• Nenhum resultado encontrado

DA LAGOA DOS IRERÊS AO PARQUE SOLON DE LUCENA

O Parque Solon de Lucena

5.1 DA LAGOA DOS IRERÊS AO PARQUE SOLON DE LUCENA

Fundada por volta de 1585, a cidade Nossa Senhora das Neves tem seu núcleo urbano formado pela

Cidade Baixa ou Varadouro e pela Cidade Alta, a leste do qual existe uma lagoa que aparece nas descrições

e nos mapas da capitania e que, gradativamente, é incorporada ao tecido urbano.

Na cartografia datada do século XVII relativa à capital paraibana, imagens encontradas no livro de Barleus (1647) e no Atlas de J. Vingboons (1660 e 1665)418, além da representação do núcleo urbano, de parte da vegetação e relevo local, mostram ao longe uma lagoa que, diferente dos outros elementos geográficos dos arredores, inclusive outros lagos, encontra-se ligada à cidade por meio de caminhos. Esse vínculo, apesar da distância que a separa do núcleo urbano, retrata uma indicação provável de sua importância no suprimento d’água dessa capital a despeito da proximidade do núcleo urbano em relação ao rio, cujo acesso é certamente preterido devido às dificuldades inerentes às características íngremes do terreno nessa direção.

Ao longo do século XIX, a cidade passa a se prover progressivamente de fontes, bicas e cacimbas espalhadas pela área urbana e arredores, que ao findar do século abastecem a população, como a Cacimba do Povo e as bicas dos Milagres, do Gravatá e do Tambiá. Essa última, segundo o agrimensor Vicente Gomes Jardim na

Monographia da Parahyba do Norte de 1889, abastece metade da população da cidade em fins do século XIX.

A disponibilidade desses novos suprimentos d’água e o conseqüente abandono da Lagoa para esse fim, acrescida dos discursos higienistas fortemente presentes nos debates daquele período, concorrem para manifestações acerca dos males que a Lagoa dos Irerês é acusada de causar. Ela passa a ser tomada por elemento perturbador do quadro sanitário da cidade, como observa o tenente-coronel Henrique Beaurepaire Rohan, Governador da Província, na Chorografia da Província da Parahyba do Norte, em 1857:

“em todo o tempo que estive na Parahyba do Norte, observei que os médicos a encaravam com desgosto, attribuindo aos miasmas que se formavam uma ingerencia perniciosa na saúde dos moradores ambientes e quiça de grande parte da cidade”419.

Nesse período é recorrente a descrição da cidade com ênfase nos seus problemas e irregularidades, onde se critica a lógica da ordem urbana colonial e imperial, atribuindo-lhes uma aparência desordenada, muitas vezes intitulada de caótica. Ao longo do século XIX, essa interpretação de uma imagem urbana deficiente denuncia o objetivo de despertar interesse e ações no sentido de modificá-la, o que acaba se firmando como meta no início do século XX.

Assim, a segunda metade do século XIX é marcada por registros da fisionomia e do funcionamento dessa cidade, alvo de críticas de cunho higienista, através de documentos descritivos que transparecem a

418 Ver REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: FUPAM, 2000, p. 114-121.

419 ROHAN, Henrique de Beaurepaire. Chorografia da Província da Parahyba do Norte. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico

“FREDERYCE STADT”. autor: Johannes Vingboons.fonte: Detalhe de original manuscrito, do atlas de J. Vingboons, existente no Algemeen Rijksarchief, Haia. IN: REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: FUPAM, 2000. O mapa mostra, envolvida por uma linha preta, a área correspondente ao conjunto urbano, e por um alinha vermelha, a Lagoa dos Irerês. Entre eles estão caminhos que as unem. Apresenta ainda caminhos que ligam o connjunto urbano à região das praisa, passando por outros pontos ‘fornecedores’de água. Envolvido por uma linha amarela está o forte de Santa Catarina, em Cabedelo. O mapa também ilustra a distância entre a cidade e a logoa e entre a lagoa e o mar, fator imoprtante para a análise do crescimento da cidade, como se observa ao longo do capítulo.

Dissertação de Mestardo - Maria Cecília Almeida

163

Capítulo 5 - O Parque Solon de Lucena intenção de evidenciar uma necessidade de intervenção no tecido urbano. A capital paraibana neles retratada é uma cidade de

“ruas desencontradas, com alinhamentos ora obliquando-se à esquerda ora à direita, ora reduzindo, ora ampliando sua largura, abrindo-se em largos e fechando-se em becos, formando ziguezague em direções diversas”420.

Esses registros apontam questões de salubridade que, reforçadas pelos relatórios das comissões médicas, advertem a respeito dos males causados pelo acúmulo de lixo nas ruas e terrenos baldios, animais em decomposição a céu aberto e pelo desleixo da população no trato com as questões de higiene, assim como pela existência de rios, pântanos e maceiós dispostos nos arredores. Em meio a esse quadro urbano, a maioria dos documentos de época que descreve essa capital compartilha a opinião acerca dos malefícios causados pela Lagoa dos Irerês, como indica a comissão médica nomeada em 1869 pelo presidente da província Sr. Venâncio José de Oliveira Lisboa, que atribui em parte à lagoa existente nas proximidades do centro urbano a responsabilidade pelo mau estado de salubridade da capital.

Dos documentos que retratam a Parahyba oitocentista destacam-se a Monographia elaborada por Gomes Jardim em 1889, os artigos publicados, no mesmo ano, na Gazeta da Parahyba pelo engenheiro João Claudinho de Oliveira Cruz e o mapa da cidade levantado pelo engenheiro Alfredo de Barros Vasconcelos em 1857, a mando do então governador Beaurepeire Rohan. Ao que se sabe, esse mapa é o primeiro documento cartográfico empenhado em demarcar a configuração urbana da capital. Seu traçado não abrange a Lagoa dos Irerês, como o faz a cartografia seiscentista que o precede, apesar da distância entre essa área e a cidade, que cresce mesmo que ainda lentamente, ter certamente diminuído entre o século XVII e o XIX, nos quais esses documentos são elaborados.

Os mapas do século XVII ocupam-se mais em situar e relacionar o núcleo urbano com seu entorno, relevo e vegetação, possibilitando a análise dos melhores acessos, da segurança e o conhecimento da área até então pouco explorada, incluindo em sua abrangência a Lagoa dos Irerês. Já o mapa promovido por Beaurepeire Rohan revela que as intenções administrativas do governador da província encontram-se mais direcionadas ao perímetro urbano propriamente dito, desconsiderando as áreas periféricas, inclusive a Lagoa.

As idéias higienistas e os rumores da população acerca dos malefícios provenientes dessa lagoa criam um certo temor por parte dos habitantes em relação a esse espaço que passa a ser tratado com ressalvas, observando-se uma certa esquiva em habitar em suas proximidades. Isso acarreta um certo retardo no crescimento da cidade nessa direção, apesar de se constituir “justamente [essa a] região que melhor se

oferece à sua expansão”421, como nota o engenheiro Saturnino de Brito ao visitar a cidade em 1913 a convite do presidente do estado, sr. Castro Pinto, para elaboração do plano de esgoto dessa capital.

No plano elaborado por Brito, além da clara intenção em ordenar o fluxo das águas e esgotos se utilizando do traçado da cidade, há uma forte preocupação em criar espaços verdes. Para tanto, reserva, nas áreas de expansão, “alguns quarteirões para praças, jardins ou parques, aos quais os higienistas atribuem as funções

de pulmões da cidade”422. Dentre os parques e praças ajardinadas por ele propostos para a capital paraibana,

é, certamente, a intervenção na Lagoa dos Irerês a obra de maior vulto. Nela está reunida a função conferida ao verde na área urbana e o tratamento do esgoto da zona de expansão da cidade, considerando ainda que se trata da transformação de uma área de grande repulsa por parte da população que a considera foco gerador de epidemias.

420 TRAJANO FILHO, Francisco Sales. A cidade das sete necessidades. João Pessoa, 2003 (Mimeo), s/p.

421 BRITO, Francisco Saturnino R. de. “Saneamento de Parahyba do Norte”. Obras Completas. Volume 5. Rio de Janeiro: Imprensa

Oficial, 1943, p.292.

Planta da cidade da Parahyba levantada em 1855 por Alfredo de Barros e Vasconcelos, 1o Tenete do Corpo de Engenheiros, e

reduzida em 1904. Fonte: Aguiar, Wellington. Cidade de João Pesso: a memória do tempo. João Pessoa: Idéia, 1993.O mapa mostra a capital paraibana na segunda metade do século XIX. A região marcada de amarelo corresponde à área de implatação da cidade, com característica regular, tendencialmente ortogonal. Anterior a essa área está a parte baixa, desenvolvida a partir do crescimento urbano para a região portuária. Essa região é marcada por quarteirões ‘irregulares’, sem a ocupação no meio da quadra. Acima da região marcada de amarelo está a área que sinaliza a expansão futura, marcado pela região das Trincheiras (vermelho) e Tambiá (azul). A configuração dessas duas áreas revelam a esquiva do traçado em seguir a direção do crescimento que vinha sendo desenvolvido anteriormente, apresentando vazia a área da Lagoa (verde), que não consta no mapa, como elemento constituinte da cidade.

Dissertação de Mestardo - Maria Cecília Almeida

165

Capítulo 5 - O Parque Solon de Lucena Nesse plano, a Lagoa é adotada pelo engenheiro como um dos pontos centrais do sistema sanitário proposto. Apesar da população se esquivar em utilizar essa região, Brito, em 1913, encontra em suas proximidades algumas ruas povoadas formadas por casebres. Nessa área ele propõe a abertura de muitas outras ruas e algumas avenidas, cujos calçamentos, ao impermeabilizarem o solo, aumentam o volume das águas da chuva que já convergem para a lagoa. Apesar de indicar uma certa regularidade para algumas áreas existentes, nas imediações dessa lagoa Brito propõe uma expansão baseada em quadras triangulares, adaptadas à topografia dessa região, o que ele chama de “traçado sanitário”423. A Lagoa dos Irerês é convertida no reservatório regularizador caudal de uma galeria de condução das águas pluviais, na qual, a partir da construção do túnel de 405m de extensão, dá-se o esgotamento dessa área da cidade, com o encaminhamento desse material até as margens do rio Sanhauá.

Além de ser tomada como parte integrante do sistema de esgotos da cidade, nesse projeto a Lagoa è designada para desenvolver também o papel de parque urbano. Às suas margens, Brito propõe “taludes revestidos

de cimento armado, até uma certa altura, e depois gramado”424, além de um bosque e jardins marginais, promovendo o saneamento e o embelezamento do lago que, deste modo, deixa de ser “pezadello de todas as

administrações que n’ella viam um perigo permanente, u’a ameaça constante á saude publica”425.

Apenas em 27 de dezembro de 1922, na administração estadual de Solon Barbosa de Lucena, é iniciada a execução do plano elaborado por Saturnino de Brito em 1913. As obras são concluídas em 24 de abril de 1926, no governo de João Suassuna, representando o fechamento do primeiro ciclo de reformas urbanas dessa capital. Imbuída de preocupações sanitaristas e de embelezamento, vinculando o verde dos espaços públicos à vitalidade urbana, é a essa administração que se deve a urbanização da Lagoa dos Irerês, transformando-a no parque urbano saneado e embelezado proposto por Brito e que, em homenagem ao governador do Estado, passa a se chamar Parque Solon de Lucena.

No período de quase uma década entre a elaboração e a execução do plano de saneamento, presencia- se o primeiro ciclo de reformas dessa cidade, com grande transformação no seu espaço urbano. O crescimento que ocorre concomitante às intervenções não segue as indicações propostas por Brito em 1913, o que exige uma revisão e readaptação do projeto de saneamento antes de sua execução. Apesar dos ajustes necessários, a função sanitária da Lagoa e seu papel de parque urbano não são alterados.

A implantação do sistema de saneamento transforma as ruas dessa capital em imensos canteiros de obra, onde se destacam as construções do túnel que liga a Lagoa ao rio Sanhauá, das galerias pluviais e do pavilhão sanitário sobre o poço de bombas nas proximidades desse rio. Porém, é a urbanização da Lagoa dos Irerês, empreendimento promovido pelo prefeito Guedes Pereira com intuito de convertê-la em um espaço limpo, verde e de farta utilização pela população, que encontra o maior destaque nas obras de saneamento. O sentido negativo sempre agregado a esse espaço e as expectativas criadas a seu respeito pela divulgação das intervenções e pelas idéias de parque urbano dão ênfase a essa obra, impressionando a população talvez mais pela sua grandiosidade enquanto canteiro de obra, que pela sua transformação em espaço de uso público.

423 BRITO, Francisco Saturnino R. de. “Saneamento de Parahyba do Norte”. Obras Completas. Volume 5. Rio de Janeiro: Imprensa

Oficial, 1943, p. 291

424 Ibid, p.288.

Plano elaborado por Saturnino de Brito para João Pessoa. Fonte: BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Saneamento de Parahyba do Norte”. Obras Completas. v. 5. Rio de Janeiro: Imprensa oficial, 1943. No mapa, marcado em amarelo está a área de implantação da cidade; em verde a lagoa, e acima dela, em vermelho, a área referente ao ”traçado sanitário”. À direita, está a parte ortogonal da malha, implementada no início do século XX e já consolidada à época da elaboração desse plano.

Dissertação de Mestardo - Maria Cecília Almeida

167

Capítulo 5 - O Parque Solon de Lucena A Lagoa é saneada, porém, mais importante que os melhoramentos estéticos, que como resultado final são pouco atraentes, o saneamento do parque reúne grandes significados, invertendo a relação entre esse espaço e a cidade, que deixa de repudiá-lo, não o relacionando mais a ‘males urbanos’, mas vinculando-o à salubridade, como peça central do sistema de saneamento da capital. Essa etapa constitui parte fundamental para a viabilização da inserção do parque na dinâmica urbana, que se consolida a partir de ações direcionadas à expansão e à modernização da aparência da cidade nos anos trinta.

Construção do canal de drenagem. FONTE: Acervo Walfredo

Rodrigues Obra de saneamento: construção do túnel. FONTE: AcervoHumberto Nóbrega.