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Da Nova Sociedade Civil – Emergência do Indivíduo e os Atores Internacionais

Capítulo 3: Agenda de Direitos Humanos e Políticas de Igualdade Racial

3.1 Atores e Agendas Internacionais em Saúde e Direitos Humanos

3.1.2 Da Nova Sociedade Civil – Emergência do Indivíduo e os Atores Internacionais

Voltando-se aos atores políticos destes processos, é preciso lembrar que os direitos humanos e a temática anti-discriminatória e anti-racista ganharam corpo no cenário internacional, inicialmente, no período pós II Guerra Mundial, a partir da criação da ONU em 1945, até atingir seu apogeu nos debates inflamados entre alguns países, quando da realização da Conferência de Durban, já discutida acima. O fim da II Guerra Mundial promoveu um cenário de solidariedade entre as distintas nações diante do sem número de refugiados e sobreviventes expatriados; indivíduos perdidos entre as nações forçaram, naquele momento, os Estados a pensarem a existência ontológica do próprio indivíduo, consequentemente, gerando olhares sobre seus direitos e deveres enquanto responsável individual por sua proteção e detentor de direitos civis e sócio-político-econômicos fundamentais e universais (REIS, 2006).

Sob os marcos fundadores do direito internacional dos Direitos Humanos – a assinatura da Carta de Fundação da ONU em 1945, a fundação do Tribunal de Nuremberg (1945-1946) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 – a autora acima analisa a política internacional segundo duas vertentes de entendimento sobre os direitos humanos, baseando-se nos princípios da democracia. De um lado, os direitos humanos podem ser pensados como uma forma de controle do estado, “subvertendo sua lógica de competição” e, de outro modo, tem-se a ideia de que os direitos humanos têm pouca importância na condução da política internacional.

De fato, do ponto de vista da execução de ações em prol dos direitos humanos, a condução efetiva de tais processos se dá no âmbito do Estado nacional. As organizações internacionais têm um poder de indicar, denunciar ou mesmo constranger os Estados nacionais que descumprem ações em direitos humanos, mas há limites nos processos de entrada e envolvimento de cada nação. A menos que seja acionado o Conselho de Segurança da ONU, que não ocorre com muita frequência, a responsabilidade completa se volta aos estados-nação. Muito embora também, o constrangimento político e moral a que são submetidos os estados, num período de intensas repactuações entre eles, tem forçado cada país a repensar suas ofertas em serviços e atenção aos direitos humanos universais.

Sob a outra vertente, verifica-se que o regime internacional de direitos humanos tem obtido êxito no respeito ao estabelecimento de normas e padrões de comportamento sob os quais os estados podem ser avaliados e julgados, detendo-se, principalmente no direito do homem, de cada indivíduo, independente de sua nacionalidade. Assim, diz-nos a autora:

(...) o reconhecimento do indivíduo como portador de direitos que independem dos estados é considerado a mola propulsora da articulação de uma rede transnacional de indivíduos, movimentos sociais e organizações não governamentais, em torno de questões de interesse global (REIS, 2006, p. 35).

Tem-se, deste modo, um crescimento, no nível internacional, do indivíduo e da sociedade civil, conformando uma rede transnacional de ativistas, esmerados em garantir direitos inalienáveis, interpretados também como direitos constitucionais, universais e internacionais, sejam para as mulheres de todo o mundo, as crianças de todo o mundo, ou mesmo, os povos afrodescendentes de todo mundo – a nação diaspórica africana espalhada em diversas regiões do globo. Essa rede transnacional, aponta Reis (2006), teve crescente atuação na década de 80, desde ações em prol da redemocratização de diversos países da América Latina e Leste Europeu, às ações sobre os problemas ambientais e as crises humanitárias.

O que se observa neste processo é a formação de uma esfera pública global, de uma sociedade civil que, em busca dos valores universais, se legitima enquanto uma nova instância da sociedade, além do estado nacional, correndo em paralelo a ele. Bobbio (1992, apud REIS, 2006) conforma essa nova instância social internacional, atuante em prol dos direitos do cidadão de uma cidade que não tem mais fronteiras, compreendendo toda a humanidade e os direitos do homem enquanto cidadão do mundo (p. 35). Os direitos humanos tornam-se, assim, ideia política hegemônica na sociedade internacional do século XX.

Essa rede transnacional de ativistas constitui-se, então, de atores internacionais fundamentais para a elaboração das ações dos direitos humanos, mais recentemente focalizadas em ações afirmativas em prol da população negra mundial. A Fundação Ford, por exemplo, analisada por Telles (2002), foi um dos organismos internacionais pioneiros em propor e executar ações afirmativas no mundo. Baseando-se nas discussões norte-americanas sobre as relações raciais, com grande propensão à exportação de ideias e conceitos sociológicos de seu país de origem, a Fundação Ford é, de fato, um grande ator político das ações em políticas afirmativas desde a década de 80. Telles (ibidem) confirma a tese de que este organismo internacional parte de premissas sobre o modelo de raça e da sociedade bipolarizada em brancos e negros dos EUA, porém, não o faz de modo impositivo e mesmo o grau de influência que exercem ainda é pouco, diante das realidades locais dos 44 países em que atuam.

O autor demostra em seu artigo que, no caso do Brasil, a Fundação Ford tem amplo diálogo com grandes lideranças de movimentos negros locais e que muitos cargos de chefia e coordenação de projetos nos escritórios locais são ocupados por estudiosas e pesquisadores brasileiros, cuja análise sobre a realidade brasileira, seus mitos de identidade nacional e racismo velados são categóricos e contundentes, fazendo com que as ações e serviços tenham base nestes estudos. Luiza Bairros, por exemplo, hoje ministra da igualdade racial, foi uma importante interlocutora do movimento negro com a Fundação Ford no início dos trabalhos desta organização junto à sociedade brasileira.

Maio et al (2010) demostram também que as discussões e ações em prol dos temas de etnicidade e saúde recaem no seio da OPAS a partir do contexto sobre o qual esboçamos anteriormente. Inicialmente focalizados no tema da saúde das populações indígenas desde meados do século XX, dentro dos espaços andino e centro americano, essa organização pôde estabelecer laços mais íntimos com políticas afirmativas de recorte racial no Brasil, através do reposicionamento do Brasil no exterior – buscando mais autonomia pela integração com outros organismos internacionais – mas também, diante das demandas pró-direitos humanos aprofundadas em um sem-número de conferências, encontros e acordos internacionais, que passaram a julgar que as políticas antipobreza seriam mais efetivas quando conjugadas a estratégias antidiscriminatórias (idem, ibidem).

Como importante ator social no campo da saúde internacional, a OPAS ajudou a disseminar valores e conceitos relacionados à temática étnico-racial neste setor. Em 2000, na Conferência Regional Preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Santiago, no Chile, a OPAS reconheceu, sob recomendação da delegação brasileira, a necessidade da adoção de ações com base nas variáveis raça, etnia e gênero no campo da saúde, além de desenvolvimento de projetos específicos para a população negra. Assim, a OPAS se envolveu ainda mais com essa temática, produzindo artigos sobre a relação etnicidade-saúde, convocando reuniões com especialistas, propondo atividades que ajustavam e desenvolviam planos, treinamentos de recursos humanos, mobilização de recursos financeiros e o reconhecimento do racismo como “obstáculo ao acesso a serviços, à informação e ao tratamento equitativo” (idem, ibidem, p. 1277). Os autores ainda destacam:

A análise dos artigos e documentos produzidos pela OPAS revela que muitas das questões neles abordadas foram definidas no encontro Race and Poverty, organizado pelo Banco Mundial, o BID e o Inter-American Dialogue no ano 2000. Essa sintonia é indicativa da capacidade dessas organizações de pautarem as discussões relacionadas à raça/etnia no âmbito internacional. Em um contexto no qual organismos como o Banco Mundial e o BID detinham um poder de agenda cada vez

maior, a formulação de políticas de saúde com enfoque étnico-racial não poderia realizar-se à sua revelia (MAIO et al, 2010, p. 1277).

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), também responsável pela execução de ações afirmativas no mundo, foi criado em 1965 a partir de uma resolução da Assembleia da ONU que estabelecia a fusão de duas entidades existentes: o Fundo Especial das Nações Unidas e o Programa Estendido de Cooperação Técnica. Esta fusão deu ao PNUD um papel de destaque dentro da ONU, tornando-o um órgão responsável por trabalhar conjuntamente com os países procurando alcançar soluções para os desafios do desenvolvimento em seus diferentes níveis. O PNUD também tem sido uma importante fonte de assistência a países em desenvolvimento (MACHADO, PAMPLONA, 2008).

Do ponto de vista conceitual, o PNUD foi analisado por alguns autores como uma organização que atuou até a década de 90 sem um foco definido: Klingebiel (1999 apud MACHADO, PAMPLONA, 2008) argumenta que uma das principais falhas da organização estava no fato de não ter um perfil claro e um paradigma bem definido para suas ações; sem foco e uma real abordagem estratégica, o PNUD era visto como uma agência de desenvolvimento que oferecia “tudo”, mas mantinha um posicionamento neutro, sem critérios nem orientação para o fornecimento de recursos. Esta realidade muda a partir da década de 90 quando o PNUD passa a ser identificado sob o paradigma do desenvolvimento humano sustentável, muito embora esta não seja uma visão consensual dentro da organização, especialmente em relação aos países-membros da ONU e ao Conselho Executivo que controla as ações do PNUD.

O paradigma do desenvolvimento humano envolve dois aspectos principais, relacionados ao aumento da gama de escolhas das pessoas e ao nível de bem-estar alcançado em si: de um lado tem-se a formação das capacidades humanas (melhoria nas condições de saúde, conhecimentos e habilidades) e, de outro, o uso que as pessoas fazem das capacidades adquiridas (no trabalho, lazer e no exercício da cidadania). Os componentes essenciais deste paradigma se reportam a conceitos que, posteriormente, também são utilizados no campo da saúde e da saúde da população negra. Assim, o PNUD contribuiu para as noções de Equidade – já discutida, relaciona-se ao acesso equitativo às oportunidades; Sustentabilidade – garantia de que a próxima geração contará com as mesmas oportunidades, não apenas de recursos naturais, que as pessoas contam agora; Produtividade – entendida como investimento nas pessoas e no ambiente macroeconômico para que alcancem potencial máximo e Empoderamento – participação ativa e real das pessoas nas políticas para o desenvolvimento humano (HAQ, 1995 apud MACHADO, PAMPLONA, 2008).

O principal referencial conceitual para o paradigma do desenvolvimento humano ali atualizado detém suas bases nos preceitos de Amartya Sen. Este filósofo analisa as capacidades humanas em termos de possibilidades da pessoa em um determinado cenário social. Sua análise sobre o bem-estar retoma aspectos da autonomia dos sujeitos, levando-se em conta a liberdade e o potencial de ação de cada pessoa. Seu foco está no nível do individuo e este autor defende a tese de que a igualdade pode gerar desigualdades em outros espaços, por conta da diversidade humana, propondo a ideia de equalização das capacidades e abrindo espaço para uma rediscussão da noção de igualdade.

Deste modo, através do seu conceito de capacidade, Amartya Sen sugere que a superação das iniquidades a que estão submetidos os indivíduos relaciona-se à utilização de esforços e iniciativas deles próprios para a superação (CAMPOS, 2006). A condição de agente tem papel fundamental para o desenvolvimento, embora essa condição possa ser restringida pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas disponíveis para os indivíduos. O paradigma estabelecido por Amartya Sen pareceu bastante conveniente ao PNUD, já que suas ações programáticas exigem relativo consenso entre os diferentes países que o compõe e, os preceitos estabelecidos pelo filósofo, apesar de aproximarem as teorias do desenvolvimento ao bem-estar das pessoas (indivíduo), não exploram uma análise mais detalhada das necessidades de mudanças estruturais na economia internacional (MACHADO, PAMPLONA, 2008).

Assim, o que se observa com os exemplos aqui apresentados é que há, de fato, um padrão global para discussão não apenas dos direitos humanos, como das ações em prol das populações discriminadas no mundo. Todo modo, a execução destas ações deve recair sobre os Estados Nacionais e o que se pode apreender destes organismos internacionais é que eles auxiliam, muitas vezes, em processos de instrumentalização não apenas do Estado que pretende avançar em políticas afirmativas, mas também, servem como apoio para setores da sociedade civil cada vez mais articulados internacionalmente. As bases conceituais de muitas destas organizações podem mascarar problemas estruturais do globo, mantendo o foco apenas no sujeito como agente de mudança, porém, não se pode negar o avanço das discussões e, por que não, ações em direitos humanos e contra o racismo.

Um de nossos entrevistados comenta que a relação com estes atores e agendas internacionais é bastante complexa, embora tenha permitido boas parcerias para a construção do campo da saúde da população negra. Ele nos diz:

Então, ela [questão das agências internacionais] é contraditória, (...), mas foi muito bem utilizada pelo movimento negro, pelas pessoas que pensam a saúde da população negra. Quando a gente pensa que tem um diálogo com a política neoliberal, não é? Ela é contraditória, em uma série de coisas, mas quando a gente pensa na agenda dos direitos humanos, quando a gente pensa na questão das metas do milênio, ela faz todo sentido, faz todo sentido (entrevistado 03).

Além de tudo, foram essas agências internacionais que possibilitaram o estopim de ações em saúde da população negra, até que o governo brasileiro pudesse se pronunciar de modo mais contundente e assumir a pasta para si mesmo, através da criação de uma Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, como veremos mais adiante. Por ora, ressaltamos a fala de outro entrevistado que aponta um aspecto positivo da atuação do PNUD e do DFID junto ao movimento negro no Brasil:

É, o governo brasileiro rechaçava essa idéia. Quem acolhia o debate como uma questão estatal, quem propicia o ambiente e até a expertise que tinha eram as agências das Nações Unidas, também porque tavam obrigadas a isso pela agenda de Durban, mas que mesmo assim não cumpriu tudo, porque o PNUD se afastou disso, mas aí o DFID assumiu, mas foi uma combinação entre eles, o DFID assumiu (entrevistado 02).

O DIFD foi um dos organismos internacionais que mais abordou o tema do racismo institucional. Enquanto ator político, este ministério britânico produziu um manual de identificação e abordagem do racismo institucional, em parceira com organizações não governamentais negras do país, especialmente o instituto Amma Psique e Negritude, pioneiro nas discussões sobre os efeitos psicológicos do racismo para os sujeitos. Juntas, estas entidades, numa parceria ainda no período de organização da conferência de Durban, elaboraram o PCRI – Programa de Combate ao Racismo Institucional – com o objetivo de trabalhar o combate e a prevenção ao racismo institucional, de modo a gerar possibilidades de formulação e implementação de políticas públicas racialmente equitativas. Este programa se organizou em dois componentes inter-relacionados. O componente municipal apoiava ações de enfrentamento ao racismo institucional com base nas experiências municipais de duas cidades brasileiras: Salvador e Recife. O componente saúde se responsabilizou por um estudo de caso no qual pudesse contribuir para a redução das iniquidades raciais em saúde, colaborando para a formulação de políticas de saúde para a população negra no âmbito do SUS (DFID, 2007, p.15).

O que se observou com a leitura deste manual foi a introdução do conceito de racismo institucional, posteriormente utilizado em amplos espaços de discussão, inclusive no campo da saúde. O racismo institucional é assim definido:

Fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas devido à sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (DIFD, 2007, p. 17).

Todavia, um de nossos informantes alerta para as possíveis origens do conceito de racismo institucional, anterior ao uso que o DFID faz, comentando, inclusive, sobre o poder de persuasão deste organismo internacional no fomento ao uso do conceito:

Hoje todo mundo fala em racismo institucional, racismo institucional, racismo institucional. E fala como sendo um conceito do governo britânico, fala como sendo um conceito do governo britânico ou remetendo a Fernanda [Fernanda Lopes], etc., quando, na verdade, o conceito de racismo institucional não é britânico, o conceito de racismo institucional é EUA e Índia! Mas, é tanta força do DFID e as coisas que a Fernanda foi produzindo enquanto tava no DFID, etc., chamando atenção, reuniões que a gente teve com agentes, com pessoas do governo britânico e tal, com essa discussão do racismo institucional e aí, isso entra pra dentro do movimento social, todo mundo fala, quer dizer, todo mundo... Eu vejo muita gente que tava no início do governo falar de racismo institucional e... legal essa palavra aí” (entrevistado 03).

Além da introdução deste conceito/temática, pudemos verificar que a produção do manual, com todas as sugestões de como o estado e a sociedade civil devem manejar e combater o racismo, contou com a colaboração de muitos pesquisadores e ONGs brasileiras, levando-nos a pensar o protagonismo destes atores no país, e repensar o grau de influência e mesmo de colaboração entre os países da alta cúpula das organizações internacionais e o Brasil. Destacam-se nesse processo personagens importantes, militantes e pesquisadores negros, que aproveitam a ocasião e as contribuições financeiras para a execução destas ações. Particularmente no caso do PCRI, foram discutidos elementos da sociedade brasileira com análises psicológicas importantes para a definição dos processos de estereotipia e estigmatização. Colaboraram com essa produção: Elias Sampaio, Fernanda Lopes, Lindivaldo Leite Júnior, Lúcio Oliveira, Luiza Bairros, Maria Bernadete Azevedo, Mônica Oliveira e Rachel Quintiliano.