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Capítulo IV: Dos Meandros do Contrato Bancário ao Ius Variandi

C. O Ius Variandi Bancário

C.1. O Ius Variandi na Relação de Consumo

O ius variandi é um instituto jurídico não exclusivo do direito bancário. Este instituto está vocacionado para a conservação do equilíbrio prestacional, perpassando a manutenção do equilíbrio sinalagmático no complexo que compõe as obrigações contratuais. A admissibilidade das cláusulas ius variandi, em contrabalanço com o princípio pacta sunt servanda, em arrimo ao princípio

rebus sic stantibus, oportunamente aflorados, brota nas relações contratuais de

carácter duradouro e é fruto de uma preocupação com a salvaguarda do pêndulo contratual à la longue.

Fará sentido, em homenagem aos sábios cânones do Digesto, que contractus qui

habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur, ou seja, que os contratos que têm trato sucessivo e dependam do

futuro fiquem subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas, de jeito que o poder de modificação unilateral da disciplina contratual se justifica em certos casos. O mais controvertido e explorado dos ius

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variandi recai sobre o Direito do Trabalho, em que especificamente se admite o

surgimento deste direito em nome do interesse da empresa, contanto que o seu exercício não desagúe num prejuízo sério para o trabalhador. Não se esgota porém, nesta área do Direito, sendo visíveis os desvios à firmeza e estabilidade do contrato no regime do mandato, do contrato de depósito e no contrato de empreitada, numa eterna demanda pela reposição da equivalência das prestações.

No Direito Bancário, a raiz civilista do RCCG exige a previsão expressa do poder de alteração unilateral do contrato, pelo que este ius variandi não tem fonte legal, contrariamente aos acima descritos, mas antes fonte contratual. A alínea a), do número 2, do artigo 22.º do RCCG encerra, precisamente, o ius

variandi típico do tráfego jurídico bancário, incidindo sobre a admissibilidade

de os bancos e sociedade financeiras alterarem taxas de juro nas relações de consumo90, reconhecida que está a presença da tutela do consumidor nesta

norma, quer à luz da secção em que se insere o dispositivo, quer à luz do enquadramento na Directiva de que promana.

Uma vez disposta a cláusula que expressamente introduz no complexo contratual o ius variandi, esta norma (22.º/2/b) do RCCG), na sua fórmula – «Concedam ao fornecedor de serviços financeiros o direito de alterar a taxa de juro ou o

montante de quaisquer outros encargos aplicáveis, desde que correspondam a variações do mercado e sejam comunicadas de imediato, por escrito, à contraparte, podendo esta resolver o contrato com fundamento na mencionada alteração» –, vem instituir que (i)

se verifique uma correspectiva variação de mercado e que (ii) seja comunicada, por escrito, a alteração fundamentada da taxa de juro ao consumidor. Se assim não for, então, a razão atendível, que o permita, deverá estar expressamente

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GAGGERO, Paolo. (2003). Il Códice Civile (Commentario) – Clausule vessatorie nei contratti del consumatore. Giufrrè: Milão. P. 669 e ss.

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prevista no próprio contrato e resultar de um verdadeiro acordo (art. 22.º/1/c) do RCCG).

Questiona-se: que tipo de variação serve de fundamento? Com que base legal se determina o momento e a antecedência da aludida comunicação? Qualquer contrato de crédito está sujeito ao preceituado na alínea a), do número 2, do artigo 22.º do RCCG?

A variação de mercado terá de consubstanciar uma variação potencialmente idónea a modificar o sinalagma contratual originário e cujo escantilhão repousará no «desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé», todavia. Além disso, o conceito de «variações de mercado», beberá, incontornavelmente, do instituto da alteração das circunstâncias91 (cfr. Capítulo

II), apesar das diferenças estruturais e efectivas92. Com efeito, é certo que

alteração das circunstâncias constitui, em si mesmo, um instituto autónomo, que no tocante à matéria dos efeitos jurídicos, tem por finalidade contribuir para a conformação da realidade contratual à superveniência de novas circunstâncias, diferentemente do ius variandi, que pode ter eficácia inovatória acerca do objecto do contrato, ou seja, do seu conteúdo ou clausulado. Porém, em ambos os casos, ocorrerá, necessariamente, uma alteração de circunstâncias em que ambas as partes fundaram a sua decisão de contratar e/ou de contratar naqueles precisos termos; mais precisamente, naquelas condições de mercado.

91 Neste sentido contrário, referente a outro ramo do Direito: «…o reconhecimento de um

direito à estabilidade do contrato justifica que a lei obrigue a entidade pública contratante a repor o equilíbrio financeiro do contrato, protegendo não apenas os interesses económicos do contratante particular, mas também o seu interesse à estabilidade do contrato, o que se traduz na imposição de limites e condições ao exercício de tais poderes» [,MARIA JOÃO ESTORNINHO, Direito Europeu dos Contratos Públicos. Um Olhar Português, Coimbra: Livraria Almedina, 2006, pp. 455 e, com particular relevância sobre este tema, pp. 459]

92 ANTÓNIO, Isa. (2015). A propósito do poder de modificação unilateral do contrato por parte

contraente público: ‚Ius Variandi‛. In: Revista Electrónica de Direito – Outubro 2015 – N.º 3. Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

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Destarte, entendemos que outra (variação de mercado) não poderá ser senão uma causa externa, i.e., não compreendida na álea própria do contrato, e objectiva, ou seja, essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado. Por ser externa à relação contratual em causa, parece-nos que a sua configuração deverá ser de tal modo que atinja a consciência de ambos os contraentes com razoável notoriedade. Quer isto significar que não estão incluídas na circunscrição do conceito indeterminado «variações de mercado» as suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado. Salvo melhor opinião, outro entendimento, mais maleável93, sobre os limites desta «cláusula aberta» de ius variandi, habilitaria o predisponente a alterar o programa

contratual com uma flexibilidade tal que não se compadece com os fundamentos da tutela do consumidor, fragilizando, mais ainda, a posição do contraente-aderente. Quer dizer, a distribuição do risco genético na formação do negócio — sinalagma genético reflectido, na maior ou menor taxa de juro— prolonga-se pela estipulada vida do contrato (sinalagma funcional) como a álea nuclear própria do contrato celebrado em concreto.

Importa enfatizar que, logo no momento da celebração do contrato, as partes não procederam a uma repartição simétrica do risco da variação das taxas de juro. O prestador de serviços financeiros, esse sim, predispôs, a seu jeito essa repartição, pelo que não nos parece que a invocação superveniente das variações de mercado seja susceptível de despontar, por qualquer moldura leve estribada numa relação de causalidade benzida por mera «razão atendível»

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Sobre a interpretação do conceito indeterminado «variações de mercado», atida aos critérios mínimos fixados à noção de «razão atendível», vide FIGUEIREDO, André (2007). O Poder de Alteração Unilateral nos Contratos Bancários. Sub Judice. 39: Pp. 17 e 18. «Diferente é caso de as partes contratualmente terem conferido esse direito a um ou a ambos os contraentes, com base num circunstancialismo objectivo, negocialmente previsto. Não se atingindo os limites colocados à liberdade contratual, e sendo esse direito exercido de acordo com os ditames da boa-fé *…+, nada haverá, em princípio, a objectar» *PESTANA DE VASCONCELOS, Miguel. (2017). Direito Bancário. Almedina: Coimbra. P. 357].

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(também ela vertida para o contrato pelo banco), em consequência da consumação da álea própria do contrato, montada num risco assimétrico determinado ab initio, pelo próprio, para perdurar na convencionada constância do contrato duradouro. Até porque a «razão atendível» – outro conceito indeterminado que apenas se alcança mediante recurso a parâmetros gerais da boa-fé – que as partes tenham (alegadamente) convencionado só seria chamada à colação na hipótese de não ter sido aprovada uma cláusula que especificamente introduzisse, de forma inequívoca, o ius variandi. Temos em crer que este último conceito («razão atendível») assoma-se como permissão geral e convencionada (não unilateral) de ius variandi em qualquer domínio do contrato, ao passo que o ius variandi que se traduz na alteração de juros reveste natureza unilateral e constitui uma excepção suportada em pressupostos próprios cuja densificação, conforme se defendeu, deve procurar limites no instituto autónomo da alteração das circunstâncias (art. 437.º do C.Civil), nos moldes que acima se expenderam, e que não deixam de encontrar, de certo modo, algum acolhimento na orientação plasmada na Carta-Circular n.º 32/2011/DSC, do BdP.

O período razoável de antecedência com que a comunicação do banco deverá ser expedida não encontra acervo na letra da lei, todavia, conforme veremos, o BdP compreendeu que esse período não poderia ser inferior a 90 (noventa) dias, o que se louva, apesar de não satisfazer inteiramente, ante a árdua alternativa de resolução que a lei lhe reservou.

No que tange à última questão que se ergueu, diremos, em termos que adiante adensaremos que, contrariamente à inclinação geral que a doutrina tem manifestado94, a solução legal actual, que permite a alteração unilateral de juros

94 «*…+não aprece criar um desequilíbrio intolerável a circunstância de o banco reservar o direito de

ajustar as condições financeiras que oferece ao consumidor, precisamente em função daquelas que são as condições financeiras em que ele próprio obtém o financiamento para a sua actividade…»

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nos contratos de crédito ao consumidor e de crédito à habitação, não nos parece a melhor, desde logo, porque, sendo contrato de duração determinada, e cujos interesses envolvidos criam uma inegável dependência, a vulnerabilidade que se cria ao possibilitar aos prestadores de serviços financeiros lançarem mão deste instrumento, que não deixa verdadeira margem de alternativa ao consumidor, culmina na abertura de caminhos muito perigosos e de difícil sindicância.