que se estabelecem entre estes dois negócios estruturalmente autónomos. Existe, indubitavelmente, um programa económico unitário. Mais importante que a qualificação jurídica desta coligação, é a determinação do conjunto de manifestações jurídica da coligação, isto é, das modalidades de repercussão das vicissitudes de um negócio no outro com o

81 DA COSTA GOMES, Manuel Januário (2012). Contrato de Mandato. 2.ª Reimpressão da edição

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qual aquele se acha ligado, uma procedência do corolário simul stabunt, simul

cadent, ou seja, se há coligação entre os contratos em causa, então, no caso de

invalidade, resolução ou qualquer outra forma de cessação dos efeitos negociais de um dos actos repercutir-se-á necessariamente sobre o outro; o diagnóstico da fraude à lei deve fazer-se tendo em mira o complexo de contratos coligados, até porque o meio por excelência utilizado para obtenção do resultado fraudatório pode ser a decomposição dos vários contratos autónomos em causa. Repare-se que em diversas áreas contratuais a utilização de diversos contratos pretensamente autónomos vem sendo utilizado como expediente utilizado por uma das partes para distribuir os riscos contratuais, sendo a outra parte normalmente o consumidor, prejudicada por essa compartimentação. Daí que se estude, em sede de coligação contratual, a hipótese de, e sempre no interesse do consumidor, um dos contratos poder ser resolvido ou não cumprido se o outro for declarado nulo ou anulado, ou resolvido.

Na coligação existe uma pluralidade de contratos, ligados entre si por um nexo funcional, de tal modo que constituem uma unidade económica, embora cada um mantenha a sua individualidade própria. Mas dada a dependência recíproca ou unilateral, ambos os contratos se completam na obtenção da finalidade económica comum, e uma subordinação que implica que as vicissitudes de um se repercutam no outro. O fenómeno da coligação negocial, perspectivado inicialmente segundo uma concepção atomística, ao pressupor uma pluralidade jurídica, com uma unidade económica funcional, autonomizando estruturalmente cada um dos contratos, produtores dos seus próprios efeitos, significa, além do mais, que todas as normas e institutos dirigidos directa ou indirectamente ao conteúdo ‚económico‛ do contrato – à avaliação económica das cláusulas, prestações ou obrigações, à avaliação económica do próprio contrato ou dos singulares contratos que compõem o complexo, à correlação económica de forças, aos equilíbrios e

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desequilíbrios económicos gerados em conclusão do contrato e no desenvolvimento da execução contratual, à própria utilidade ou inutilidade económica de sobrevivência autónoma de contratos singulares pertencentes ao complexo, etc. – devem ser objecto de uma aplicação unitária, embora não de forma mecânica, mas flexível.

Os contratos coligados – in casu, o contrato-quadro de abertura de conta e o contrato de abertura de crédito – são queridos pelos contratantes como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante, mas não se fundem. Conservam a individualidade própria, por isso se distinguindo dos contratos mistos. Distingue a doutrina três espécies de união de contratos: união extrínseca; união alternativa; e união com dependência Na união extrínseca, o único factor de ligação reside na circunstância de se celebrarem na mesma ocasião, constando por exemplo do mesmo escrito. Na união com dependência, há entre os contratos um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade vigência do outro. Na união alternativa, são celebrados dois contratos, em termos tais que, conforme ocorra ou não certo evento, assim se considerará celebrado apenas um deles. Estamos, pois, perante a união com dependência.

A dependência pode ser recíproca ou unilateral, sendo certo que neste domínio será tomada como unilateral. Na primeira forma, dois contratos completos, embora autónomos, condicionam-se reciprocamente, na sua existência e validade. Cada qual é a causa do outro, formando uma unidade económica. Enfim, a intenção das partes é que um não exista sem o outro, isto é, não pode o contrato de abertura de crédito existir sem o contrato de abertura de conta, do mesmo modo que o contrato de abertura de crédito pode surgir coligado ao contrato de compra e venda, reproduzindo-se as repercussões supra expostas, mas, neste caso, mais bem explicitadas no regime de Contratos de Crédito a

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Consumidores, aprovado pelo DL n.º 133/2009, de 02 de Junho: beneficiando o consumidor de direito de arrependimento nos termos da legislação sobre crédito ao consumo, a ineficácia do contrato de crédito na sequência do exercício do direito determina a ineficácia do contrato de compra e venda ou prestação de serviços, nos termos do número 1, do artigo 18.º do predito Decreto-Lei.