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Da Linguagem à Língua

No documento Tese Susana Barbosa (páginas 42-46)

Aclarada a pluralidade relativa à contextualização do conceito de linguagem, a fala é, de facto, o seu maior veículo de transmissão da informação e um dos modos utilizados na comunicação, caracterizando-se como sendo o modo verbal-oral de transmissão de mensagens, envolvendo, por outra parte, uma coordenação precisa de movimentos neuromusculares orais com o objetivo de produzir sons e unidades linguísticas, que é por sua vez realizada através do processo de articulação de sons. Em suma, a fala é, por excelência, a materialização e a manifestação concreta da linguagem.

De facto, o processo de aquisição da linguagem, bem como o progressivo domínio linguístico oral, objetivado pela fala da criança, requer o conhecimento, que é, inicialmente, intuitivo, dos sons da língua materna e da forma como estes se organizam. Consequentemente, a fala reporta-se à Fonética e à Fonologia, sendo que estas se enquadram numa teoria da linguagem que é perspetivada numa dimensão cognitiva e social.

Em termos muito sucintos, a Fonética ocupa-se das propriedades dos sons da fala humana, tanto a nível físico como a nível da sua produção e perceção, enquanto que a Fonologia estuda a organização do sistema desses mesmos sons por referência a uma dada língua, os processos envolvidos no reconhecimento das unidades linguísticas por parte dos falantes da língua, que é o que permite a comunicação, e do modo como as propriedades fonéticas dos sons são, na realidade, utilizadas por esses mesmos falantes (Mateus, Falé & Freitas, 2005). É importante esclarecer que o nível fonológico e o nível fonético se relacionam através das regras fonológicas, sendo que algumas são universais e outras particulares, estabelecendo ainda a relação entre a própria representação fonológica e a realização fonética. Os fonemas, que são os elementos do sistema fonológico, constituem as unidades mínimas de som sem significado, e que numa determinada língua servem para estabelecer diferenças de sentido, sendo que a sua determinação corresponde a um exercício de abstração que se baseia na realidade fonética, o que dá ênfase à relação existente entre ambos os níveis (Franco et al., 2003). Para além da fonética e fonologia, a linguagem inclui ainda outras dimensões, como é o caso da morfologia, que diz respeito à “estrutura e a formação das palavras de uma língua” (Matos, 2009, p. 9), e da sintaxe, que nos remete para “um conjunto fechado de possibilidades básicas de realização numa língua” (Finatto, 2012, p. 2). De facto, “em

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termos linguísticos, sintaxe significa disposição ordenada das palavras segundo uma forma e uma ordenação adequadas. As regras são definidas: tudo o que se tem de fazer é aprendê-las e usá-las inteligentemente” (Dondis, 2003, p. 29).

Acresce a estas dimensões a pragmática, palavra que só começou a ser usada com alguma regularidade a partir dos anos setenta do século XX, no campo de ação da ciência da linguística. Lima (2007), no seu livro, Pragmática Linguística, começa por dizer que esta pode “ser entendida como a disciplina que trata dos aspetos da linguagem humana que têm a ver com a ação e a prática” (p. 13), sendo que, falar em ação através da linguagem é falar em comunicação, assim “…a pragmática é a disciplina que estuda a linguagem humana sob o ponto de vista da comunicação” (p. 13).

A linguística, como a ciência que trata das palavras da língua, é organizada por diferentes áreas, que vão da fonologia à semântica, com as especificidades que lhes são imputadas. Por conseguinte, o modo como as palavras são usadas pelos utentes da língua para abarcar os seus fins comunicativos leva-nos a falar de pragmática linguística, uma vez que, se incumbe daquilo que os falantes de uma língua podem fazer com ela. De qualquer modo, perante a distância entre língua e falantes, temos que salientar que sendo a língua considerada como um objeto à disposição dos falantes e estes podendo utilizar-se dela, a verdade é que ela só existe porque os falantes a utilizam em situações de comunicação, fazendo uso desse sistema. Todavia, e nas palavras de Lima (2007), há que distinguir dois níveis, ou seja, a língua como um sistema de unidades que tem significado e a comunicação real, que nada mais é, aquilo que as pessoas podem querer alcançar ao usar a língua (o da prática ou das ações/atos linguísticos), que trata a pragmática.

Decorrente do afirmado, a área que estuda os fatores reguladores da atividade verbal é a pragmática e dentro desta uma teoria muito particular: teoria dos atos de fala. Os atos de fala, sendo ações realizadas linguisticamente, as suas definições tipológicas equivalem a uma tentativa de categorização dessas ações. Distinguindo os distintos atos ilocutórios e tendo presente que a funcionalidade de uma frase no discurso não está escrupulosamente aglutinada a um tipo singular de frase, a tradição descritiva discerne entre forma e conteúdo de uma frase, realçando que a intenção com que um enunciado é produzido está ligada à função avocada por esse mesmo enunciado no contexto da sua

enunciação. Daí que à intenção se chame objetivo ilocutório do ato e à função se chame força ilocutória desse mesmo ato.

Na descrição dos atos de fala, o filósofo norte-americano John Searle (Solla, 2008) propôs uma tipologia que divide os atos ilocutórios em seis categorias: assertivos (em que há uma relação entre o locutor e aquilo que ele próprio expressa no seu enunciado), diretivo (em que o alocutário é levado a realizar a ação, verbal ou não verbal que é expressada pelo locutor), compromissivo (em que compromete o locutor a realizar a ação, futura, que expressa no seu enunciado), expressivo (em que é expresso o estado psicológico do locutor acerca da realidade que expressa no seu enunciado), declarativos (alterar a realidade das coisas através da realização do ato) e declarações assertivas ou atos declarativos assertivos (alteração da realidade das coisas por meio da realização do ato mas relacionando o locutor com a verdade daquilo que ele próprio expressa no seu enunciado).

Por fim, o discurso relaciona-se diretamente com a pragmática, definindo-se como “(…) aquilo que “queremos dizer” (função ou significado pragmático) nem sempre corresponde ao que “dizemos” (forma ou significado literal)” (Solla, 2008, p. 29). O nível de enunciação é o mais básico isto é, tal como Lima (2007, p. 29) refere “só a partir da manifestação física da enunciação é que se podem praticar atos de segundo nível (…) os chamados atos ilocutórios (ou ilocucionários) que desempenham um papel central na comunicação humana”.

Em suma, com base em tudo o que foi referido, entende-se que o comportamento linguístico é bastante rico, visto que a língua que utilizamos se caracteriza como sendo uma entidade complexa, capaz de representar realidades distintas e de satisfazer diversos objetivos comunicativos. A língua surge após a aquisição da linguagem, sendo, portanto, um meio de veiculação da mesma (Faria, 2011).

Para uma maior compreensão deste conceito de língua é bastante elucidativa a definição atribuída por Saussure (1970), que é o inaugurador da Linguística Moderna, considerando a língua, por conseguinte, o objeto da própria Linguística. Em termos gerais, Saussure afirma que esta é constituída por todas as manifestações da linguagem humana, fazendo, no entanto, uma diferenciação bastante relevante dentro da própria linguagem, partindo então para um caso em particular.

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Efetivamente, este autor defende que a linguagem é constituída por duas partes: a língua, que é considerada como sendo essencial, e a fala, que é considerada como secundária, atribuindo a estes dois conceitos nomenclaturas bastantes particulares:

langue (língua) e parole (fala), referindo-se o primeiro à língua como um sistema de

signos interiorizado a nível cultural pelos sujeitos falantes, e o segundo ao ato individual de escolha de palavras para enunciar o que se deseja.

Ainda relativamente ao conceito de língua, Saussure (1970) diferenciou-o, em termos evolutivos, que se relacionam com os históricos da língua, atribuindo o conceito de diacronia, e em termos dos estados da língua e da relação entre os elementos simultâneos, atribuindo o conceito de sincronia. É também Saussure (1970) que afirma que os sujeitos, a nível individual, não podem criar uma língua ou modificar uma que já existe, pois a língua é um facto social: “Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (Saussure, 1970, p. 22).

Chomsky (1998) também aborda esta temática, sendo que os seus estudos nos indicam que os seres humanos apresentam uma predisposição genética, a qual possibilita a aquisição da linguagem. Efetivamente, se todos os seres humanos se apresentam como aptos para adquirirem uma língua, a experiência por eles vivida seria considerada como um ´dado de entrada` no sistema, que permite a assimilação de palavras e seus significados, e a língua seria considerada com um ´dado de saída`. Desta forma, para Chomsky (1998) “cada língua em particular é uma manifestação específica do estado inicial uniforme” (p. 24).

Tal como se verificou no caso de Saussure (1970), que criou dois termos particulares para definir língua e fala, também Chomsky (1998) criou os seus próprios conceitos: o de desempenho e o de competência. O primeiro consiste no uso que fazemos da língua, sendo, de facto, o que realizamos quando falamos, enquanto que o segundo consiste num conjunto de normas ou regras que permite a emissão, a receção e o julgamento dos enunciados da nossa língua. Na realidade, se compararmos a langue de Saussure (1970) com a competência de Chomsky (1998), a diferença fulcral é que o primeiro conceito trata de um sistema interiorizado e o segundo, apesar de tratar, também, de um sistema interiorizado, não trata dos signos internacionalizados, mas sim das regras que permitem

a criação de enunciados da língua. Em suma, e como frisa Nasi (2007), a principal diferença concetual entre estes dois autores é que, para Saussure a língua, de uma forma geral, consiste num sistema de signos enquanto para Chomsky consiste num conjunto de frases/orações.

No documento Tese Susana Barbosa (páginas 42-46)