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CONTRATUAIS GERAIS

4.3. Da incompleição legal à pacificação do instituto

Estatui nosso código civil, em seu artigo 334º que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Já vimos ao longo deste trabalho que todos os elementos constitutivos do tipo legal foram postos em causa, assim sendo, a Ciência do Direito atualizada e experiente foi chamada a intervir rumo à pacificação do instituto. Seguimos o presente estudo sabendo que o abuso do direito é instituto típico da terceira sistemática e que deveria ser chamado de exercício disfuncional de posições jurídicas, em face da sua emblemática expressão continuar a ter uma epígrafe inadequada. Nas palavras de Menezes Cordeiro81

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“apesar da indeterminação dos conceitos, o abuso do direito mantém uma unidade de conjunto e uma particular coesão. Não é conveniente, nem em termos dogmáticos nem, sobretudo, por prismas pedagógicos, esfacelar o instituto, dispersando, na base de considerados conceptuais, as suas diversas manifestações (…) tão-pouco é viável deduzir sistemas ou interferências na base dos elementos vocabulares contidos no artigo 334.º”.

Hoje o abuso do direito rompeu com a compreensão vigente nas diferentes fases do seu desenvolvimento, que estudamos linhas acima. Vimos, aliás, que trata-se de uma noção construída sob enormes divergências ao longo da sua trajetória. Assumindo o posicionamento de Menezes Cordeiro no sentido de que os diretos subjetivos são o sistema 82 , podemos entender que estes direitos subjetivos são dependentes reciprocamente, pressupõem a colaboração dos indivíduos entre si, em referencia ao direito de que são titulares e aos deveres correspondentes, tudo do que resulta conformação da ordem jurídica como um todo. Portanto, o significado do instituto não deve ser retirado da sua expressão escrita – visto que não existe direito nem existe abuso – há sim uma conduta prevista e permitida pelas normas jurídicas, embora com cariz ilícita por contrariar o sistema como um todo. Assim temos que o abuso do direito não se limita ao exercício de um direito subjetivo, pelo contrário, ele abraça todas as posições jurídicas – direitos potestativos, liberdades ou faculdades. Traduz-se numa conduta humana, omissiva ou comissiva, conforme com o sistema formal, desconforme com o sistema num todo por ferir, principalmente, a materialidade subjacente.

Do exposto, definir o que seja abuso do direito não é tarefa fácil. Porém, mais fácil se torna a compreensão do instituto a partir da sua interpretação como cláusula geral de ilicitude objetiva, cujo sentido é determinado em vista de sua finalidade como cláusula geral de proteção da confiança na vida em sociedade… “uma forma autoconsciente gerada pela história para resolver casos concretos, e não como especulação de conceitos centrais83”.

82 ob. cit., p. 369.

83Expressão utilizada pela Dra. Cátia Venina Sanderson da Jornada Fortes no artigo “As semelhanças e as diferenças entre os artigos 334º do CC português e 187º do CC brasileiro”, in

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Acrescentamos que as concretizações da doutrina sobre o instituto e sua aplicação prática ao longo de anos de história referem, pacificamente, seis tipos de atos abusivos. Podemos apontá-los numa enumeração não valorativa, são eles:

a- exceptio doli que traduz-se no poder reconhecido a uma pessoa de paralisar a pretensão de certo agente quando este pretende prevaler-se de sugestões ou artifícios não permitidos pelo direito;

b- venire contra factum proprium que significa uma proibição de comportamentos antagônicos quando tal contradição signifique violação de valores fundamentais do sistema;

c- inalegabilidades formais que traduz-se na inoponibilidade de certa formalidade legal evitando nulidade de negocio jurídico sob pena de ocorrer abuso do direito;

d- supressio e surrectio denotam impedimento de exercício de situação jurídica em função de lapso temporal, em determinadas circunstanciais;

e- tu quoque significa que uma pessoa não pode violar uma norma jurídica e, sem abuso, prevalecer-se de situação daí decorrente ou impor a outrem o acatamento de situação já violada;

f- desequilíbrio no exercício é um espectro bem alargado de situações residuais de atuações inadmissíveis contrárias à boa-fé.

Não iremos adentrar nas características fascinantes que cada modalidade apresenta, partimos do princípio que o leitor já o tenha em conhecimento.

Pacífico é o entendimento de que o abuso do direito poderá ser constatado pelo Tribunal ainda que o interessado não o tenha mencionado, dizendo assim, que é de conhecimento oficioso. Aos valores fundamentais do sistema tudo importa e justifica; observamos também um reforço da posição de árbitro (imparcial) do juiz; na eterna vigilância dos valores fundamentais do sistema, ele não fica vinculado às alegações jurídicas das partes. Parafraseando-se Jesus, o juiz consegue dar a César o que é de César, e dar a Deus, o que é de Deus.

Em relação as consequências jurídicas verifica-se da leitura do artigo 334º que a legislação pátria adotou a ilegitimidade enquanto cerne do instituto, motivo pelo qual,

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constituiu-se uma celeuma doutrinária que se faz presente em torno dos efeitos do abuso do direito.

Para Oliveira Ascensão84 o abuso do direito é espécie autônoma atinente ao exercício de direitos. Afirma que a escolha pelo termo “ilegítimo”, embora não técnico, afasta a opção pelo radicalismo da qualificação como ilícito, conferindo ao aplicador a liberdade na busca da qualificação e da consequência mais fiel a cada situação de abuso do direito.

Fernando Augusto Cunha de Sá (2005) entende que a redução do abuso do direito a ato ilícito tem o grave inconveniente de esconder sua especificidade, que consiste em encobrir com aparência de direito um ato o qual se tinha o dever de natureza de não realizar.

Menezes Cordeiro (2011) entende que o termo ilegítimo não foi empregado com sentido técnico e que o legislador intentou dizer que “é ilícito” ou “não é permitido” contudo a fim de não posicionar-se em relação ao dilema de saber ainda se existe ou não direito, optou pelo termo ambíguo da ilegitimidade. Assim sendo, veremos quais consequências jurídicas são possíveis quando caracterizado o exercício disfuncional de posições jurídicas.